domingo, 29 de março de 2020

Plano para um poema

Que sea Roma la que faustina, que o vento faça ponta nos lápis de chumbo do escriba sentado, ou atrás de trepadeiras centenárias apareça escrita uma manhã esta frase convincente: Não há trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, para o inferno os inventores de imagens presumidas. E Marat em sua banheira. Também vejo a perseguição de um grilo por uma bandeja de prata, com a senhora Délia que aproxima suavemente uma mão semelhante a um substantivo e quando vai apanhá-lo o grilo está dentro do sal (então cruzaram a pé enxuto, e Faraó os amaldiçoava na margem) ou pula com o delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca da torrada. Senhora Délia, senhora Délia, deixe esse grilo andar por pratos rasos.
Um dia ele cantará com tão terrível vingança que seus relógios de pêndulo se enforcarão em seus caixões de pé, ou a donzela dará à luz parda roupa branca um monograma vivo, que correrá pela casa repetindo suas iniciais como um tamborileiro. Senhora Délia, os convidados se impacientam porque faz frio. E Marat em sua banheira.
Por fim que seja Buenos Aires num dia avançado e refilado, com trapos ao sol e todos os rádios do quarteirão vociferando ao mesmo tempo a cotação do mercado livre de girassóis. Por um girassol sobrenatural pagou-se em Liniers oitenta e oito pesos, e o girassol fez declarações infamantes ao Repórter Esso, um pouco por cansaço depois da recontagem de seus grãos; em parte porque seu destino ulterior não figurava no talão de vendas. A tardinha haverá uma concentração de forças vivas na Plaza de Mayo. As forças irão por diferentes ruas até se equilibrarem na pirâmide, e se perceberá que elas vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela prefeitura. Ninguém duvida que os atos se realizarão com o máximo brilhantismo, o que provocou como é de supor uma extraordinária expectativa. Venderam-se tribunas especiais, irão o senhor cardeal, as pombas, os presos políticos, os motorneiros, os relojoeiros, as dádivas, as senhoras grávidas. E Marat em sua banheira.
Júlio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

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