quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Caetano Veloso e Carminho explicam "Você-Você"

Hagar, o Horrível

Taquicardia a dois

Estava minha amiga falando comigo ao telefone. Eis senão quando lhe entra pela sala adentro um passarinho. Minha amiga reconheceu: era um sabiá. A empregada se assustou, minha amiga ficou surpresa. Era preciso que ele achasse o caminho da janela para ir embora e escapar da prisão da sala. Depois de esvoaçar muito, pousou num quadro acima da cabeça de minha amiga, que continuou o telefonema, porém mais atenta ao sabiá do que às palavras.
Foi quando ela sentiu uma coisa pelas costas nuas – era verão, o vestido não tinha costas: o sabiá tinha-se aninhado nela e parecia estar muito bem. É preciso dizer que minha amiga tem uma voz muito suave. Ela sabia que qualquer movimento súbito seu, e o sabiá se assustaria quase mortalmente. Desligou o telefone.
Também é preciso dizer que minha amiga tem mão e jeito leves, é capaz de segurar a corola de uma flor sem fazê-la murchar. Foi com seu jeito leve que pegou no sabiá, que se deixou pegar.
E lá ficou de sabiá na mão. O coraçãozinho do sabiá batia em louca taquicardia. E o pior é que minha amiga estava toda taquicárdica. Ali, pois, ficaram os dois tremendo por dentro: a amiga sentindo o próprio coração palpitar depressa e na mão sentindo o bater apressadinho e desordenado do sabiá.
Então ela se levantou devagar para não assustar o que estava vivo na sua mão. Chegou junto da janela. O sabiá compreendeu. Minha amiga espalmou a mão, onde o sabiá permaneceu por uns instantes. E de súbito deu uma voada lindíssima de tanta liberdade.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

A vida escoa

 

Márcio Antoniasi, in @textodevidro

As rãs | 5.


Marcamos a data do meu casamento com Leoazinha.
Tudo avançava sob o gerenciamento de minha tia. Eu me sentia como um tronco podre flutuando na água, a cada empurrão, eu dava um pinote para a frente.
Quando fizemos o registro de casamento na comuna, foi a segunda vez que fiquei a sós com Leoazinha.
Nosso primeiro encontro foi no dormitório que ela dividia com minha tia. Também era numa manhã de sábado. Minha tia nos empurrou para dentro do quarto, fechou a porta e saiu. Havia duas camas. Entre elas, uma escrivaninha de três gavetas. Na escrivaninha, uma pilha de jornais empoeirados e alguns livros de ginecologia. Do lado de fora da janela, crescia uma dúzia de girassóis bem robustos. Estavam em florada, tinham abelhas coletando seu pólen. Ela me serviu um copo de água e sentou-se na beirada de sua cama. Eu me sentei na beirada da cama da minha tia. O quarto cheirava a sabonete. No suporte do lavatório, havia uma bacia da marca Hong Deng, com água pela metade e bolhas de sabão. A cama da minha tia estava uma bagunça, o cobertor sem dobrar.
Minha tia só pensa em trabalho, não é?”
Pois é.”
Parece que estou sonhando.”
Eu também.”
Sabe o que Wang Fígado fez? Ele escreveu mais de quinhentas cartas para você.”
Sua tia me contou.”
Que acha disso?”
Não acho nada.”
É meu segundo casamento e ainda tenho uma filha. Isso te incomoda?”
Não.”
Não quer conversar com sua família?”
Não tenho família.”

Levei-a de bicicleta à sede da comuna. Forraram a estrada com um cascalho feito de cacos de tijolos e telhas, a bicicleta sacolejava, era difícil manobrar. Ela ia na garupa, o ombro apoiado em minhas costas. Sentia o seu peso. Algumas pessoas são fáceis de levar na garupa, outras não. Wang Renmei era fácil de levar e Leoazinha era difícil. Eu fazia força para pedalar. Arrebentou a corrente. Senti um aperto no coração: mau sinal! Será que também não vou envelhecer ao lado dela? A corrente quebrada caiu no chão como uma cobra morta. Com a corrente na mão, fiquei olhando desamparado para os quatro cantos. Nos dois lados da estrada, eram campos de milho. Algumas mulheres estavam pulverizando inseticida. O pulverizador zunia como uma sirene antiaérea, vuum-vuum. As mulheres se cobriam com um plástico, usavam máscara e um lenço na cabeça. Era um trabalho brutal, mas ganhava um toque poético com a névoa que subia do milharal esverdeado — parecia que estavam andando nas nuvens. Me lembrei de Wang Renmei. Era muito arrojada, tinha até coragem de pegar cobra. Segurava a cobra pela cauda, como eu fazia com a corrente da bicicleta. Também trabalhou pulverizando inseticida. Isso pouco depois de desmanchar o noivado com Xiao Lábio Inferior, quando foi demitida da escola. Seu cabelo tinha um cheiro forte de inseticida. Toda sorridente, ela dizia: “Não preciso lavar, assim não pego piolhos, nem mosquito, nem mosca”. Quando lavava o cabelo, eu ficava atrás dela, despejando água com um bule, e ela ria de cabeça baixa. Perguntei do que estava rindo, e ela riu sem parar até entornar a bacia. A lembrança de Wang Renmei me enchia de culpa. Olhei para Leoazinha de canto de olho. Ela tinha escolhido para essa ocasião uma blusa nova, xadrez, vermelha, de manga curta e colarinho. Um relógio digital brilhava no seu pulso. Como era rechonchuda! Devia ter passado creme de pérola ou algo do gênero, dava para sentir o perfume. Seu rosto parecia estar com menos acne.
Ainda faltava um quilômetro e meio para chegar à sede da comuna. Tivemos de ir empurrando a bicicleta.
Na entrada do abatedouro, encontramos Chen Nariz. Carregava a filha nas costas.
Assim que nos viu, Chen Nariz fechou a cara. Seu olhar me deixou envergonhado. Ele deu meia-volta com a criança nas costas. Era óbvio que não queria falar comigo.
Chen Nariz!”, o chamei mesmo assim.
Opa, pensei que fosse alguma celebridade!”, suas palavras pareciam cobertas de espinhos. Lançou um olhar de ódio para Leoazinha.
Libertaram você?”
Minha filha está doente, com febre”, disse Nariz. “Eu nem queria ser libertado, tinha o que comer e beber, era melhor ficar lá o resto da vida.”
Preocupada, Leoazinha aproximou-se, estendeu a mão para tocar a testa de Chen Orelha.
Chen Nariz virou o corpo para se afastar dela.
Leve-a depressa para tomar soro no hospital”, disse Leoazinha, “está com pelo menos trinta e nove de febre.”
E aquilo lá é hospital?”, disse Chen Nariz com raiva. “É um matadouro!”
Sei que nos odeia”, disse Leoazinha, “mas não tivemos outro jeito.”
Como não tiveram outro jeito?”, perguntou Nariz, “vocês têm todos os jeitos.”
Chen Nariz”, eu disse, “a criança não tem culpa. Vamos, vou com você.”
Não, obrigado”, desdenhou, “não quero atrapalhar seu momento de felicidade.”
Chen Nariz… o que posso te dizer?”
Não precisa me dizer nada, ainda achava que você era um ser humano, agora percebi que não é!”
Diga o que quiser, mas leve a criança já para o hospital”, eu disse, enfiando algum dinheiro no bolso dele.
Chen Nariz conseguiu livrar uma mão, tirou o dinheiro do bolso e jogou no chão: “Seu dinheiro fede a sangue!”.
Foi embora de cabeça erguida, carregando a menina nas costas.
Fiquei ali atônito, vendo-o se afastar passo a passo. Me abaixei para pegar o dinheiro do chão e enfiei-o de volta no bolso.
Ele tem uma antipatia profunda por vocês”, eu disse, olhando para Leoazinha.
Isso é culpa dele mesmo”, respondeu ressentida, “e nossas amarguras, quem é que ouve?”
Para o registro de casamento era necessária, em tese, uma carta de apresentação emitida pela minha unidade do Exército. Mas o auxiliar de Assuntos Civis, Lu Mazi, disse todo sorridente: “Não precisa mais, sua tia já tinha me avisado. Corre Corre, meu filho também está servindo na sua unidade, se alistou no ano retrasado. Ele é muito inteligente, aprende rápido, dê uma atenção para ele, está bem?”.
Hesitei por um instante quando ia deixar a impressão digital no livro de registros. Porque me lembrei do momento em que estive ali com Wang Renmei. Foi no mesmo livro de registros, na mesma sala, com o próprio Lu Mazi. Na época, deixei a impressão do meu indicador, bem vermelha, e Wang Renmei exclamou, surpresa: “Nossa, é uma espiral!”. Lu Mazi olhou para mim e para Leoazinha e disse com um sorriso forçado: “Wan Perna, como você tem sorte no amor, casou-se com a moça mais bonita da nossa comuna!”. Apontando para o livro de registros, ele continuou: “Deixe logo sua impressão digital, por que a hesitação?”.
Soou como ironia — e era ironia mesmo. Dane-se, seja o que for. Pronto, pressiono o dedo sem titubear! Pensei comigo que muitas coisas em nossa vida já estavam predeterminadas. É melhor levar o barco conforme a corrente do que remar contra ela. Além do mais, numa situação como essa, se eu não deixasse minha impressão digital acabaria com a reputação de Leoazinha. Eu já havia trazido azar para uma mulher, não podia prejudicar uma segunda.

Mo Yan, in As rãs

Grande Gedeão

Gouvêia. Houve algum gigante desse nome? Mostrado outro mourejador — no em que ainda não vige a estória — físico, muscular; incogitante. Os Gouvêias em geral por lá são assim. Louvavam-no homem mui reformado e exemplar, prontificado de caráter, na pobreza sem projeto.
Tinha: dois alqueires, o que era nem sítio, só uma “situação”; e que sem matatempo ele a eito lavrava, os todos sóis, ano a ano, pelo sustento seu, da mulher, dos filhos. Excepto que em domingos e festas improcedia, esbarrava, submisso à rústica pasmaceira. Idiotava. Imitava. Ia à missa.
Entrequanto hospedou o lugar a santa-missão — três padres rubros robustos, goelas traquejadas e escolhidas, entrementes; capaz cada um de atroado pregar o dia inteiro.
A igreja cheia, o povo, via-se ali outrossim Gedeão, no acotovelo e abafo, se lhe dava.
Se disse, depois, que então já andava ele desengrivado. Diz-se que de manhas meras, quão e tão. Se diz aliás que a gente troca de sombra, por volta dos quarenta, quando alma e corpo revezam o jeito de se compenetrar. E quem vai saber e dizer? Em Gedeão desprestava-se atenção.
Mas o redentorista bradava a fé, despejada, glosava os fortíssimos do Evangelho. Informou: — “Os passarinhos! — não colhem, nem empaiolam, nem plantam, pois é... Deus cuida deles.” Em fato, estrangeiro, marretou: — “Vocês sendo não sendo mais valentes que os pássaros?!”
Deu em Gedeão — o que ouviu em cochilo — por isso mesmo repalavras, com ponta, o para se fechar na ideia; falado estava.
Solerte semelhante, o estilo dos pássaros... sem semeio, ceifa, atulho? Isso incumbiu-o. Ipsisverbal, a indicatura. Sacudiu-se; qualquer luz é sempre nova. Se benzeu e saiu, já de espírito pleno: reunida a família, endireitou-a para casa. Sabiá, o joão-tolo, alma-de-gato, gavião... em todo o volume de sua cabeça. Desagachou-se.
Sentou-se com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um dique: — “Vou trabalhar mais não.” Sério como um cavalo de circo, cruzou pernas e braços. Escutavam-no consternados.
O que, raro, foi. Gedeão, em encasqueto, alforriara-se do braçal. Impostoria. Ou o empaque: por rijas fadigas, duro jugo. Era loucura e tanta! Invalidava-se — o que importava miséria. Falaram do caso; havendo o de que se falar. Já vinham lá os amigos-de-jó.
E escabrearam-se: vosso Gedeão, no não é que não, sem correr-se nem recear, moucou-se. Mas a prumo, recorreto, cordial, para demonstrar a quase nenhuma maluquez. Somava mor com só o fino e o todo. Deixou os sapos na lagoa.
Tinha de usar-se: o à-toa tornava mister a domingueira roupa, calçado, e intatas maneiras — sem propósito nem alvo, como um bom espirro — na utilidade definitiva da semana. Domingo de não se estragar. Diverso de antes, em acômodo, temia menos fuxicar-se, sujar-se, discordar das horas.
Irosa, chorosa, punha-lhe a mulher o de-comer, lavava-lhe as camisas; brava para os filhos, que o olhavam duplicado, quiçá com inveja. Fé é o que abre no habitual da gente uma invenção, Gedeão, entre outros alívios, o que abala a base. Teimava aceso, em si, tralalarava. O à-toa havia de desempenhar-se. Ele bebendo? Não. Se todos fizessem assim, eh? — “Não fazem.”
Queriam-lhe os motivos, aventavam. Increpou-o mesmo o padre, iterativo, de contra o jus e o fas: — “Quem põe e não tira, faz monte. Quem tira e não põe, faz buraco...” Gedeão fingia coçar a cabeça, como quando o pato anda de lado. Mal imaginava sem muitas vírgulas e pontos, no argumento com fundamento: o céu, superedificante, de Deus, que amarela o milho maduro. Ele e as aves.
Desfez no padre depois, de confuto, pensou um sussurro: — “Missionário é mestre deles...” — e aquele já longe andava. Era homem entendido de si, sua noção abecedada, a ver verdades.
Nem ia mofar, sem achar quê, no Afundado, em seu dois-alqueires, só a rodar a visão fortuna. Visitava este universo e o arraial, onde comprava fiado; viam-no feliz como o se alastrar da abobrinha nova, forte como testa de touro preto.
Deu-lhes de supor: que ali o plus e extra houvesse, seus silêncios parecendo cheios de proveito. Descobrira acaso enterrada panela de dinheiro, somente e provavelmente, pelo que, certífico, estudava o mandriar, guardada ainda sua munificácia, jubiloso do achado. O segredo circula, quando mais secreto? O grão respeito começava.
Vagava-lhe tempo e o repouso mandava-o meditar — renovado o carretel de ideias — de preguiçoso infatigável. Vigiava. Atento, a-certas, ao em volta: ao que não se passava. Nisso o admiravam.
De pura verdade, recuidasse em que os pássaros não voam de-todo no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos ninhos, de alt’arte; pela moradia — o joão-de-barro? Decidiu uns outros movimentos.
Vender quis o Afundado. Tolheu-o a mulher e o inquinou: de malandrado dôido e impróvido acordadamente, sonhando à fiú-za de nem-nada. Tocou-o embora.
Gedeão dispôs-se: — “Isso eu não embargo...” Emprestaram-lhe cavalo magro, patas e cabeça, alazãozérrimo. Saía — concreto como o chão de lá, sucinto em gume — a ter-se e dar-se.
Não houve-que.
Logo o cercaram. Propunham-lhe, de urgente repente, ágios, ócios, negócios, questavam-no. O por exemplo. Aceitasse gerir, de riba, o rumo de fazenda, das Jiboias, onde a casa-grande se retelhava?
Isso o Gedeão meneava e mais — com fagulhas financeiras — ao curto crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente, visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço.
E — tome realidade! Vindo-lhe, com pouco, cifrão e caduceu, quantias que tantas: seu dinheiro estava já em aritméticas. Reavultava, prezado ante filhos e mulher — avoado — apotestado, sócio da sábia vida. O tempo ajuntara mais gente em redor dele.
Agora acabou-se o caso. De Gedeão, grande, conforme os produzidos fatos. No estranhado louvor de desconhecidos, vizinhos e parentes, festejando-se. Sendo que pasma-os ainda hoje — e fez-lhes crer que a Terra é redonda. Alelúia.

Guimarães Rosa, in Tutameia

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Neste mesmo lugar | Áurea Martins e Cristovão Bastos

Dos eruditos


Enquanto eu dormia, uma ovelha comeu da coroa de hera em minha cabeça — comeu e disse: “Zaratustra não é mais um douto”.
Falou e foi-se embora, empertigada e orgulhosa. Uma criança me contou isso.
Gosto de deitar-me aqui onde as crianças brincam, junto ao muro arruinado, entre cardos e papoulas-vermelhas.
Ainda sou um homem douto para as crianças, e também para os cardos e papoulas-vermelhas. São inocentes, mesmo em sua maldade.
Mas para as ovelhas não o sou mais: assim quer meu destino — bendito seja!
Pois esta é a verdade: saí da casa dos doutos;80 e, além do mais, bati a porta atrás de mim.
Por tempo demais minha alma esteve sentada à sua mesa; não fui, como eles, treinado para o conhecer como se treina para quebrar nozes.
Amo a liberdade e o ar sobre a terra fresca; prefiro dormir sobre peles de bois do que sobre seus títulos e dignidades.
Sou demasiado aquecido e queimado por meus próprios pensamentos: muitas vezes isso me tira o fôlego. Tenho de sair ao ar livre, longe de todos os quartos empoeirados.
Mas eles se acham friamente sentados na fria sombra: querem ser apenas espectadores em tudo, e evitam sentar-se ali onde o sol queima os degraus.
Como os que ficam parados na rua e olham boquiabertos para a gente que passa: assim aguardam eles também, e olham boquiabertos para os pensamentos que outros pensaram.
Se alguém os agarra com as mãos, desprendem pó como sacos de farinha, involuntariamente; mas quem adivinharia que o seu pó vem do trigo e do amarelo deleite dos campos de verão?
Quando se fazem de sábios, dão-me arrepios seus pequenos ditos e verdades: sua sabedoria frequentemente exala um odor, como se proviesse do pântano: e, em verdade, nela já ouvi também um sapo a coaxar!
Eles são habilidosos, têm dedos espertos: que quer minha simplicidade junto à sua diversidade? De fiar, tecer e atar entendem seus dedos: assim produzem eles as meias do espírito!
Eles são bons relógios: cuide-se apenas de lhes dar corda propriamente! Então indicam a hora sem falhas, fazendo um modesto ruído.
Trabalham como moinhos e como trituradores: basta lançar-lhes os cereais! — eles bem sabem moer pequeno o grão e torná-lo em pó branco.
Eles se observam atentamente e não têm confiança uns nos outros. Inventivos nas pequenas astúcias, esperam por aqueles cujo saber tem os pés mancos — esperam como aranhas.
Sempre os vi prepararem veneno com cautela; e nisso sempre usavam luvas de vidro nos dedos.
Também sabem jogar com dados chumbados; e os vi jogando tão fervorosamente que suavam.
Eles me desconhecem, e eu a eles, e suas virtudes me ofendem ainda mais o gosto do que suas falsidades e seus dados chumbados.
E, quando eu morava com eles, morava acima deles. Por causa disso zangaram-se comigo.
Eles não querem saber de alguém a andar sobre suas cabeças; então puseram madeira, terra e imundície entre mim e suas cabeças.
Assim amorteceram o som de meus passos: e até agora os que pior me ouviram foram os mais doutos.
Todos os erros e falhas humanas puseram entre si próprios e mim: — o que chamam de “duplo piso” em suas casas.
Apesar disso, ando com meus pensamentos acima de suas cabeças; e, mesmo se quisesse andar sobre minhas próprias falhas, ainda estaria acima deles e de suas cabeças.
Pois os homens não são iguais: assim fala a justiça. E aquilo que eu quero não podem eles querer!

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

Hein?

Cadernos de Lanzarote | 4 de Junho de 1993

Na Feira aparece uma pessoa a comprar todos os meus livros. Põe-nos todos diante de mim para que os autografe, os grossos e os finos, os caros e os baratos, trinta e tal contos de papel, conforme vim a saber depois, e o que me desconcerta é que o homem não é um convertido recente ao saramaguismo, um adepto de fresca data, um neófito disposto às mais loucas ousadias, pelo contrário, fala do que de mim leu com à-vontade e discernimento. Resolvo-me a perguntar-lhe a razão da ruinosa compra, e ele responde simplesmente, com um sorriso onde aflorou uma rápida amargura: “Tinha-os todos, mas ficaram na outra casa.” Compreendi. E depois de ele se ir embora, ajoujado sob a carga, pus-me a pensar na importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas…

De duas, uma: ou eu sofro de mania de perseguição, ou de facto anda uma matilha de sabujos a ladrar-me às canelas e a morder quando pode. Estava, posto em sossego, na Feira, a assinar os meus livrinhos quando se me chega o Armando Caldas que, passado um bocado, começa a contar uma história. Que ele e o seu grupo de teatro — o Intervalo — participaram na organização da homenagem ao Manuel Ferreira, essa mesma para a qual, a pedido da Orlanda Amarílis, escrevi um pequeno texto. Que, como tudo custa dinheiro, e cada vez mais, pediu à Secretaria de Estado da Cultura um subsídio, cujo, milagre dos milagres, foi concedido. Mil contos, melhor que nada. Crendo ser de boa diplomacia, o Caldas lembrou-se de colocar uma cereja no bolo, isto é, pedir também ao Santana Lopes uma declaração para ser lida na homenagem, sem pensar que o dito Lopes poderia, por sua vez, lembrar-se de lhe pedir a lista das pessoas que igualmente tinham sido convidadas a escrever. Vinte e quatro horas depois de comunicados os nomes — Maria Velho da Costa, António Alçada Baptista, Urbano Tavares Rodrigues e o criado de Vocências — recebia o desolado Caldas a notícia de que o subsídio tinha sido cancelado. Causa? Não foi dita. Parece que mais tarde a Secretaria de Estado quis emendar a mão, prometendo 300 contos, mas aí o Armando Caldas encheu-se de brios e mandou-os passear. Com dinheiros arranjados aqui e ali, a homenagem não deixaria de se fazer. E agora a pergunta: o que foi que levou o Lopes a cancelar o subsídio e a não escrever a declaração? Receio de chamar ao Manuel Ferreira o escritor da Terra Nova, que também é ilha? Ou, como é mais provável, nojo de misturar-se com os declarantes, de aparecer ao lado de um deles? E qual, se é este o caso? Fátima? Não creio. Alçada? Tão-pouco. Urbano? Duvido. Eu? Sendo o Lopes aquele bom católico que conhecemos, o confessor deve saber…

Andava há que tempos a dizer que o D. João II estava morto e ninguém me queria crer. Agora não houve mais remédio que enterrá-lo, a ele e ao cheiro que já deitava: o Judas admitiu, enfim, que a Televisão não fará nada comigo. Como para mim não era novidade, fiquei calmo como estava antes. E, no fundo, com uma enorme sensação de alívio.

José Saramago, in Cadernos de Lanzarote

Velha infância | Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Davi Moraes e Pedro Baby, 2003

A carioca Marisa Monte (1967) e o baiano Carlinhos Brown surgiram – junto com Cássia Eller, Ed Motta e Adriana Calcanhotto – como as melhores novidades da MPB nos anos 1990. Originais, talentosos, independentes e muito diferentes entre si, os dois se tornaram parceiros com a belíssima “Segue o seco”, gravada por Marisa em 1994, um grande sucesso de público e de crítica.
Desde o início triunfal de sua carreira, aos 20 anos, com o megassucesso “Bem que se quis” (versão de Nelson Motta de “E pò che fà”, do italiano Pino Daniele) e a extraordinária regravação de “Comida”, dos Titãs, Marisa se aproximou de Arnaldo Antunes, que foi seu primeiro parceiro quando ela começou sua carreira de autora em seu segundo disco, com a canção “Beija eu” (1990) e seguiu como seu principal parceiro, ao lado de Brown, até hoje.
O paulistano Arnaldo Antunes surgiu como compositor e frontman dos Titãs nos anos 1980 e dez anos depois era considerado o melhor letrista de sua geração. Com o início de sua carreira solo em 1992, começou a compor com vários parceiros, e uma das mais frequentes e de mais sucesso foi Marisa Monte, pela perfeita sincronia que encontravam entre letra e música.
Em 2002, juntando suas diferentes origens, formações e estilos, a carioca, o paulista e o baiano criaram os Tribalistas e produziram o maior sucesso do ano no Brasil e um dos discos brasileiros de maior sucesso na França, na Itália, em Portugal, na Espanha e na Argentina em 2003, mesmo sem fazerem nenhuma apresentação pública ou entrevista do grupo.
O extraordinário sentido rítmico e popular de Brown se uniu à musicalidade de Marisa, desenvolvida no jazz, no samba e na música clássica, e à inteligência poética clássica e vanguardista de Arnaldo para criar a melhor síntese da MPB do terceiro milênio com os Tribalistas.
Entre grandes sucessos do disco, como “Já sei namorar”, “Carnavália”, “Um a um”, “O amor é feio”, o maior foi “Velha infância”. Além dos três Tribalistas, foram coautores os guitarristas Davi Moraes (filho de Moraes Moreira) e Pedro Baby (filho de Pepeu Gomes), numa síntese de quatro décadas de música brasileira e como expressão do espírito de brincadeira entre amigos que inspirou o disco.
E a gente canta / E a gente dança / E a gente não se cansa / De ser criança / A gente brinca / Na nossa velha infância.”

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

O espelho de vento-e-lua

Em um ano, o sofrimento de Kia Yui se agravou. A imagem da inacessível senhora Fênix consumia seus dias; os pesadelos e a insônia, as suas noites.
Uma tarde, um mendigo taoista pedia esmolas na rua e proclamava que podia curar as doenças da alma. Kia Yui mandou chamá-lo. Disse-lhe o mendigo: “Seu mal não sara com remédios. Tenho aqui algo que o curará se seguir minhas indicações”. Tirou da manga um espelho polido nas duas faces, com a seguinte inscrição: Precioso Espelho de Vento-e-Lua.
Acrescentou o mendigo: “Este espelho vem do Palácio da Fada do Terrível Despertar e tem a virtude de curar os males causados pelos ventos impuros. Evite, porém, olhar o verso. Amanhã voltarei para buscar o espelho e para felicitá-lo por suas melhoras”. Não quis aceitar as moedas que lhe foram oferecidas.
Kia Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe.
O espelho refletia sua caveira. Amaldiçoou o mendigo e quis olhar o verso do espelho. Lá do fundo, a senhora Fênix, esplendidamente vestida, lhe fazia sinais. Kia Yui sentiu-se arrebatado, atravessou o metal e realizou o ato de amor. Fênix acompanhou-o até a saída.
Quando Kia Yui acordou, o espelho estava ao contrário e novamente lhe mostrava a caveira. Esgotado pelas delícias do lado feliz, Kia Yui não resistiu a tentação de olhá-lo uma vez mais. A senhora Fênix lhe fazia sinais, e ele cruzou o metal novamente e novamente fizeram amor. Isto ocorreu umas quantas vezes. Na última, dois homens o prenderam quando saía e o acorrentaram. “Eu os seguirei”, murmurou, “mas deixem-me levar o espelho”.
Foram suas últimas palavras.
Encontraram-no morto, sobre o lençol manchado.

Tsao Hsue-qin, Sonho do aposento vermelho, in Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Cálice que não se cala


Chico é todo ele palavra.
Esse o seu reino, a sua mátria,
a razão de seu viver.
Frei Betto

Antes de mais nada, propomos que se ouça a canção “Cálice”, cuja letra nos suscita interpretações e reflexões ao gosto e à sensibilidade particulares. Trata-se de uma das mais célebres e inesquecíveis “canções de protesto” de Chico Buarque de Hollanda. De fato, é preciso ouvir a melodia, sentir cada frase, cada estrofe, cada entrada do refrão, e deixar o corpo e a mente inundarem-se com a energia sonora que nos envolve, a cada vez que os acordes e a voz do intérprete nos alcançam e nos sensibilizam com seu vigor poético e musical. Que se ouça, portanto, a música, seguindo-se a letra.
Um dos mais intelectualizados compositores e intérpretes da música popular brasileira, Chico Buarque de Hollanda destaca-se, pela intensidade de sua obra musical e literária, como um dos nomes de alto nível criativo na segunda metade do século XX e na contemporaneidade. Suas origens familiares possibilitaram-lhe uma vasta formação literária de base, com leituras diversificadas, tornando-o portador de uma sensibilidade criativa invulgar, um senso de contextualização artística, social e histórica dos mais lúcidos entre os artistas brasileiros contemporâneos. Tanto assim que veio a se tornar também escritor, a partir da década de 1970, ao lançar a novela pecuária Fazenda modelo,11 uma alegoria do país submetido à ditadura. À novela se seguiriam romances de sucesso de público e de crítica, que receberam alguns dos prêmios literários mais importantes e foram adaptados para o cinema.
Chico Buarque é um intelectual que dialoga de modo fértil e efetivo com duas vertentes da cultura, tão próximas, mas às vezes distanciadas na prática cotidiana, que são a música popular e a literatura. Na música popular, sua carreira tem sido longa e muito produtiva, com a conquista de diversos prêmios importantes. Na sua trajetória, destacam-se as ruidosas participações nos célebres festivais de música popular brasileira, da TV Record, nos anos 1960, ao lado de futuros ícones da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, José Carlos Capinan, Geraldo Vandré e outros.
O compositor, intérprete e escritor foi um inimigo da ditadura militar (1964-1985) que dominou a cena política do país, submetendo a sociedade e os artistas e intelectuais em geral a uma censura odiosa e tenaz, capaz de mutilar, destruir e vetar obras no campo do teatro, da literatura e, em especial, da música popular, sobretudo a partir de 1968, considerado o “ano que não terminou”.12 Buarque foi um dos compositores mais censurados e perseguidos pelo regime de então, chegando mesmo a adotar o pseudônimo de “Julinho da Adelaide” para tentar escapar da fúria dos censores. Na primeira metade dos anos 1970, foi intimado várias vezes a depor, em longos interrogatórios, no Exército e na Polícia Federal.
Esse enquadramento histórico, político e cultural levou alguns estudiosos a classificarem as composições de Chico, aquelas de conteúdo antiditadura, como canções de protesto, que seriam uma vertente marcada, circunstancial e efêmera dentro da vasta produção do compositor. No entanto, à distância temporal e histórica, precisamos rever esse ponto de vista e evitar a utilização automática desse rótulo de época, conforme assinala Anazildo Vasconcelos da Silva. Num trabalho pioneiro, o estudioso da obra buarqueana procurava, segundo afirma,

[...] combater as interpretações que, de uma forma generalizada, prendiam a poesia de Chico Buarque ao contexto circunstancial da canção de protesto, advertindo que enquadrá-la a uma circunstância efêmera, qualquer que fosse sua natureza, seria negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma.

Em seu ensaio, o estudioso procura provar a existência de um projeto poético buarqueano, configurado por meio da elaboração intertextual, vinculado a um referente poético internamente elaborado, configurando uma produção lírico-musical que transcende sua localização temporal. O ensaísta tem razão. No caso da composição aqui apreciada, sua teoria se aplica de modo exemplar. “Cálice” é uma composição poético-musical que configura claramente o contexto da canção de protesto, como uma espécie de “gênero” característico da época, mas que transcende a aplicação política de momento, para se tornar efetiva obra artística que tem permanência e interesse constante, como objeto estético que resiste ao tempo e às circunstâncias de sua criação.
Entre as diversas composições proibidas, “Cálice” é uma das que mais sofreram represálias impingidas pela censura do sistema ditatorial, de forma curiosa e inusitada. Rinaldo de Fernandes registra: “No show Phono 73, realizado em São Paulo, a gravadora Phonogram desliga os microfones para impedir que Chico e Gilberto Gil cantem a melodia (a letra tinha sido proibida) de ‘Cálice’”. Naquela oportunidade, Chico Buarque e Gilberto Gil executam a melodia, balbuciando uma pseudoletra quase ininteligível, com fortes sugestões sonoras, representando, no palco, seu repúdio à censura à qual a composição estava submetida. Nessa execução exemplar, os intérpretes evidenciam a palavra, em duplo jogo semântico, Cálice/Cale-se, pronunciada enfaticamente por Chico Buarque, potencializando lírica e politicamente a ambiguidade sonora. No contexto, a expressão pronunciada tanto era o substantivo “cálice” como o verbo pronominal “cale-se”. Enquanto os artistas apresentavam a canção proibida, interpretando-a sonoramente “em estado de censura”, eram ovacionados pela plateia presente, na qual se achava, entre outros artistas, o poeta e compositor Vinicius de Moraes.
A melodia de “Cálice” tem um tom solene e reiterativo, destacando-se a veemência sonora do refrão, que é forte, afirmativo, como um apelo agregador das consciências:

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
[...]
De vinho tinto de sangue

O vocativo “Pai” firma a posição da voz lírica, que se dirige a um símbolo em tom de veemente súplica. O pai é, ao mesmo tempo, no contexto simbólico da música, hierarquicamente, o superior e o protetor. Assim, essa invocação remonta indiretamente à simbologia cristã. A tradição sustenta que Jesus Cristo, ao representar o Pai Superior, tomou o cálice e sagrou o vinho e o pão como símbolos da religação (re-ligare) entre a condição terrena e o poder supremo. A repetição do verso fixa a liturgia da palavra, sagrando-a num ritual de aproximação e súplica, como uma oração/pedido à divindade. Todavia a aplicação semântica aqui não é religiosa, mas sim política e alegórica. Trata-se de uma simbologia de segundo grau, na medida em que podemos interpretar o sentido de “Pai” como voz suprema e geral, instância acima do indivíduo. Ou seja, esse Pai é o detentor do poder abstrato a ser invocado, e que, no contexto dos anos 1970, só poderia ser o povo, fonte de um poder coletivo capaz de salvar o país da ditadura.
O cálice, que seria sagrado, na verdade, encontra-se conspurcado pelo vinho sacrificial, que é o sangue dos cidadãos assassinados pelo regime de exceção. Não é o sangue sagrado da doação, mas o vinho tinto, líquido obscuro, do sacrifício daqueles que lutaram por liberdade e foram imolados/assassinados nas câmaras de tortura, dando a vida pelo ideal de liberdade e justiça, em prol da coletividade. Há uma analogia explícita com o mito cristão, aqui revestido de uma simbologia social e política, como um apelo às sensibilidades – tanto políticas como religiosas – de uma população que achava na atuação política, ainda que clandestina, e na atuação, ainda que oficiosa, de parte do clero, um alento para manter a resistência à ditadura militar.
O vinho – tinto de sangue – não é um símbolo que redime as culpas, mas representa a vida das pessoas aniquiladas pela força bruta da ditadura. Dia a dia, como num ritual às avessas, o sangue dos presos políticos torturados e mortos nos porões do regime era servido à sociedade num cálice simbólico.
O ritual encontra-se, portanto, invertido, nulo de significado, conspurcado pela ação perversa do regime ditatorial. Nesse sentido, a canção, em tom grave e solene, pode ser vista como um ato de exorcismo sacrificial do regime. O compositor se expõe publicamente, desafiando o poder e sua violência institucional. Mas, ao se expor ao público, também se imuniza, se resguarda, sob a proteção do Pai, do coletivo, do povo.
A frase melódica introdutória soa como um lamento que dá início à concentração mental necessária ao ritual de agravo e defenestração do mal. Nesse sentido, a canção tem uma qualidade operística, na medida em que contém uma narrativa, cifrada na pauta musical e na semântica de duplo sentido da letra, cabendo à plateia identificar e internalizar os sentidos e captar as mensagens subliminares, inclusive da execução no palco. A voz lírica representa a condição do indivíduo, cidadão brasileiro reprimido e ameaçado, que se dirige a uma consciência, símbolo do todo – o Pai/o País –, a consciência coletiva.
A voz lírica suplica ao pai – num tom grave de apelo, que o intérprete acentua na voz pausada e langorosa, a denunciar que o cálice é de vinho, porém tinto/manchado de sangue, o que denuncia o ritual macabro da tortura e do assassinato de pessoas perseguidas pelo poder da ditadura. “A tortura manobra a dor de forma diversa”,17 e a canção a denuncia como um mal que deve ser esconjurado pela viva voz e pelos atos de protesto.
A primeira estrofe da letra explicita o ponto de vista da voz lírica, num jogo de elucidação e escolha, sugestões e recusas, por meio de questões figurativas da realidade do país:

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

O tom dos versos é de questionamento e de ponderação, com argumentos que defendem a instauração de uma outra realidade, de superação do estado ditatorial. O que a voz lírica indaga é a impossibilidade de se aceitar a realidade amarga, a dor (a violência simbólica e factual) e a labuta (a militância) no enfrentamento do regime. A labuta é a luta contra a ditadura, contra a mentira e a força bruta. E, como havia censura e proibição de se utilizar livremente a palavra, os sentimentos e as convicções ficavam abafados no peito, gerando a angústia e a insatisfação daquelas vozes sociais, representadas por políticos de oposição, artistas, professores etc., silenciados e fustigados pela censura, pelos inquéritos, pelos interrogatórios, pela prisão, pela tortura e pelo assassinato.
Numa realidade vigiada, censurada e dirigida, a condição de cidadão, suposto “filho da pátria”, deteriora-se devido à destituição tácita de seu ser integral. A sua cidadania está cassada. E a ideia oficial de pátria, que o regime propaga como uma ideologia, é então ironizada como “santa”, porque pseudossacralizada pelo discurso oficial, por intermédio da propaganda do governo, em slogans do tipo “Brasil: ame-o ou deixe-o”, emblema maior da ditadura no seu auge, intimando o povo a aceitar o arbítrio institucionalizado. Para o poeta, melhor seria ser filho de outra ideia de pátria, aquela propugnada pelos cidadãos contrários ao regime. Essa seria uma realidade dinâmica e democrática, portanto “menos morta”, porque não submetida à mentira e à força bruta da ditadura, que determinava à força, com coerção policial e administrativa, o que devia ser a verdade oficial do país.
A segunda estrofe da composição destaca a dificuldade de se aceitar a condição aviltada de existir, numa sociedade amordaçada, sem direito à livre expressão:

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

A voz lírica refere-se às dificuldades do indivíduo diante das restrições estabelecidas pelo regime de força. A liberdade é cerceada e os discursos interditados. A interdição da palavra cria um vazio existencial para aqueles que tentam exercer a liberdade de expressão, sobretudo os artistas, escritores e jornalistas. Diante de tão dura realidade, é difícil manter-se silenciado. Na calada da noite, que simboliza o momento de introspecção e pico da consciência, avulta o estado de danação a que o indivíduo se vê submetido. E a consciência permanece buscando sua expressão, por meio do empenho volitivo que impele o indivíduo, destituído de seu lugar na polis, a tentar fazer algo, a fim de exercer a sua liberdade interior, recuperar o seu livre-arbítrio.
Não poder exercer a liberdade de expressão leva a voz lírica a responder laconicamente ao fato. Na calada da noite, a consciência se manifesta, quebrando o equilíbrio. É a crise existencial do indivíduo tolhido, cerceado, vigiado pelo sistema oficial. O silêncio imposto gera um desequilíbrio, daí a necessidade de “lançar um grito desumano”, como forma de quebrar a interdição e, assim, tentar ser escutado. O silêncio gera ansiedade e atordoa, condição em que a voz lírica declara-se atenta, pois o “monstro” pode emergir da lagoa, metáfora que ilustra a presença sorrateira do regime a vigiar e punir seus críticos e inimigos.
Na terceira estrofe, continuam o protesto e a reflexão provocativa, em tom de lamento e imprecação:

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

A ditadura é um sistema de ação, gerenciamento e governo da sociedade. Aqui ela é ironizada como “porca gorda”, que emperra, que não anda, pois obriga os cidadãos a ficarem estáticos diante do poder. E, assim, o poder também fica estático, em posição de vigilância dos cérebros e dos braços e das pernas, operando a contensão arbitrária contra o direito de pensar, ir e vir, e fazer. A palavra é – presa –, detida antes de se manifestar, ainda na garganta.

Talvez o mundo não seja pequeno [Cale-se!]
Nem seja a vida um fato consumado [Cale-se!]
Quero inventar o meu próprio pecado [Cale-se!]
Quero morrer do meu próprio veneno [Pai! Cale-se!]
Quero perder de vez tua cabeça [Cale-se!]
[...]

A cada estrofe, o refrão retoma o tom reflexivo, a fim de reafirmar o compromisso do sujeito do discurso perante si mesmo, a vida e a coletividade. Na estrofe final, reforçada com a veemente repetição do bordão – Cálice/Cale-se –, o pessimismo, antes manifesto, finalmente cede a uma hipótese relativamente otimista. Apesar da concepção estreita do poder central do país, que tudo apequena e avilta com seu tacão, resistem as consciências de que a realidade não se limita a isso. Ora, “talvez o mundo não seja pequeno” e o dinamismo possa tornar a vida algo em aberto, superando a ideia de um estado de coisas como “fato consumado”. Daí o espaço do querer se manifestar, apesar da conjuntura hostil, para “inventar o próprio pecado”, ou seja, tomar atitudes que sejam julgadas por si mesmo, em liberdade de pensar e agir.
Se a morte é uma possibilidade, que o cidadão possa “morrer do próprio veneno”, ou seja, em consequência de suas próprias atitudes, do seu livre-arbítrio. Por último, insinua-se a reivindicação de poder exercer a voz, de passar mensagens, por meio da música, e, com isso, influenciar as pessoas, de forma a despertar-lhes a consciência – que elas possam se indignar, que possam mudar/perder de vez a cabeça, insurgindo-se contra o regime.
Cálice” é, inegavelmente, uma canção de protesto. Mas não se limita a essa condição conjuntural. Trata-se de uma composição de alto valor lírico por sua concepção sígnica, sua estrutura poética, seu jogo semântico de ambiguidades, por sua feitura artística. Daí sua consistência textual e sua permanência para além de seu contexto particular. O poema transcende o fato histórico no qual se engendrou, como resposta a uma urgência do momento. Conforme destaca Anazildo Vasconcelos da Silva:

O protesto ressaltado na canção de Chico Buarque resultava, naquela época, da insistência do poeta em referenciar a proposição de realidade interditada, mas permanecerá em toda a sua produção lírica, mesmo, e até com maior contundência, após a suspensão da interdição, confirmando as referências que fiz ao valor poético da obra de Chico Buarque, que, como toda poesia autêntica, rompeu com os possíveis condicionamentos externos inerentes à proposição de realidade pressuposta, não se prendendo a um contexto circunstancial.

Cálice” é uma canção ímpar e emblemática na MPB, pelo poder de evocação à atitude de resistência da sociedade à ditadura militar e pelo seu poder de comunicação e de permanência, mesmo em face da implacável censura que sofreu na época. Em toda a composição, os versos cadenciam-se no andamento da linguagem musical, de modo equilibrado e evocativo, fixando-se na mente e na dicção dos ouvintes, como um apelo para cantá-la e refletir sobre os sentidos do texto. Como bem observa o crítico Tárik de Souza:

Liberado pela censura sete anos depois de composto, “Cálice” supera a defasagem do tempo com seu refrão proparoxítono que repete o fenômeno unânime de “Construção”.

De fato, “Cálice” é uma composição até hoje bastante executada por músicos amadores e profissionais, em apresentações públicas e particulares. Essa condição de objeto vivo da cultura torna-a cada vez mais um ícone da música brasileira, a par de sua importância histórica, na luta pela liberdade de expressão e pelos direitos civis, e como libelo contra o amordaçamento imposto ao povo brasileiro pela ditadura militar.

Aleilton Fonseca, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos (Org. Rinaldo de Fernandes)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Yamandu Costa e Antônio Zambujo | Resposta ao tempo.

Conhecimento de Jorge de Lima

Era a negra Fulô que nos chamava
de seu negro vergel. E eram trombetas,
salmos, carros de fogo, esses murmúrios
de Deus a seus eleitos, eram puras

canções de lavadeira ao pé da fonte,
era a fonte em si mesma, eram nostálgicas
emanações de infância e de futuro,
era um ai português desfeito em cana.

Era um fluir de essências e eram formas
além da cor terrestre e em volta ao homem,
era a invenção do amor no tempo atômico,

o consultório mítico e lunar
(poesia antes da luz e depois dela),
era Jorge de Lima e eram seus anjos.

Carlos Drummond de Andrade, in Fazendeiro do Ar

Cowboy Henk

Capítulo 119 – Parêntesis

Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto:

________________

Suporta-se com paciência a cólica do próximo.

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Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

________________

Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.

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Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

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Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.

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Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Em seu poder

Em todos os lugares e momentos, está em seu poder:
I. consentir piedosamente com a sua condição atual;
II. comportar-se de maneira justa com aqueles ao seu redor;
III. exercer sua habilidade diante das impressões presentes, para que não seja absorvido por elas sem maiores inspeções.

Marco Aurélio, in Meditações

O Azarão | 13


Como de costume, papai e eu fomos para o trabalho no sábado, na casa dos Conlon.
Em vez de manter você em suspense (se é que você ainda liga para isso), eu podia muito bem dizer que, dessa vez, ela estava lá, linda como sempre.
Eu ainda estava trabalhando debaixo da casa, quando ela veio.
Ei, senti sua falta na semana passada — falei quando ela apareceu, e na mesma hora dei um tapa na cabeça, a frase era muito ambígua. Quero dizer, será que significava senti sua falta, como em “eu não vi você” (que era a mensagem pretendida) ou significava você partiu meu coração por não estar aqui, vaca idiota? Não tinha certeza de qual mensagem estava transmitindo. No fim das contas, só podia torcer para que ela pensasse que eu estava dizendo apenas que não nos vimos. Você não pode parecer muito desesperado em uma situação assim, mesmo que seu coração esteja acabando com você por dentro.
Ela falou: — Bem... — Meu Deus, ela disse isso com aquela voz que a tornava real. — Eu não fiquei aqui de propósito.
Que diabos queria dizer isso? — Como é que é? — Arrisquei perguntar.
Você ouviu. — Deu um sorriso. — Eu não fiquei aqui...
Por minha causa? Fez que sim com a cabeça.
Isso era ruim ou bom? Parecia ruim. Muito ruim.
Mas, então, também parecia bom, de um jeito doendo e distorcido. Será que ela estava gozando com a minha cara? Não.
Não queria ficar aqui porque tive... — Ela engoliu em seco. — ... medo de fazer papel de boba, como da última vez.
Da última vez? — perguntei confuso. — Não fui eu quem falou uma besteira? Fui eu, sim, quem disse “Gosto de trabalhar aqui”. — Lembrei e me encolhi.
Estávamos agachados, debaixo da casa, e as vigas de madeira, suspensas acima de nós, nos avisando de que perder a concentração nos deixaria com um belo machucado na cabeça. Fiz um esforço para não ficar ereto.
Pelo menos, você disse alguma coisa. — Ela insistiu no argumento.
De repente, uma coisa saiu de mim. Falei: — Não magoaria você. Bem, pelo menos, eu ia me esforçar pra caramba pra não magoar. Prometo.
Como é que é? — Ela deu um passo para trás. — O que você quer dizer?
Quero dizer, se... O fim de semana foi bom na semana passada? Jogar fora. Jogar conversa fora.
Foi. — Ela assentiu e ficou onde estava. — Fiquei na casa de uma amiga. — Então, voltou para mais perto. — Depois fomos até a casa de um cara, Dale.
Dale.
Por que o nome era tão familiar? Ah, não.
Ah, ótimo.
Dale Perry?
Dale Perry.
O colega de Greg.
Típico.
Um tremendo herói.
Podia ver que ela realmente gostava do cara.
Mais do que de mim.
Ele era um vencedor.
As pessoas gostavam dele.
Greg gostava.
Embora pudesse confiar em mim.
É. Dale Perry — respondeu ela (confirmando meus piores temores), balançando a cabeça e sorrindo. — Você conhece ele, não é? — É. Conheço. — Percebi, então, que Rebecca Conlon provavelmente era uma das garotas no grupo do Lumsden Oval, naquele dia que parecia ter acontecido décadas atrás.
Havia umas garotas parecidas com ela. O mesmo cabelo real. As mesmas pernas reais. O mesmo... Tudo fazia sentido. Ela era próxima, bonita e real.
Dale Perry.
Por pouco eu não disse que ele quase tinha queimado minha orelha havia pouco mais de um ano, mas me calei. Não queria que ela pensasse que eu era um desses caras totalmente ciumentos, que odiavam todo mundo que era melhor que eles, o que, na verdade, era exatamente o tipo de cara que eu era.
Minha melhor amiga diz que ele gosta de mim, mas eu não sei...
Ela continuou falando, mas eu não conseguia ouvir. Simplesmente, não podia. Por que diabos ela estava me contando aquilo? Era porque eu era apenas o filho do encanador e ia pra uma escola estadual caindo aos pedaços, enquanto ela, provavelmente, frequentava um colégio São qualquer coisa ou algo do tipo? Ou porque eu era um tipo de cara inofensivo e incapaz de morder? Bem, faltou pouco.
Quase a interrompi para dizer: “Ora, vá embora daqui com o seu Dale Perry”, mas não fiz isso. Eu a amava demais e não ia magoá-la, por mais que estivesse magoado.
Em vez disso, perguntei se conhecia Greg.
Greg Fiennes ou coisa parecida?
Fienni.
Conheço, sim. Como é que você o conhece? E, por alguma razão, um monte de lágrimas começou a se acumular nos meus olhos.
Ah — falei. — Já fomos amigos. — E me virei para continuar trabalhando e esconder meus olhos.
Bons amigos?
Droga de garota! — Meu melhor amigo — admiti.
Ah. — Ela fitava minhas costas. Eu podia sentir. Fiquei imaginando se ela estava entendendo o que se passava aqui. Talvez. Provavelmente. Sim, era provável, pois ela foi embora com um “Então, tá. Tchauziiinho” muito simpático. Será que já tinha ouvido isso antes? Claro que tinha, e senti uma pontada de realidade na garganta.
Toda aquela discussão não me ocupou durante o dia como a decepção da semana passada. Não. Dessa vez, me arrastei para fora daquilo.
Senti uma coisa horrível dentro de mim.
Me arrastando.
Papai me viu e me deu uma bronca por ser tão lento, mas eu não conseguiria seguir adiante. Você nem ia acreditar o quanto eu tentei, mas minhas costas estavam quebradas.
Meu espírito estava esmagado.
Tive a chance de acabar com ela.
Eu podia ter magoado ela.
Não magoei.
Não era consolo.
Durante o trabalho, muitas vezes precisei me acalmar, e era uma luta enorme. Era como se cada passo quisesse me prejudicar. As bolhas nas minhas mãos começaram a abrir, e o sentimento continuava a brotar dos meus olhos. Comecei a farejar o ar para encher meus pulmões, e, quando o dia acabou, fiz um esforço para sair da parte de baixo da casa e fiquei parado ali, esperando. Realmente queria me jogar no chão, mas me mantive de pé.
Me sentia ansioso, sujo, doente, só por ser eu. Qual era o problema comigo? Me sentia como o cachorro que tem raiva no livro que estava lendo para a escola, O sol é para todos. O cachorro manca e baba pela estrada, e o pai, Atticus, ele surpreende o filho ao atirar no animal.

Estou caminhando sobre uma cerca que parece se estender por uma eternidade. No entanto, por alguma razão, sei que ela vai parar em algum ponto. Sei que vai durar o tempo da minha vida.
Continue andando — digo para mim mesmo. Meus braços estão esticados para manter o equilíbrio.
De cada lado, tem ar e chão, tentando me forçar a pular para eles.
Pra que lado eu pulo? É de manhã, muito, muito cedo. É aquela hora em que ainda está escuro, mas você sabe que vai amanhecer. O azul escorre pelo preto. As estrelas estão morrendo.
A cerca.
A cerca, é de pedra, às vezes, é de madeira, e, às vezes, é de arame farpado.
Caminho nela e, ainda assim, sou tentado pelos lados que a acompanham.
Pula. — Ouço cada lado cochichar. — Pula aqui. Distância.
Lá fora, em algum lugar, ouço cães latindo, embora as vozes deles pareçam humanas. Latem, e, quando olho à minha volta, não posso vê-las. Posso apenas ouvir o latido que forma o público da minha jornada ao longo da cerca.
Violeta no céu.
Pernas pinicando.
Arrepios no lado direito.
Pensamentos em choque.
Passos.
Sozinho.
Dou um após o outro.
Agora, arame farpado.
Onde pulo.
A quem ouvir? Sol amarelo, céu avermelhado.
Primeira parte do sol. Franzindo a testa.
Última parte do sol. Um sorriso.
Dia escuro.
Ideias cobrem o céu.
Ideias são o céu.
Pés na cerca.
Um lado da cerca é vitória...
O... outro lado, derrota.
Caminho.
Sigo, caminhando.
Decidindo.
O suor domina.
Desce sobre mim, controlado, e escorre no meu rosto.
Vitória, de um lado.
Derrota, do outro.
As nuvens são incertas.
Palpitam no céu como rufos de tambor, como pulsação.
Tomo a decisão...
Pulo.
Alto. Alto.
O vento me pega, e, lá no alto, sei que me fará descer do lado da cerca que ele quiser.
Não importa onde desça: logo depois, sei que terá que voltar a escalar e continuar andando, mas, por enquanto, ainda estou no ar.

Markus Zusak, in O Azarão