terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O Azarão | 13


Como de costume, papai e eu fomos para o trabalho no sábado, na casa dos Conlon.
Em vez de manter você em suspense (se é que você ainda liga para isso), eu podia muito bem dizer que, dessa vez, ela estava lá, linda como sempre.
Eu ainda estava trabalhando debaixo da casa, quando ela veio.
Ei, senti sua falta na semana passada — falei quando ela apareceu, e na mesma hora dei um tapa na cabeça, a frase era muito ambígua. Quero dizer, será que significava senti sua falta, como em “eu não vi você” (que era a mensagem pretendida) ou significava você partiu meu coração por não estar aqui, vaca idiota? Não tinha certeza de qual mensagem estava transmitindo. No fim das contas, só podia torcer para que ela pensasse que eu estava dizendo apenas que não nos vimos. Você não pode parecer muito desesperado em uma situação assim, mesmo que seu coração esteja acabando com você por dentro.
Ela falou: — Bem... — Meu Deus, ela disse isso com aquela voz que a tornava real. — Eu não fiquei aqui de propósito.
Que diabos queria dizer isso? — Como é que é? — Arrisquei perguntar.
Você ouviu. — Deu um sorriso. — Eu não fiquei aqui...
Por minha causa? Fez que sim com a cabeça.
Isso era ruim ou bom? Parecia ruim. Muito ruim.
Mas, então, também parecia bom, de um jeito doendo e distorcido. Será que ela estava gozando com a minha cara? Não.
Não queria ficar aqui porque tive... — Ela engoliu em seco. — ... medo de fazer papel de boba, como da última vez.
Da última vez? — perguntei confuso. — Não fui eu quem falou uma besteira? Fui eu, sim, quem disse “Gosto de trabalhar aqui”. — Lembrei e me encolhi.
Estávamos agachados, debaixo da casa, e as vigas de madeira, suspensas acima de nós, nos avisando de que perder a concentração nos deixaria com um belo machucado na cabeça. Fiz um esforço para não ficar ereto.
Pelo menos, você disse alguma coisa. — Ela insistiu no argumento.
De repente, uma coisa saiu de mim. Falei: — Não magoaria você. Bem, pelo menos, eu ia me esforçar pra caramba pra não magoar. Prometo.
Como é que é? — Ela deu um passo para trás. — O que você quer dizer?
Quero dizer, se... O fim de semana foi bom na semana passada? Jogar fora. Jogar conversa fora.
Foi. — Ela assentiu e ficou onde estava. — Fiquei na casa de uma amiga. — Então, voltou para mais perto. — Depois fomos até a casa de um cara, Dale.
Dale.
Por que o nome era tão familiar? Ah, não.
Ah, ótimo.
Dale Perry?
Dale Perry.
O colega de Greg.
Típico.
Um tremendo herói.
Podia ver que ela realmente gostava do cara.
Mais do que de mim.
Ele era um vencedor.
As pessoas gostavam dele.
Greg gostava.
Embora pudesse confiar em mim.
É. Dale Perry — respondeu ela (confirmando meus piores temores), balançando a cabeça e sorrindo. — Você conhece ele, não é? — É. Conheço. — Percebi, então, que Rebecca Conlon provavelmente era uma das garotas no grupo do Lumsden Oval, naquele dia que parecia ter acontecido décadas atrás.
Havia umas garotas parecidas com ela. O mesmo cabelo real. As mesmas pernas reais. O mesmo... Tudo fazia sentido. Ela era próxima, bonita e real.
Dale Perry.
Por pouco eu não disse que ele quase tinha queimado minha orelha havia pouco mais de um ano, mas me calei. Não queria que ela pensasse que eu era um desses caras totalmente ciumentos, que odiavam todo mundo que era melhor que eles, o que, na verdade, era exatamente o tipo de cara que eu era.
Minha melhor amiga diz que ele gosta de mim, mas eu não sei...
Ela continuou falando, mas eu não conseguia ouvir. Simplesmente, não podia. Por que diabos ela estava me contando aquilo? Era porque eu era apenas o filho do encanador e ia pra uma escola estadual caindo aos pedaços, enquanto ela, provavelmente, frequentava um colégio São qualquer coisa ou algo do tipo? Ou porque eu era um tipo de cara inofensivo e incapaz de morder? Bem, faltou pouco.
Quase a interrompi para dizer: “Ora, vá embora daqui com o seu Dale Perry”, mas não fiz isso. Eu a amava demais e não ia magoá-la, por mais que estivesse magoado.
Em vez disso, perguntei se conhecia Greg.
Greg Fiennes ou coisa parecida?
Fienni.
Conheço, sim. Como é que você o conhece? E, por alguma razão, um monte de lágrimas começou a se acumular nos meus olhos.
Ah — falei. — Já fomos amigos. — E me virei para continuar trabalhando e esconder meus olhos.
Bons amigos?
Droga de garota! — Meu melhor amigo — admiti.
Ah. — Ela fitava minhas costas. Eu podia sentir. Fiquei imaginando se ela estava entendendo o que se passava aqui. Talvez. Provavelmente. Sim, era provável, pois ela foi embora com um “Então, tá. Tchauziiinho” muito simpático. Será que já tinha ouvido isso antes? Claro que tinha, e senti uma pontada de realidade na garganta.
Toda aquela discussão não me ocupou durante o dia como a decepção da semana passada. Não. Dessa vez, me arrastei para fora daquilo.
Senti uma coisa horrível dentro de mim.
Me arrastando.
Papai me viu e me deu uma bronca por ser tão lento, mas eu não conseguiria seguir adiante. Você nem ia acreditar o quanto eu tentei, mas minhas costas estavam quebradas.
Meu espírito estava esmagado.
Tive a chance de acabar com ela.
Eu podia ter magoado ela.
Não magoei.
Não era consolo.
Durante o trabalho, muitas vezes precisei me acalmar, e era uma luta enorme. Era como se cada passo quisesse me prejudicar. As bolhas nas minhas mãos começaram a abrir, e o sentimento continuava a brotar dos meus olhos. Comecei a farejar o ar para encher meus pulmões, e, quando o dia acabou, fiz um esforço para sair da parte de baixo da casa e fiquei parado ali, esperando. Realmente queria me jogar no chão, mas me mantive de pé.
Me sentia ansioso, sujo, doente, só por ser eu. Qual era o problema comigo? Me sentia como o cachorro que tem raiva no livro que estava lendo para a escola, O sol é para todos. O cachorro manca e baba pela estrada, e o pai, Atticus, ele surpreende o filho ao atirar no animal.

Estou caminhando sobre uma cerca que parece se estender por uma eternidade. No entanto, por alguma razão, sei que ela vai parar em algum ponto. Sei que vai durar o tempo da minha vida.
Continue andando — digo para mim mesmo. Meus braços estão esticados para manter o equilíbrio.
De cada lado, tem ar e chão, tentando me forçar a pular para eles.
Pra que lado eu pulo? É de manhã, muito, muito cedo. É aquela hora em que ainda está escuro, mas você sabe que vai amanhecer. O azul escorre pelo preto. As estrelas estão morrendo.
A cerca.
A cerca, é de pedra, às vezes, é de madeira, e, às vezes, é de arame farpado.
Caminho nela e, ainda assim, sou tentado pelos lados que a acompanham.
Pula. — Ouço cada lado cochichar. — Pula aqui. Distância.
Lá fora, em algum lugar, ouço cães latindo, embora as vozes deles pareçam humanas. Latem, e, quando olho à minha volta, não posso vê-las. Posso apenas ouvir o latido que forma o público da minha jornada ao longo da cerca.
Violeta no céu.
Pernas pinicando.
Arrepios no lado direito.
Pensamentos em choque.
Passos.
Sozinho.
Dou um após o outro.
Agora, arame farpado.
Onde pulo.
A quem ouvir? Sol amarelo, céu avermelhado.
Primeira parte do sol. Franzindo a testa.
Última parte do sol. Um sorriso.
Dia escuro.
Ideias cobrem o céu.
Ideias são o céu.
Pés na cerca.
Um lado da cerca é vitória...
O... outro lado, derrota.
Caminho.
Sigo, caminhando.
Decidindo.
O suor domina.
Desce sobre mim, controlado, e escorre no meu rosto.
Vitória, de um lado.
Derrota, do outro.
As nuvens são incertas.
Palpitam no céu como rufos de tambor, como pulsação.
Tomo a decisão...
Pulo.
Alto. Alto.
O vento me pega, e, lá no alto, sei que me fará descer do lado da cerca que ele quiser.
Não importa onde desça: logo depois, sei que terá que voltar a escalar e continuar andando, mas, por enquanto, ainda estou no ar.

Markus Zusak, in O Azarão

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