quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Dos eruditos


Enquanto eu dormia, uma ovelha comeu da coroa de hera em minha cabeça — comeu e disse: “Zaratustra não é mais um douto”.
Falou e foi-se embora, empertigada e orgulhosa. Uma criança me contou isso.
Gosto de deitar-me aqui onde as crianças brincam, junto ao muro arruinado, entre cardos e papoulas-vermelhas.
Ainda sou um homem douto para as crianças, e também para os cardos e papoulas-vermelhas. São inocentes, mesmo em sua maldade.
Mas para as ovelhas não o sou mais: assim quer meu destino — bendito seja!
Pois esta é a verdade: saí da casa dos doutos;80 e, além do mais, bati a porta atrás de mim.
Por tempo demais minha alma esteve sentada à sua mesa; não fui, como eles, treinado para o conhecer como se treina para quebrar nozes.
Amo a liberdade e o ar sobre a terra fresca; prefiro dormir sobre peles de bois do que sobre seus títulos e dignidades.
Sou demasiado aquecido e queimado por meus próprios pensamentos: muitas vezes isso me tira o fôlego. Tenho de sair ao ar livre, longe de todos os quartos empoeirados.
Mas eles se acham friamente sentados na fria sombra: querem ser apenas espectadores em tudo, e evitam sentar-se ali onde o sol queima os degraus.
Como os que ficam parados na rua e olham boquiabertos para a gente que passa: assim aguardam eles também, e olham boquiabertos para os pensamentos que outros pensaram.
Se alguém os agarra com as mãos, desprendem pó como sacos de farinha, involuntariamente; mas quem adivinharia que o seu pó vem do trigo e do amarelo deleite dos campos de verão?
Quando se fazem de sábios, dão-me arrepios seus pequenos ditos e verdades: sua sabedoria frequentemente exala um odor, como se proviesse do pântano: e, em verdade, nela já ouvi também um sapo a coaxar!
Eles são habilidosos, têm dedos espertos: que quer minha simplicidade junto à sua diversidade? De fiar, tecer e atar entendem seus dedos: assim produzem eles as meias do espírito!
Eles são bons relógios: cuide-se apenas de lhes dar corda propriamente! Então indicam a hora sem falhas, fazendo um modesto ruído.
Trabalham como moinhos e como trituradores: basta lançar-lhes os cereais! — eles bem sabem moer pequeno o grão e torná-lo em pó branco.
Eles se observam atentamente e não têm confiança uns nos outros. Inventivos nas pequenas astúcias, esperam por aqueles cujo saber tem os pés mancos — esperam como aranhas.
Sempre os vi prepararem veneno com cautela; e nisso sempre usavam luvas de vidro nos dedos.
Também sabem jogar com dados chumbados; e os vi jogando tão fervorosamente que suavam.
Eles me desconhecem, e eu a eles, e suas virtudes me ofendem ainda mais o gosto do que suas falsidades e seus dados chumbados.
E, quando eu morava com eles, morava acima deles. Por causa disso zangaram-se comigo.
Eles não querem saber de alguém a andar sobre suas cabeças; então puseram madeira, terra e imundície entre mim e suas cabeças.
Assim amorteceram o som de meus passos: e até agora os que pior me ouviram foram os mais doutos.
Todos os erros e falhas humanas puseram entre si próprios e mim: — o que chamam de “duplo piso” em suas casas.
Apesar disso, ando com meus pensamentos acima de suas cabeças; e, mesmo se quisesse andar sobre minhas próprias falhas, ainda estaria acima deles e de suas cabeças.
Pois os homens não são iguais: assim fala a justiça. E aquilo que eu quero não podem eles querer!

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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