quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Cadernos de Lanzarote | 4 de Junho de 1993

Na Feira aparece uma pessoa a comprar todos os meus livros. Põe-nos todos diante de mim para que os autografe, os grossos e os finos, os caros e os baratos, trinta e tal contos de papel, conforme vim a saber depois, e o que me desconcerta é que o homem não é um convertido recente ao saramaguismo, um adepto de fresca data, um neófito disposto às mais loucas ousadias, pelo contrário, fala do que de mim leu com à-vontade e discernimento. Resolvo-me a perguntar-lhe a razão da ruinosa compra, e ele responde simplesmente, com um sorriso onde aflorou uma rápida amargura: “Tinha-os todos, mas ficaram na outra casa.” Compreendi. E depois de ele se ir embora, ajoujado sob a carga, pus-me a pensar na importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas…

De duas, uma: ou eu sofro de mania de perseguição, ou de facto anda uma matilha de sabujos a ladrar-me às canelas e a morder quando pode. Estava, posto em sossego, na Feira, a assinar os meus livrinhos quando se me chega o Armando Caldas que, passado um bocado, começa a contar uma história. Que ele e o seu grupo de teatro — o Intervalo — participaram na organização da homenagem ao Manuel Ferreira, essa mesma para a qual, a pedido da Orlanda Amarílis, escrevi um pequeno texto. Que, como tudo custa dinheiro, e cada vez mais, pediu à Secretaria de Estado da Cultura um subsídio, cujo, milagre dos milagres, foi concedido. Mil contos, melhor que nada. Crendo ser de boa diplomacia, o Caldas lembrou-se de colocar uma cereja no bolo, isto é, pedir também ao Santana Lopes uma declaração para ser lida na homenagem, sem pensar que o dito Lopes poderia, por sua vez, lembrar-se de lhe pedir a lista das pessoas que igualmente tinham sido convidadas a escrever. Vinte e quatro horas depois de comunicados os nomes — Maria Velho da Costa, António Alçada Baptista, Urbano Tavares Rodrigues e o criado de Vocências — recebia o desolado Caldas a notícia de que o subsídio tinha sido cancelado. Causa? Não foi dita. Parece que mais tarde a Secretaria de Estado quis emendar a mão, prometendo 300 contos, mas aí o Armando Caldas encheu-se de brios e mandou-os passear. Com dinheiros arranjados aqui e ali, a homenagem não deixaria de se fazer. E agora a pergunta: o que foi que levou o Lopes a cancelar o subsídio e a não escrever a declaração? Receio de chamar ao Manuel Ferreira o escritor da Terra Nova, que também é ilha? Ou, como é mais provável, nojo de misturar-se com os declarantes, de aparecer ao lado de um deles? E qual, se é este o caso? Fátima? Não creio. Alçada? Tão-pouco. Urbano? Duvido. Eu? Sendo o Lopes aquele bom católico que conhecemos, o confessor deve saber…

Andava há que tempos a dizer que o D. João II estava morto e ninguém me queria crer. Agora não houve mais remédio que enterrá-lo, a ele e ao cheiro que já deitava: o Judas admitiu, enfim, que a Televisão não fará nada comigo. Como para mim não era novidade, fiquei calmo como estava antes. E, no fundo, com uma enorme sensação de alívio.

José Saramago, in Cadernos de Lanzarote

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