Gouvêia.
Houve algum gigante desse nome? Mostrado outro mourejador — no em
que ainda não vige a estória — físico, muscular; incogitante. Os
Gouvêias em geral por lá são assim. Louvavam-no homem mui
reformado e exemplar, prontificado de caráter, na pobreza sem
projeto.
Tinha:
dois alqueires, o que era nem sítio, só uma “situação”;
e que sem matatempo ele a eito lavrava, os todos sóis, ano a ano,
pelo sustento seu, da mulher, dos filhos. Excepto que em domingos e
festas improcedia, esbarrava, submisso à rústica pasmaceira.
Idiotava. Imitava. Ia à missa.
Entrequanto
hospedou o lugar a santa-missão — três padres rubros robustos,
goelas traquejadas e escolhidas, entrementes; capaz cada um de
atroado pregar o dia inteiro.
A
igreja cheia, o povo, via-se ali outrossim Gedeão, no acotovelo e
abafo, se lhe dava.
Se
disse, depois, que então já andava ele desengrivado. Diz-se que de
manhas meras, quão e tão. Se diz aliás que a gente troca de
sombra, por volta dos quarenta, quando alma e corpo revezam o jeito
de se compenetrar. E quem vai saber e dizer? Em Gedeão
desprestava-se atenção.
Mas
o redentorista bradava a fé, despejada, glosava os fortíssimos do
Evangelho. Informou: — “Os passarinhos! — não colhem, nem
empaiolam, nem plantam, pois é... Deus cuida deles.” Em fato,
estrangeiro, marretou: — “Vocês sendo não sendo mais
valentes que os pássaros?!”
Deu
em Gedeão — o que ouviu em cochilo — por isso mesmo repalavras,
com ponta, o para se fechar na ideia; falado estava.
Solerte
semelhante, o estilo dos pássaros... sem semeio, ceifa, atulho? Isso
incumbiu-o. Ipsisverbal, a indicatura. Sacudiu-se; qualquer luz é
sempre nova. Se benzeu e saiu, já de espírito pleno: reunida a
família, endireitou-a para casa. Sabiá, o joão-tolo, alma-de-gato,
gavião... em todo o volume de sua cabeça. Desagachou-se.
Sentou-se
com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um
dique: — “Vou trabalhar mais não.” Sério como um
cavalo de circo, cruzou pernas e braços. Escutavam-no consternados.
O
que, raro, foi. Gedeão, em encasqueto, alforriara-se do braçal.
Impostoria. Ou o empaque: por rijas fadigas, duro jugo. Era loucura e
tanta! Invalidava-se — o que importava miséria. Falaram do caso;
havendo o de que se falar. Já vinham lá os amigos-de-jó.
E
escabrearam-se: vosso Gedeão, no não é que não, sem correr-se nem
recear, moucou-se. Mas a prumo, recorreto, cordial, para demonstrar a
quase nenhuma maluquez. Somava mor com só o fino e o todo. Deixou os
sapos na lagoa.
Tinha
de usar-se: o à-toa tornava mister a domingueira roupa, calçado, e
intatas maneiras — sem propósito nem alvo, como um bom espirro —
na utilidade definitiva da semana. Domingo de não se estragar.
Diverso de antes, em acômodo, temia menos fuxicar-se, sujar-se,
discordar das horas.
Irosa,
chorosa, punha-lhe a mulher o de-comer, lavava-lhe as camisas; brava
para os filhos, que o olhavam duplicado, quiçá com inveja. Fé é o
que abre no habitual da gente uma invenção, Gedeão, entre outros
alívios, o que abala a base. Teimava aceso, em si, tralalarava. O
à-toa havia de desempenhar-se. Ele bebendo? Não. Se todos fizessem
assim, eh? — “Não fazem.”
Queriam-lhe
os motivos, aventavam. Increpou-o mesmo o padre, iterativo, de contra
o jus e o fas: — “Quem põe e não tira, faz monte. Quem tira
e não põe, faz buraco...” Gedeão fingia coçar a cabeça,
como quando o pato anda de lado. Mal imaginava sem muitas vírgulas e
pontos, no argumento com fundamento: o céu, superedificante, de
Deus, que amarela o milho maduro. Ele e as aves.
Desfez
no padre depois, de confuto, pensou um sussurro: — “Missionário
é mestre deles...” — e aquele já longe andava. Era homem
entendido de si, sua noção abecedada, a ver verdades.
Nem
ia mofar, sem achar quê, no Afundado, em seu dois-alqueires, só a
rodar a visão fortuna. Visitava este universo e o arraial, onde
comprava fiado; viam-no feliz como o se alastrar da abobrinha nova,
forte como testa de touro preto.
Deu-lhes
de supor: que ali o plus e extra houvesse, seus silêncios parecendo
cheios de proveito. Descobrira acaso enterrada panela de dinheiro,
somente e provavelmente, pelo que, certífico, estudava o mandriar,
guardada ainda sua munificácia, jubiloso do achado. O segredo
circula, quando mais secreto? O grão respeito começava.
Vagava-lhe
tempo e o repouso mandava-o meditar — renovado o carretel de ideias
— de preguiçoso infatigável. Vigiava. Atento, a-certas, ao em
volta: ao que não se passava. Nisso o admiravam.
De
pura verdade, recuidasse em que os pássaros não voam de-todo no
faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos
ninhos, de alt’arte; pela moradia — o joão-de-barro? Decidiu uns
outros movimentos.
Vender
quis o Afundado. Tolheu-o a mulher e o inquinou: de malandrado dôido
e impróvido acordadamente, sonhando à fiú-za de nem-nada. Tocou-o
embora.
Gedeão
dispôs-se: — “Isso eu não embargo...” Emprestaram-lhe
cavalo magro, patas e cabeça, alazãozérrimo. Saía — concreto
como o chão de lá, sucinto em gume — a ter-se e dar-se.
Não
houve-que.
Logo
o cercaram. Propunham-lhe, de urgente repente, ágios, ócios,
negócios, questavam-no. O por exemplo. Aceitasse gerir, de riba, o
rumo de fazenda, das Jiboias, onde a casa-grande se retelhava?
Isso
o Gedeão meneava e mais — com fagulhas financeiras — ao curto
crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente,
visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço.
E
— tome realidade! Vindo-lhe, com pouco, cifrão e caduceu, quantias
que tantas: seu dinheiro estava já em aritméticas. Reavultava,
prezado ante filhos e mulher — avoado — apotestado, sócio da
sábia vida. O tempo ajuntara mais gente em redor dele.
Agora
acabou-se o caso. De Gedeão, grande, conforme os produzidos fatos.
No estranhado louvor de desconhecidos, vizinhos e parentes,
festejando-se. Sendo que pasma-os ainda hoje — e fez-lhes crer que
a Terra é redonda. Alelúia.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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