Chico
é todo ele palavra.
Esse
o seu reino, a sua mátria,
a
razão de seu viver.
Frei
Betto
Antes
de mais nada, propomos que se ouça a canção “Cálice”, cuja
letra nos suscita interpretações e reflexões ao gosto e à
sensibilidade particulares. Trata-se de uma das mais célebres e
inesquecíveis “canções de protesto” de Chico Buarque de
Hollanda. De fato, é preciso ouvir a melodia, sentir cada frase,
cada estrofe, cada entrada do refrão, e deixar o corpo e a mente
inundarem-se com a energia sonora que nos envolve, a cada vez que os
acordes e a voz do intérprete nos alcançam e nos sensibilizam com
seu vigor poético e musical. Que se ouça, portanto, a música,
seguindo-se a letra.
Um
dos mais intelectualizados compositores e intérpretes da música
popular brasileira, Chico Buarque de Hollanda destaca-se, pela
intensidade de sua obra musical e literária, como um dos nomes de
alto nível criativo na segunda metade do século XX e na
contemporaneidade. Suas origens familiares possibilitaram-lhe uma
vasta formação literária de base, com leituras diversificadas,
tornando-o portador de uma sensibilidade criativa invulgar, um senso
de contextualização artística, social e histórica dos mais
lúcidos entre os artistas brasileiros contemporâneos. Tanto assim
que veio a se tornar também escritor, a partir da década de 1970,
ao lançar a novela pecuária Fazenda modelo,11 uma alegoria do país
submetido à ditadura. À novela se seguiriam romances de sucesso de
público e de crítica, que receberam alguns dos prêmios literários
mais importantes e foram adaptados para o cinema.
Chico
Buarque é um intelectual que dialoga de modo fértil e efetivo com
duas vertentes da cultura, tão próximas, mas às vezes distanciadas
na prática cotidiana, que são a música popular e a literatura. Na
música popular, sua carreira tem sido longa e muito produtiva, com a
conquista de diversos prêmios importantes. Na sua trajetória,
destacam-se as ruidosas participações nos célebres festivais de
música popular brasileira, da TV Record, nos anos 1960, ao lado de
futuros ícones da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, José
Carlos Capinan, Geraldo Vandré e outros.
O
compositor, intérprete e escritor foi um inimigo da ditadura militar
(1964-1985) que dominou a cena política do país, submetendo a
sociedade e os artistas e intelectuais em geral a uma censura odiosa
e tenaz, capaz de mutilar, destruir e vetar obras no campo do teatro,
da literatura e, em especial, da música popular, sobretudo a partir
de 1968, considerado o “ano que não terminou”.12 Buarque foi um
dos compositores mais censurados e perseguidos pelo regime de então,
chegando mesmo a adotar o pseudônimo de “Julinho da Adelaide”
para tentar escapar da fúria dos censores. Na primeira metade dos
anos 1970, foi intimado várias vezes a depor, em longos
interrogatórios, no Exército e na Polícia Federal.
Esse
enquadramento histórico, político e cultural levou alguns
estudiosos a classificarem as composições de Chico, aquelas de
conteúdo antiditadura, como canções de protesto, que seriam uma
vertente marcada, circunstancial e efêmera dentro da vasta produção
do compositor. No entanto, à distância temporal e histórica,
precisamos rever esse ponto de vista e evitar a utilização
automática desse rótulo de época, conforme assinala Anazildo
Vasconcelos da Silva. Num trabalho pioneiro, o estudioso da obra
buarqueana procurava, segundo afirma,
[...]
combater as interpretações que, de uma forma generalizada,
prendiam a poesia de Chico Buarque ao contexto circunstancial da
canção de protesto,
advertindo que enquadrá-la a uma circunstância efêmera, qualquer
que fosse sua natureza, seria negar-lhe a validade poética e
reduzi-la a coisa nenhuma.
Em
seu ensaio, o estudioso procura provar a existência de um projeto
poético buarqueano, configurado por meio da elaboração
intertextual, vinculado a um referente poético internamente
elaborado, configurando uma produção lírico-musical que transcende
sua localização temporal. O ensaísta tem razão. No caso da
composição aqui apreciada, sua teoria se aplica de modo exemplar.
“Cálice” é uma composição poético-musical que configura
claramente o contexto da canção de protesto, como uma espécie de
“gênero” característico da época, mas que transcende a
aplicação política de momento, para se tornar efetiva obra
artística que tem permanência e interesse constante, como objeto
estético que resiste ao tempo e às circunstâncias de sua criação.
Entre
as diversas composições proibidas, “Cálice” é uma das que
mais sofreram represálias impingidas pela censura do sistema
ditatorial, de forma curiosa e inusitada. Rinaldo de Fernandes
registra: “No show Phono 73, realizado em São Paulo, a gravadora
Phonogram desliga os microfones para impedir que Chico e Gilberto Gil
cantem a melodia (a letra tinha sido proibida) de ‘Cálice’”.
Naquela oportunidade, Chico Buarque e Gilberto Gil executam a
melodia, balbuciando uma pseudoletra quase ininteligível, com fortes
sugestões sonoras, representando, no palco, seu repúdio à censura
à qual a composição estava submetida. Nessa execução exemplar,
os intérpretes evidenciam a palavra, em duplo jogo semântico,
Cálice/Cale-se, pronunciada enfaticamente por Chico Buarque,
potencializando lírica e politicamente a ambiguidade sonora. No
contexto, a expressão pronunciada tanto era o substantivo “cálice”
como o verbo pronominal “cale-se”. Enquanto os artistas
apresentavam a canção proibida, interpretando-a sonoramente “em
estado de censura”, eram ovacionados pela plateia presente, na qual
se achava, entre outros artistas, o poeta e compositor Vinicius de
Moraes.
A
melodia de “Cálice” tem um tom solene e reiterativo,
destacando-se a veemência sonora do refrão, que é forte,
afirmativo, como um apelo agregador das consciências:
Pai,
afasta de mim esse cálice
Pai,
afasta de mim esse cálice
[...]
De
vinho tinto de sangue
O
vocativo “Pai” firma a posição da voz lírica, que se dirige a
um símbolo em tom de veemente súplica. O pai é, ao mesmo tempo, no
contexto simbólico da música, hierarquicamente, o superior e o
protetor. Assim, essa invocação remonta indiretamente à simbologia
cristã. A tradição sustenta que Jesus Cristo, ao representar o Pai
Superior, tomou o cálice e sagrou o vinho e o pão como símbolos da
religação (re-ligare) entre a condição terrena e o poder
supremo. A repetição do verso fixa a liturgia da palavra,
sagrando-a num ritual de aproximação e súplica, como uma
oração/pedido à divindade. Todavia a aplicação semântica aqui
não é religiosa, mas sim política e alegórica. Trata-se de uma
simbologia de segundo grau, na medida em que podemos interpretar o
sentido de “Pai” como voz suprema e geral, instância acima do
indivíduo. Ou seja, esse Pai é o detentor do poder abstrato a ser
invocado, e que, no contexto dos anos 1970, só poderia ser o povo,
fonte de um poder coletivo capaz de salvar o país da ditadura.
O
cálice, que seria sagrado, na verdade, encontra-se conspurcado pelo
vinho sacrificial, que é o sangue dos cidadãos assassinados pelo
regime de exceção. Não é o sangue sagrado da doação, mas o
vinho tinto, líquido obscuro, do sacrifício daqueles que lutaram
por liberdade e foram imolados/assassinados nas câmaras de tortura,
dando a vida pelo ideal de liberdade e justiça, em prol da
coletividade. Há uma analogia explícita com o mito cristão, aqui
revestido de uma simbologia social e política, como um apelo às
sensibilidades – tanto políticas como religiosas – de uma
população que achava na atuação política, ainda que clandestina,
e na atuação, ainda que oficiosa, de parte do clero, um alento para
manter a resistência à ditadura militar.
O
vinho – tinto de sangue – não é um símbolo que redime as
culpas, mas representa a vida das pessoas aniquiladas pela força
bruta da ditadura. Dia a dia, como num ritual às avessas, o sangue
dos presos políticos torturados e mortos nos porões do regime era
servido à sociedade num cálice simbólico.
O
ritual encontra-se, portanto, invertido, nulo de significado,
conspurcado pela ação perversa do regime ditatorial. Nesse sentido,
a canção, em tom grave e solene, pode ser vista como um ato de
exorcismo sacrificial do regime. O compositor se expõe publicamente,
desafiando o poder e sua violência institucional. Mas, ao se expor
ao público, também se imuniza, se resguarda, sob a proteção do
Pai, do coletivo, do povo.
A
frase melódica introdutória soa como um lamento que dá início à
concentração mental necessária ao ritual de agravo e defenestração
do mal. Nesse sentido, a canção tem uma qualidade operística, na
medida em que contém uma narrativa, cifrada na pauta musical e na
semântica de duplo sentido da letra, cabendo à plateia identificar
e internalizar os sentidos e captar as mensagens subliminares,
inclusive da execução no palco. A voz lírica representa a condição
do indivíduo, cidadão brasileiro reprimido e ameaçado, que se
dirige a uma consciência, símbolo do todo – o Pai/o País –, a
consciência coletiva.
A
voz lírica suplica ao pai – num tom grave de apelo, que o
intérprete acentua na voz pausada e langorosa, a denunciar que o
cálice é de vinho, porém tinto/manchado de sangue, o que denuncia
o ritual macabro da tortura e do assassinato de pessoas perseguidas
pelo poder da ditadura. “A tortura manobra a dor de forma
diversa”,17 e a canção a denuncia como um mal que deve ser
esconjurado pela viva voz e pelos atos de protesto.
A
primeira estrofe da letra explicita o ponto de vista da voz lírica,
num jogo de elucidação e escolha, sugestões e recusas, por meio de
questões figurativas da realidade do país:
Como
beber dessa bebida amarga
Tragar
a dor, engolir a labuta
Mesmo
calada a boca, resta o peito
Silêncio
na cidade não se escuta
De
que me vale ser filho da santa
Melhor
seria ser filho da outra
Outra
realidade menos morta
Tanta
mentira, tanta força bruta
O
tom dos versos é de questionamento e de ponderação, com argumentos
que defendem a instauração de uma outra realidade, de superação
do estado ditatorial. O que a voz lírica indaga é a impossibilidade
de se aceitar a realidade amarga, a dor (a violência simbólica e
factual) e a labuta (a militância) no enfrentamento do regime. A
labuta é a luta contra a ditadura, contra a mentira e a força
bruta. E, como havia censura e proibição de se utilizar livremente
a palavra, os sentimentos e as convicções ficavam abafados no
peito, gerando a angústia e a insatisfação daquelas vozes sociais,
representadas por políticos de oposição, artistas, professores
etc., silenciados e fustigados pela censura, pelos inquéritos, pelos
interrogatórios, pela prisão, pela tortura e pelo assassinato.
Numa
realidade vigiada, censurada e dirigida, a condição de cidadão,
suposto “filho da pátria”, deteriora-se devido à destituição
tácita de seu ser integral. A sua cidadania está cassada. E a ideia
oficial de pátria, que o regime propaga como uma ideologia, é então
ironizada como “santa”, porque pseudossacralizada pelo discurso
oficial, por intermédio da propaganda do governo, em slogans do tipo
“Brasil: ame-o ou deixe-o”, emblema maior da ditadura no seu
auge, intimando o povo a aceitar o arbítrio institucionalizado. Para
o poeta, melhor seria ser filho de outra ideia de pátria, aquela
propugnada pelos cidadãos contrários ao regime. Essa seria uma
realidade dinâmica e democrática, portanto “menos morta”,
porque não submetida à mentira e à força bruta da ditadura, que
determinava à força, com coerção policial e administrativa, o que
devia ser a verdade oficial do país.
A
segunda estrofe da composição destaca a dificuldade de se aceitar a
condição aviltada de existir, numa sociedade amordaçada, sem
direito à livre expressão:
Como
é difícil acordar calado
Se
na calada da noite eu me dano
Quero
lançar um grito desumano
Que
é uma maneira de ser escutado
Esse
silêncio todo me atordoa
Atordoado
eu permaneço atento
Na
arquibancada pra a qualquer momento
Ver
emergir o monstro da lagoa
A
voz lírica refere-se às dificuldades do indivíduo diante das
restrições estabelecidas pelo regime de força. A liberdade é
cerceada e os discursos interditados. A interdição da palavra cria
um vazio existencial para aqueles que tentam exercer a liberdade de
expressão, sobretudo os artistas, escritores e jornalistas. Diante
de tão dura realidade, é difícil manter-se silenciado. Na calada
da noite, que simboliza o momento de introspecção e pico da
consciência, avulta o estado de danação a que o indivíduo se vê
submetido. E a consciência permanece buscando sua expressão, por
meio do empenho volitivo que impele o indivíduo, destituído de seu
lugar na polis, a tentar fazer algo, a fim de exercer a sua liberdade
interior, recuperar o seu livre-arbítrio.
Não
poder exercer a liberdade de expressão leva a voz lírica a
responder laconicamente ao fato. Na calada da noite, a consciência
se manifesta, quebrando o equilíbrio. É a crise existencial do
indivíduo tolhido, cerceado, vigiado pelo sistema oficial. O
silêncio imposto gera um desequilíbrio, daí a necessidade de
“lançar um grito desumano”, como forma de quebrar a interdição
e, assim, tentar ser escutado. O silêncio gera ansiedade e atordoa,
condição em que a voz lírica declara-se atenta, pois o “monstro”
pode emergir da lagoa, metáfora que ilustra a presença sorrateira
do regime a vigiar e punir seus críticos e inimigos.
Na
terceira estrofe, continuam o protesto e a reflexão provocativa, em
tom de lamento e imprecação:
De
muito gorda a porca já não anda
De
muito usada a faca já não corta
Como
é difícil, pai, abrir a porta
Essa
palavra presa na garganta
Esse
pileque homérico no mundo
De
que adianta ter boa vontade
Mesmo
calado o peito, resta a cuca
Dos
bêbados do centro da cidade
A
ditadura é um sistema de ação, gerenciamento e governo da
sociedade. Aqui ela é ironizada como “porca gorda”, que emperra,
que não anda, pois obriga os cidadãos a ficarem estáticos diante
do poder. E, assim, o poder também fica estático, em posição de
vigilância dos cérebros e dos braços e das pernas, operando a
contensão arbitrária contra o direito de pensar, ir e vir, e fazer.
A palavra é – presa –, detida antes de se manifestar, ainda na
garganta.
Talvez
o mundo não seja pequeno [Cale-se!]
Nem
seja a vida um fato consumado [Cale-se!]
Quero
inventar o meu próprio pecado [Cale-se!]
Quero
morrer do meu próprio veneno [Pai! Cale-se!]
Quero
perder de vez tua cabeça [Cale-se!]
[...]
A
cada estrofe, o refrão retoma o tom reflexivo, a fim de reafirmar o
compromisso do sujeito do discurso perante si mesmo, a vida e a
coletividade. Na estrofe final, reforçada com a veemente repetição
do bordão – Cálice/Cale-se –, o pessimismo, antes manifesto,
finalmente cede a uma hipótese relativamente otimista. Apesar da
concepção estreita do poder central do país, que tudo apequena e
avilta com seu tacão, resistem as consciências de que a realidade
não se limita a isso. Ora, “talvez o mundo não seja pequeno” e
o dinamismo possa tornar a vida algo em aberto, superando a ideia de
um estado de coisas como “fato consumado”. Daí o espaço do
querer se manifestar, apesar da conjuntura hostil, para “inventar o
próprio pecado”, ou seja, tomar atitudes que sejam julgadas por si
mesmo, em liberdade de pensar e agir.
Se
a morte é uma possibilidade, que o cidadão possa “morrer do
próprio veneno”, ou seja, em consequência de suas próprias
atitudes, do seu livre-arbítrio. Por último, insinua-se a
reivindicação de poder exercer a voz, de passar mensagens, por meio
da música, e, com isso, influenciar as pessoas, de forma a
despertar-lhes a consciência – que elas possam se indignar, que
possam mudar/perder de vez a cabeça, insurgindo-se contra o regime.
“Cálice”
é, inegavelmente, uma canção de protesto. Mas não se limita a
essa condição conjuntural. Trata-se de uma composição de alto
valor lírico por sua concepção sígnica, sua estrutura poética,
seu jogo semântico de ambiguidades, por sua feitura artística. Daí
sua consistência textual e sua permanência para além de seu
contexto particular. O poema transcende o fato histórico no qual se
engendrou, como resposta a uma urgência do momento. Conforme destaca
Anazildo Vasconcelos da Silva:
O
protesto ressaltado na canção de Chico Buarque resultava, naquela
época, da insistência do poeta em referenciar a proposição de
realidade interditada, mas permanecerá em toda a sua produção
lírica, mesmo, e até com maior contundência, após a suspensão da
interdição, confirmando as referências que fiz ao valor poético
da obra de Chico Buarque, que, como toda poesia autêntica, rompeu
com os possíveis condicionamentos externos inerentes à proposição
de realidade pressuposta, não se prendendo a um contexto
circunstancial.
“Cálice”
é uma canção ímpar e emblemática na MPB, pelo poder de evocação
à atitude de resistência da sociedade à ditadura militar e pelo
seu poder de comunicação e de permanência, mesmo em face da
implacável censura que sofreu na época. Em toda a composição, os
versos cadenciam-se no andamento da linguagem musical, de modo
equilibrado e evocativo, fixando-se na mente e na dicção dos
ouvintes, como um apelo para cantá-la e refletir sobre os sentidos
do texto. Como bem observa o crítico Tárik de Souza:
Liberado
pela censura sete anos depois de composto, “Cálice” supera a
defasagem do tempo com seu refrão proparoxítono que repete o
fenômeno unânime de “Construção”.
De
fato, “Cálice” é uma composição até hoje bastante executada
por músicos amadores e profissionais, em apresentações públicas e
particulares. Essa condição de objeto vivo da cultura torna-a cada
vez mais um ícone da música brasileira, a par de sua importância
histórica, na luta pela liberdade de expressão e pelos direitos
civis, e como libelo contra o amordaçamento imposto ao povo
brasileiro pela ditadura militar.
Aleilton Fonseca, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos (Org. Rinaldo de Fernandes)
Nenhum comentário:
Postar um comentário