quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Cálice que não se cala


Chico é todo ele palavra.
Esse o seu reino, a sua mátria,
a razão de seu viver.
Frei Betto

Antes de mais nada, propomos que se ouça a canção “Cálice”, cuja letra nos suscita interpretações e reflexões ao gosto e à sensibilidade particulares. Trata-se de uma das mais célebres e inesquecíveis “canções de protesto” de Chico Buarque de Hollanda. De fato, é preciso ouvir a melodia, sentir cada frase, cada estrofe, cada entrada do refrão, e deixar o corpo e a mente inundarem-se com a energia sonora que nos envolve, a cada vez que os acordes e a voz do intérprete nos alcançam e nos sensibilizam com seu vigor poético e musical. Que se ouça, portanto, a música, seguindo-se a letra.
Um dos mais intelectualizados compositores e intérpretes da música popular brasileira, Chico Buarque de Hollanda destaca-se, pela intensidade de sua obra musical e literária, como um dos nomes de alto nível criativo na segunda metade do século XX e na contemporaneidade. Suas origens familiares possibilitaram-lhe uma vasta formação literária de base, com leituras diversificadas, tornando-o portador de uma sensibilidade criativa invulgar, um senso de contextualização artística, social e histórica dos mais lúcidos entre os artistas brasileiros contemporâneos. Tanto assim que veio a se tornar também escritor, a partir da década de 1970, ao lançar a novela pecuária Fazenda modelo,11 uma alegoria do país submetido à ditadura. À novela se seguiriam romances de sucesso de público e de crítica, que receberam alguns dos prêmios literários mais importantes e foram adaptados para o cinema.
Chico Buarque é um intelectual que dialoga de modo fértil e efetivo com duas vertentes da cultura, tão próximas, mas às vezes distanciadas na prática cotidiana, que são a música popular e a literatura. Na música popular, sua carreira tem sido longa e muito produtiva, com a conquista de diversos prêmios importantes. Na sua trajetória, destacam-se as ruidosas participações nos célebres festivais de música popular brasileira, da TV Record, nos anos 1960, ao lado de futuros ícones da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, José Carlos Capinan, Geraldo Vandré e outros.
O compositor, intérprete e escritor foi um inimigo da ditadura militar (1964-1985) que dominou a cena política do país, submetendo a sociedade e os artistas e intelectuais em geral a uma censura odiosa e tenaz, capaz de mutilar, destruir e vetar obras no campo do teatro, da literatura e, em especial, da música popular, sobretudo a partir de 1968, considerado o “ano que não terminou”.12 Buarque foi um dos compositores mais censurados e perseguidos pelo regime de então, chegando mesmo a adotar o pseudônimo de “Julinho da Adelaide” para tentar escapar da fúria dos censores. Na primeira metade dos anos 1970, foi intimado várias vezes a depor, em longos interrogatórios, no Exército e na Polícia Federal.
Esse enquadramento histórico, político e cultural levou alguns estudiosos a classificarem as composições de Chico, aquelas de conteúdo antiditadura, como canções de protesto, que seriam uma vertente marcada, circunstancial e efêmera dentro da vasta produção do compositor. No entanto, à distância temporal e histórica, precisamos rever esse ponto de vista e evitar a utilização automática desse rótulo de época, conforme assinala Anazildo Vasconcelos da Silva. Num trabalho pioneiro, o estudioso da obra buarqueana procurava, segundo afirma,

[...] combater as interpretações que, de uma forma generalizada, prendiam a poesia de Chico Buarque ao contexto circunstancial da canção de protesto, advertindo que enquadrá-la a uma circunstância efêmera, qualquer que fosse sua natureza, seria negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma.

Em seu ensaio, o estudioso procura provar a existência de um projeto poético buarqueano, configurado por meio da elaboração intertextual, vinculado a um referente poético internamente elaborado, configurando uma produção lírico-musical que transcende sua localização temporal. O ensaísta tem razão. No caso da composição aqui apreciada, sua teoria se aplica de modo exemplar. “Cálice” é uma composição poético-musical que configura claramente o contexto da canção de protesto, como uma espécie de “gênero” característico da época, mas que transcende a aplicação política de momento, para se tornar efetiva obra artística que tem permanência e interesse constante, como objeto estético que resiste ao tempo e às circunstâncias de sua criação.
Entre as diversas composições proibidas, “Cálice” é uma das que mais sofreram represálias impingidas pela censura do sistema ditatorial, de forma curiosa e inusitada. Rinaldo de Fernandes registra: “No show Phono 73, realizado em São Paulo, a gravadora Phonogram desliga os microfones para impedir que Chico e Gilberto Gil cantem a melodia (a letra tinha sido proibida) de ‘Cálice’”. Naquela oportunidade, Chico Buarque e Gilberto Gil executam a melodia, balbuciando uma pseudoletra quase ininteligível, com fortes sugestões sonoras, representando, no palco, seu repúdio à censura à qual a composição estava submetida. Nessa execução exemplar, os intérpretes evidenciam a palavra, em duplo jogo semântico, Cálice/Cale-se, pronunciada enfaticamente por Chico Buarque, potencializando lírica e politicamente a ambiguidade sonora. No contexto, a expressão pronunciada tanto era o substantivo “cálice” como o verbo pronominal “cale-se”. Enquanto os artistas apresentavam a canção proibida, interpretando-a sonoramente “em estado de censura”, eram ovacionados pela plateia presente, na qual se achava, entre outros artistas, o poeta e compositor Vinicius de Moraes.
A melodia de “Cálice” tem um tom solene e reiterativo, destacando-se a veemência sonora do refrão, que é forte, afirmativo, como um apelo agregador das consciências:

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
[...]
De vinho tinto de sangue

O vocativo “Pai” firma a posição da voz lírica, que se dirige a um símbolo em tom de veemente súplica. O pai é, ao mesmo tempo, no contexto simbólico da música, hierarquicamente, o superior e o protetor. Assim, essa invocação remonta indiretamente à simbologia cristã. A tradição sustenta que Jesus Cristo, ao representar o Pai Superior, tomou o cálice e sagrou o vinho e o pão como símbolos da religação (re-ligare) entre a condição terrena e o poder supremo. A repetição do verso fixa a liturgia da palavra, sagrando-a num ritual de aproximação e súplica, como uma oração/pedido à divindade. Todavia a aplicação semântica aqui não é religiosa, mas sim política e alegórica. Trata-se de uma simbologia de segundo grau, na medida em que podemos interpretar o sentido de “Pai” como voz suprema e geral, instância acima do indivíduo. Ou seja, esse Pai é o detentor do poder abstrato a ser invocado, e que, no contexto dos anos 1970, só poderia ser o povo, fonte de um poder coletivo capaz de salvar o país da ditadura.
O cálice, que seria sagrado, na verdade, encontra-se conspurcado pelo vinho sacrificial, que é o sangue dos cidadãos assassinados pelo regime de exceção. Não é o sangue sagrado da doação, mas o vinho tinto, líquido obscuro, do sacrifício daqueles que lutaram por liberdade e foram imolados/assassinados nas câmaras de tortura, dando a vida pelo ideal de liberdade e justiça, em prol da coletividade. Há uma analogia explícita com o mito cristão, aqui revestido de uma simbologia social e política, como um apelo às sensibilidades – tanto políticas como religiosas – de uma população que achava na atuação política, ainda que clandestina, e na atuação, ainda que oficiosa, de parte do clero, um alento para manter a resistência à ditadura militar.
O vinho – tinto de sangue – não é um símbolo que redime as culpas, mas representa a vida das pessoas aniquiladas pela força bruta da ditadura. Dia a dia, como num ritual às avessas, o sangue dos presos políticos torturados e mortos nos porões do regime era servido à sociedade num cálice simbólico.
O ritual encontra-se, portanto, invertido, nulo de significado, conspurcado pela ação perversa do regime ditatorial. Nesse sentido, a canção, em tom grave e solene, pode ser vista como um ato de exorcismo sacrificial do regime. O compositor se expõe publicamente, desafiando o poder e sua violência institucional. Mas, ao se expor ao público, também se imuniza, se resguarda, sob a proteção do Pai, do coletivo, do povo.
A frase melódica introdutória soa como um lamento que dá início à concentração mental necessária ao ritual de agravo e defenestração do mal. Nesse sentido, a canção tem uma qualidade operística, na medida em que contém uma narrativa, cifrada na pauta musical e na semântica de duplo sentido da letra, cabendo à plateia identificar e internalizar os sentidos e captar as mensagens subliminares, inclusive da execução no palco. A voz lírica representa a condição do indivíduo, cidadão brasileiro reprimido e ameaçado, que se dirige a uma consciência, símbolo do todo – o Pai/o País –, a consciência coletiva.
A voz lírica suplica ao pai – num tom grave de apelo, que o intérprete acentua na voz pausada e langorosa, a denunciar que o cálice é de vinho, porém tinto/manchado de sangue, o que denuncia o ritual macabro da tortura e do assassinato de pessoas perseguidas pelo poder da ditadura. “A tortura manobra a dor de forma diversa”,17 e a canção a denuncia como um mal que deve ser esconjurado pela viva voz e pelos atos de protesto.
A primeira estrofe da letra explicita o ponto de vista da voz lírica, num jogo de elucidação e escolha, sugestões e recusas, por meio de questões figurativas da realidade do país:

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

O tom dos versos é de questionamento e de ponderação, com argumentos que defendem a instauração de uma outra realidade, de superação do estado ditatorial. O que a voz lírica indaga é a impossibilidade de se aceitar a realidade amarga, a dor (a violência simbólica e factual) e a labuta (a militância) no enfrentamento do regime. A labuta é a luta contra a ditadura, contra a mentira e a força bruta. E, como havia censura e proibição de se utilizar livremente a palavra, os sentimentos e as convicções ficavam abafados no peito, gerando a angústia e a insatisfação daquelas vozes sociais, representadas por políticos de oposição, artistas, professores etc., silenciados e fustigados pela censura, pelos inquéritos, pelos interrogatórios, pela prisão, pela tortura e pelo assassinato.
Numa realidade vigiada, censurada e dirigida, a condição de cidadão, suposto “filho da pátria”, deteriora-se devido à destituição tácita de seu ser integral. A sua cidadania está cassada. E a ideia oficial de pátria, que o regime propaga como uma ideologia, é então ironizada como “santa”, porque pseudossacralizada pelo discurso oficial, por intermédio da propaganda do governo, em slogans do tipo “Brasil: ame-o ou deixe-o”, emblema maior da ditadura no seu auge, intimando o povo a aceitar o arbítrio institucionalizado. Para o poeta, melhor seria ser filho de outra ideia de pátria, aquela propugnada pelos cidadãos contrários ao regime. Essa seria uma realidade dinâmica e democrática, portanto “menos morta”, porque não submetida à mentira e à força bruta da ditadura, que determinava à força, com coerção policial e administrativa, o que devia ser a verdade oficial do país.
A segunda estrofe da composição destaca a dificuldade de se aceitar a condição aviltada de existir, numa sociedade amordaçada, sem direito à livre expressão:

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

A voz lírica refere-se às dificuldades do indivíduo diante das restrições estabelecidas pelo regime de força. A liberdade é cerceada e os discursos interditados. A interdição da palavra cria um vazio existencial para aqueles que tentam exercer a liberdade de expressão, sobretudo os artistas, escritores e jornalistas. Diante de tão dura realidade, é difícil manter-se silenciado. Na calada da noite, que simboliza o momento de introspecção e pico da consciência, avulta o estado de danação a que o indivíduo se vê submetido. E a consciência permanece buscando sua expressão, por meio do empenho volitivo que impele o indivíduo, destituído de seu lugar na polis, a tentar fazer algo, a fim de exercer a sua liberdade interior, recuperar o seu livre-arbítrio.
Não poder exercer a liberdade de expressão leva a voz lírica a responder laconicamente ao fato. Na calada da noite, a consciência se manifesta, quebrando o equilíbrio. É a crise existencial do indivíduo tolhido, cerceado, vigiado pelo sistema oficial. O silêncio imposto gera um desequilíbrio, daí a necessidade de “lançar um grito desumano”, como forma de quebrar a interdição e, assim, tentar ser escutado. O silêncio gera ansiedade e atordoa, condição em que a voz lírica declara-se atenta, pois o “monstro” pode emergir da lagoa, metáfora que ilustra a presença sorrateira do regime a vigiar e punir seus críticos e inimigos.
Na terceira estrofe, continuam o protesto e a reflexão provocativa, em tom de lamento e imprecação:

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

A ditadura é um sistema de ação, gerenciamento e governo da sociedade. Aqui ela é ironizada como “porca gorda”, que emperra, que não anda, pois obriga os cidadãos a ficarem estáticos diante do poder. E, assim, o poder também fica estático, em posição de vigilância dos cérebros e dos braços e das pernas, operando a contensão arbitrária contra o direito de pensar, ir e vir, e fazer. A palavra é – presa –, detida antes de se manifestar, ainda na garganta.

Talvez o mundo não seja pequeno [Cale-se!]
Nem seja a vida um fato consumado [Cale-se!]
Quero inventar o meu próprio pecado [Cale-se!]
Quero morrer do meu próprio veneno [Pai! Cale-se!]
Quero perder de vez tua cabeça [Cale-se!]
[...]

A cada estrofe, o refrão retoma o tom reflexivo, a fim de reafirmar o compromisso do sujeito do discurso perante si mesmo, a vida e a coletividade. Na estrofe final, reforçada com a veemente repetição do bordão – Cálice/Cale-se –, o pessimismo, antes manifesto, finalmente cede a uma hipótese relativamente otimista. Apesar da concepção estreita do poder central do país, que tudo apequena e avilta com seu tacão, resistem as consciências de que a realidade não se limita a isso. Ora, “talvez o mundo não seja pequeno” e o dinamismo possa tornar a vida algo em aberto, superando a ideia de um estado de coisas como “fato consumado”. Daí o espaço do querer se manifestar, apesar da conjuntura hostil, para “inventar o próprio pecado”, ou seja, tomar atitudes que sejam julgadas por si mesmo, em liberdade de pensar e agir.
Se a morte é uma possibilidade, que o cidadão possa “morrer do próprio veneno”, ou seja, em consequência de suas próprias atitudes, do seu livre-arbítrio. Por último, insinua-se a reivindicação de poder exercer a voz, de passar mensagens, por meio da música, e, com isso, influenciar as pessoas, de forma a despertar-lhes a consciência – que elas possam se indignar, que possam mudar/perder de vez a cabeça, insurgindo-se contra o regime.
Cálice” é, inegavelmente, uma canção de protesto. Mas não se limita a essa condição conjuntural. Trata-se de uma composição de alto valor lírico por sua concepção sígnica, sua estrutura poética, seu jogo semântico de ambiguidades, por sua feitura artística. Daí sua consistência textual e sua permanência para além de seu contexto particular. O poema transcende o fato histórico no qual se engendrou, como resposta a uma urgência do momento. Conforme destaca Anazildo Vasconcelos da Silva:

O protesto ressaltado na canção de Chico Buarque resultava, naquela época, da insistência do poeta em referenciar a proposição de realidade interditada, mas permanecerá em toda a sua produção lírica, mesmo, e até com maior contundência, após a suspensão da interdição, confirmando as referências que fiz ao valor poético da obra de Chico Buarque, que, como toda poesia autêntica, rompeu com os possíveis condicionamentos externos inerentes à proposição de realidade pressuposta, não se prendendo a um contexto circunstancial.

Cálice” é uma canção ímpar e emblemática na MPB, pelo poder de evocação à atitude de resistência da sociedade à ditadura militar e pelo seu poder de comunicação e de permanência, mesmo em face da implacável censura que sofreu na época. Em toda a composição, os versos cadenciam-se no andamento da linguagem musical, de modo equilibrado e evocativo, fixando-se na mente e na dicção dos ouvintes, como um apelo para cantá-la e refletir sobre os sentidos do texto. Como bem observa o crítico Tárik de Souza:

Liberado pela censura sete anos depois de composto, “Cálice” supera a defasagem do tempo com seu refrão proparoxítono que repete o fenômeno unânime de “Construção”.

De fato, “Cálice” é uma composição até hoje bastante executada por músicos amadores e profissionais, em apresentações públicas e particulares. Essa condição de objeto vivo da cultura torna-a cada vez mais um ícone da música brasileira, a par de sua importância histórica, na luta pela liberdade de expressão e pelos direitos civis, e como libelo contra o amordaçamento imposto ao povo brasileiro pela ditadura militar.

Aleilton Fonseca, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos (Org. Rinaldo de Fernandes)

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