sábado, 26 de fevereiro de 2022
Da cor
Há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: — a cor do tempo…
Mário Quintana, in Sapato florido
Palavras
Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.
Manoel de Barros, in Meu quintal é maior do que o mundo
À beira da morte
Está à beira da morte. Entretanto, ainda não é simples, imperturbável e gentil com todos, desconfia que coisas externas são capazes de o ferir e não julga sábias somente as ações justas.
Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução
O dia em que ele nasceu
Daniel Wallace, in Peixe Grande
O universo de um navio de guerra numa casquinha de noz
Herman Melville, in Jaqueta Branca
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
Câmara de ecos
Waly Salomão
Charlatões
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Experiências inesquecíveis
Rubem Alves, in O Velho que Acordou Menino
Vovó Cochise
Abdourahman A. Waberi, in Por que você dança quando anda?
Magush
Silvina Ocampo, in A fúria
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
Versos à boca da noite
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva…
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.
Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?
Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.
Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome… Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.
Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.
As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,
e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,
e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)
Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.
E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.
Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, aonde, quando?
seria indiferente ou solidária?
Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua ama preta.
Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:
uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,
mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo
comprada em sal, em rugas e cabelo.
Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo
Carro elétrico, El Paso
Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos
O som do rugido da onça | XVI
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
Cartas para minha avó | 4
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
Criação humana
“Deus é uma criação humana e, como muitas outras criações humanas, a certa altura toma o freio nos dentes e passa a condicionar os seres que criaram essa ideia.”
José Saramago, in As palavras de Saramago
Um feliz aniversário e que você vá à merda
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
― Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta...
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Coisa de mãe
Bráulio Bessa, in Um carinho na alma