É
fato que reis constroem castelos, além de pontes. O castelo está
para o rei como os afogados estão para os rios. Entretanto, os rios
não necessitam de afogados em suas torrentes para que tenha sentido
sua existência; os afogados lhes são indiferentes, é a verdade, ao
contrário dos reis, que, sem castelo, parecem ter diminuída sua
potência. Assim, quanto mais castelos e pontes e mesmo conventos em
pilares sólidos e alicerces estruturados, tanto maior o poder do
rei, tenha ele qual nome tiver. Ah, e as guerras, é claro! E a
ciência, que coloca as guerras em movimento, com suas sempre novas
tecnologias de matar. O poder de um rei, embora dito natural, não é
fluido; necessita de mecanismos, arruelas e encaixes. Nada é
simples.
O
castelo, embora possa ser lar e fortificação, casa e posto de
combate, universo que se ergue para fora da caixa de mogno talhada
com adornos de marfim da rainha, ou, o contrário, ajuntamento de
pedra e carne que penetra em dobras e quinas no interior aveludado e
rubro da mesma caixa, é, também e sobretudo, a marca da ruína. O
castelo de Chillinghan, por exemplo, na fronteira entre Inglaterra e
Escócia, a meio caminho dos dois territórios, se um dia se torna
risível em portais de notícias como um dos lugares mais assombrados
do mundo, é porque ainda ontem, ou centenas de anos atrás, como
queira, foi palco de torturas de combatentes das duas nações,
iniquidades contra as vítimas de sempre, pobres em geral, mulheres,
crianças, soldados caídos em desgraça. Ou o palacete da ilha
Fiscal, no Rio de Janeiro, que, depois do baile de 9 de novembro de
1889, 250 contos de réis gastos, quase uma tonelada de camarões,
meia tonelada de perus e pouco menos que uma centena de faisões,
revela sua natureza de palco para o tombo do imperador Pedro II,
incidente que lhe machuca as ancas e que de quebra faz com que perca
o império. Após o baile, o espólio: 37 lenços, 24 cartolas e
chapéus de senhoras, treze coletes femininos, dezessete
cintas-ligas, oito raminhos de corpete e militares com espadas em
punho sobre seus cavalos brancos e pardos, assumindo o poder dali em
diante, e, mesmo quando fora do poder, suas lâminas e armas de fogo
sempre a postos, pairando ao longo dos tempos sobre a cabeça do
povo. A ruína tem muitas configurações. Ademais, todo castelo
guarda em si túmulo e prisão.
Iñe-e
e o menino Juri são levados em comitiva a uma grande e compacta
construção, o castelo em que mora aquele rei que encomendara aos
cientistas todo um pedaço, um recorte de sua terra, o mesmo que lhes
deu ordens e meios para saírem a saquear a terra alheia. Como que
brotado do chão da cidade, o castelo se ergue denso, prepotente.
Seus aposentos resplandecem ouro, rubis e uma longa história de
conquistas e sangue. Nesse dezembro, a boa nova anunciada pelas
inúmeras portas e janelas da casa do rei é menos o menino Jesus a
ser celebrado em data próxima que essas outras crianças vindas da
inaudita floresta, singulares, desconhecidas, anômalas em sua
simplicidade.
A
imensa construção parece aos olhos de Iñe-e um lugar que guarda
muitas espécies de erro. Os brancos, presentes em todos os lugares,
ora caminhando de um lado para o outro, ora paralisados em pedra
muito polida e até mesmo em metal. Há ainda as gentes presas em
quadros nas paredes e as que surgem ameaçadoras nos afrescos,
brotando de paredes e teto. A lâmina translúcida dos espelhos a
multiplicar os corpos avisa do perigo de lhes reter a alma. Tapetes,
estofados, almofadas, o ruído dos saltos dos sapatos contra o piso,
os poucos animais que transitam com alguma liberdade, cães e gatos,
toda a solenidade daquele mundo guardando enorme risco.
Apartados
de Martius e Spix, Iñe-e e o menino são conduzidos a um aposento
sombrio por uma mulher de bochechas coradas e cabelo entre o branco e
o amarelo. Ali, são limpos rapidamente com um pano áspero e úmido
e têm suas roupas trocadas. Uma mulher os leva a uma cozinha e tenta
fazer com que comam um mingau grosso e um tanto repugnante. Tanto
Iñe-e quanto o menino Juri recusam o que lhes é oferecido. Estão
enjoados. Depois de algum tempo de sossego e vigilância, são
conduzidos à sala do trono, onde um ajuntamento de gente os olha com
curiosidade ou ferocidade, Iñe-e não consegue distinguir o que os
move exatamente. Mas lhe parece que todas aquelas pessoas se agregam
em uma única e gigantesca cabeça de boca aberta a fazer um ruído
que ela mesma não sabia até ali que pudesse ser feito por gente,
articulando uma boca faminta por engolir a ela, ao menino, aos bichos
e às plantas ali colocados em exibição. Uma boca ansiosa por saber
deles a fibra e a consistência, e que, possuindo muitos e
dessemelhantes olhos que variam de cor, ora azuis, ora verdes, e
também escuros e amarelados, tem o poder de devassar todos os
corpos, deixando à mostra estômagos, corações, tripas, sem, no
entanto, devorá-los como deveriam. Só desperdício. Era um festejo
bárbaro, e ela e os outros, o butim.
Ao
contrário do menino, naturalmente curioso e vivaz, Iñe-e evita
olhar os brancos diretamente. Espreita-os de soslaio, o suficiente
para intuir quem são. Um homem de casaca negra berra algo para os
cientistas, e é extremamente desagradável. De sua boca respinga
cuspe, e seus dedos pegajosos como o caucho ora tocam a mão de Spix,
ora tocam o ombro de Martius e, ao tocá-los, seus dedos se
desmancham, elásticos, em uma calda grossa. Para seu horror, o homem
se aproxima dela e, então, ela sente as mãos dele primeiro em seu
cabelo, depois escorrendo para o queixo, abrindo sua boca, enquanto
os olhos como uma luz maligna examinam-lhe os dentes. Relembra o dia
no navio em que acordara com as mãos do capitão entre suas pernas.
Depois o homem toca seus ombros, bate em suas costas e por fim lhe
golpeia as pernas como se quisesse saber se são firmes. Essa
coreografia de gestos ela já conhece e detesta, porque a machuca de
muitas maneiras. Quando o homem termina de examiná-la e passa a
investigar o menino, Iñe-e sente ainda o visgo dos seus dedos moles
em cada lugar dela que ele tocou.
Quando
finalmente o rei aparece, vem acompanhado da rainha e dos filhos. O
rei tem o péssimo hábito dos brancos de deixar cabelo crescer na
cara, o que a enoja. Talvez entre eles seja sinal de que é um grande
chefe, mas, para ela, trata-se de um sintoma de fraqueza de caráter.
A mulher tem olhos muito penetrantes, e acima deles suas sobrancelhas
são como duas lagartas escuras que, embora muito próximas, parecem
prestes a se arrastar em diferentes direções. Ela olha para Iñe-e
com curiosidade, talvez algum horror, e diz algo ao ouvido do marido
sem desviar os olhos da menina. Os filhos maiores também comentam
coisas entre si e as filhas pequenas saltitam como macaquinhos. Logo
cercam Iñe-e e o menino Juri, e Iñe-e pensa que, se tivesse,
poderia lhes oferecer um punhado de tucumãs, que elas se afastariam
aos pulos, contentes, satisfeitas. Toda aquela festa e ajuntamento de
curiosidades a enfadam. O cansaço que sente tem o peso de muitos
fardos.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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