[…]
E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou o nosso bom esconder,
num boqueirãozinho, já achamos companheiros outros, diversos,
vindos de armas, e que chegavam separadamente, naquela satisfação
de vida salva. Um era o Feijó. Será, se tinha avistado o Reinaldo
sem perigo? A meio perguntei. Por causa que só em Diadorim era que
eu pensava. O Feijó em tanto tinha notado: Diadorim, na retirada,
bem conseguido; depois se retrasou, por uma cacimba de grota. ―
...Estava com sangue numa perna de calça. Para mim, foi nada,
arranho à-tôa... O que me ensombreceu ― então Diadorim estava
ferido. Aí, eu mesmo esbarrei, beirávamos o riachinho do Jio, eu
quis lavar os pés, que muito me doíam. Acho que, de cansado, estava
também com dôres redondas de cabeça, molhei minhas fontes. Cansaço
faz tristeza, em quem dela carece. Diadorim estivesse ali,
somentemente, espaço disso me alegrava, eu não havia de querer
conversar reportório de tiros e combates, eu queria calado a
consequência dele. Ao modo que eu nem conhecia bem o estôrvo que eu
sentia. Pena. Dos homens que incerto matei, ou do sujeito altão e
madrugador ― quem sabe era o pobre do cozinheiro deles ― na
primeira mão de hora varado retombado? Em tenho que não. Dó que me
dava era do Garanço, e o Montesclarense. Quase com um peso, por
minha culpa dos dois ― eles eu era quem tinha escolhido, para
conduzir, e depois tudo. Logo esses ― o senhor sabe, o senhor segue
comigo. Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui,
vereda abaixo, tigre cangussú estragou e arruinou a perna do Sizino
Ló, um que foi desse rio de São Francisco, foguista de vapor;
depois cá herdou uns alqueires. Comprou-se para ele, então, uma boa
perna-de-pau. Mas, assim, talvez por se ter sacolejado um pouco do
juizo, ele nunca mais quer sair de casa, nem se levanta quase do
catre, vive repetindo e dizendo: ― Ai, quem tem dois tem um, quem
tem um não tem nenhum... Todo o mundo ri. E isso é remorso?
Desgraça a mando era que eu cumpria, azo de que tivesse perdi do
alguma coisa. Porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o
meu não era. E cheguei no Cansanção-Velho, chamado também o Jio,
dito.
Lá,
com pouco, a gente era doze. Os alguns faltavam, dos que eram para se
reunir ali, mas decerto ainda vinham vir. Num ponto me agradei!
então, em guerra, quase não se morre? E, mesmo, nas más horas é
que vem bom consolo! para o Jio tinha tocado, de antevéspera, o
Braz, nessa antecedência em dois jumentos ele tinha trazido
mantimento de feijão e arroz, e toucinho para torresmos, e pratos e
panela, se cozinhou um jantar. Tanto que comi, deitei. Dormi impado.
Que caso que eu carecia de pensar, que não fosse que na morte do
Garanço e do Montesclarense eu não devia nenhum dolo; e que
Diadorim ia chegar a vir também, aonde estávamos, mais tardar no
romper da aurora? Dormi. Mas daí a logo acordei, mão no rifle, como
se vez fosse. E não havia a coisa nenhuma, nem vulto nem barulho. Os
outros no estar, pesados no sono, cada um em seu recanto, estufando
suas redes penduradas de árvore em árvore.
Só
vi um, o Jõe Bexiguento, sobrechamado o Alpercatas! esse era homem
de estranhez em muitos seus costumes, conforme se dizia e era notado.
Jõe Bexiguento parecia não estar querendo ir dormir, tinha ficado
na beira do fogo, remexendo as brasas; num fusco em vermelho, dava
para a cara dele se divulgar. E ele pitava. Meigo repus o rifle,
virei para o outro lado. Adormecer, pude; mas, com outros minutos,
tornei naquele mau susto de acordar. Isso aconteceu três vezes,
reformadas. Jõe Bexiguento reparou em meu dessossego, veio para o pé
de minha rede, sentou no chão. ― Horas destas, tem galo já
cantando, noutros lugares... ― ele falou. Não sei se dei alguma
resposta. Agora eu estava cismado.
Ou
se fosse que algum perigo se produzia por ali, e eu colhia o aviso?
Não é que, com muitos, dose disso sucedesse? Eu sabia, tinha ouvido
falar: jagunços que pegam esse condão, adivinham o invento de
qualquer sobrevir, por isso em boa hora escapam. O Hermógenes. João
Goanhá, mais do que todos, era atreito a esses palpites de fino ar,
coraçãoados. Atual isso comigo? Que os bebelos rodeavam para ali,
quem sabe perto já rastejavam. Zé Bebelo mandava neles. Em todos o
momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de
passagens emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e
leitura, as contas de juros; depois, de noite, na sala grande, na
mesa grande, se comia canjica temperada com leite, queijo,
coco-da-bahia, amendoím, açúcar, canela e manteiga-de-vaca. ―
Fofo faço, e em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez com essa
cambada canalha de jagunços! ― ele referia, com rompante e festa
no dizer, bebendo seu coité de chá-de-congonha, que de tão quente
pelava. Então, agora, era eu também ― Zé Bebelo vinha de lá,
comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha jurado, naquela
ocasião, ficava sendo também de acabar comigo, com minha vida. Mas
eu prezava Zé Bebelo, minha simpatia é uma só, dada definitiva às
altas, sempre fui assim. Sendo que não fosse ele em sua pessoa, se
ele no meio não estivesse, tudo tinha outra ordem: eu podia pôr meu
afinco o-farto destravado, no querer combater. Mas, brigar, cruzando
morte, com Zé Bebelo, eu vi que era isso que me dava uma
repugnância, em minha inteligência. Levantei da rede, e convidei
Jõe Bexiguento para se botar mais lenha no fogo. Ele disse: ―
Convém não. Ocasiões assim, convém acender nem vela de cera
preta... Enrolei um cigarro.
Contei
ao Jõe o que eu estava sentindo estúrdio; se não era agouramento?
E ele me apaziguou: que anjo aviso não vinha desse jeito, antes era
uma certeza que minava fininha, de dentro da ideia da gente, sem
razoado nem discussão. O que eu purgava era ranço nervoso, sobra da
esquentação curtida nas horas de tiroteio. ― Comigo, assim,
depois de cada forte fogo, me dá esse porém. E uma coceira na
mente, comparando mal. Faz regular uns seis anos, que estou na
jagunçagem, medo de guerra não conheço; mas, na noite, passado
cada fogo, não me livro disso, essa desinquietação me vem...
Pela
causa, me disse, era que ele não vencia dormir nem um pisco, naquela
comprida noite, e nem experimentava. Jõe Bexiguento achava que não
tinha mais sustância para ser jagunço; duns meses, disse, andava
padecendo da saúde, erisipelava e asmava. ― Cedo aprendi a viver
sozinho. Pra o Riachão vou, derrubo lá um bom mato... Era o projeto
em tal, que ele formava vez em quando. ― Trabalhar de amassar as
mãos... Que isso é que sertanejo pode, mesmo na barra da velhice...
― Você
era amigo do Garanço, Jõe? ― em manso perguntei. ― Assim, o
dito, pela rama. Que foi com ele? Deu o fim, mesmo, legal? Acho que
esse sempre se esteve meio caipora... Ele mesmo sabia que era...
Ainda ouvindo as palavras, conheci que tinha perguntado pelo Garanço
só para depois perguntar por Diadorim, digo! o Reinaldo. Mas outra
coragem não tive. Faltou razão para mim. Que desconversei! ―
Caipora se cura, Jõe? Você sabe rezas fortes? ― por aí devo que
indaguei; bobeia minha, assunto. ― A que cujo, se caipora não
curasse? Todo o mundo dela tem, nos tempos... ― ele me repositou. ―
... Mas desses ensalmos quis aprender não. Memória que Deus me deu
não foi para palavrear avesso nele, com feitas ofensas...
Pecados,
vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia?
Jagunço ― criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto
arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso,
disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me
assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que
podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé
para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente.
― Uai?!
Nós vive... ― foi o respondido que ele me deu.
Mas
eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, duvidando,
rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, sem fome, sem querer
nenhum, sem paciência de estimar um bom companheiro. Nem o ouro do
corpo eu não quisesse, aquela hora não merecia: brancura rosada de
uma moça, depois do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um, que
estava com sua rede ali a próximo, decerto acordou com meu vozeio, e
xingou xíu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que
sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e
o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o
feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!
Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo?
A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do
meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...
Mas
Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem jagunço, como ele no
cerne era, a ideia dele era curta, não variava. ― Nasci aqui. Meu
pai me deu minha sina. Vivo, jaguncêio... ― ele falasse. Tudo
poitava simples. Então ― eu pensei ― por que era que eu também
não podia ser assim, como o Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi:
para o Jõe Bexiguento, no sentir da natureza dele, não reinava
mistura nenhuma neste mundo ― as coisas eram bem divididas,
separadas. ― De Deus? Do demo? ― foi o respondido por ele ―
Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta... Quem é
que pode ir divulgar o corisco de raio do bôrro da chuva, no grosso
das nuvens altas? E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era
engraçado. Naquele tempo, também, eu não tinha tanto o estrito e
precisão, nestes assuntos.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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