Apesar
das durezas reproduzidas e reforçadas pelo racismo, você sabe que
vivíamos momentos felizes lá em casa, vó. Meu pai lia pra gente,
nós brincávamos na rua e minha mãe, quando não estava exaurida
pelos trabalhos domésticos, era bem-humorada. A vida era simples,
mas não nos faltava nada. Você sabe como eu era falante e
inteligente, como meus pais gostavam de me exibir para parentes e
amigos.
Ir
pra escola, porém, foi como desaprender a ter um espaço seguro.
Mesmo estudando no Colégio Moderno dos Estivadores, destinado aos
filhos e netos de trabalhadores, os xingamentos eram constantes e as
professoras nunca me escolhiam para protagonizar nada. Aos poucos,
fui criando proteções.
As
educadoras e os educadores não tinham o mínimo preparo para lidar
com questões raciais. Quando eu reclamava para a professora sobre
alguma ofensa, ela dizia para eu não ligar. Se eu respondia, as
ofensas se multiplicavam. Na segunda série, havia uma menina de nome
Sabrina que adorava implicar comigo. Ela fazia piadas durante a aula,
me perseguia no recreio. Sabrina era daquelas loiras com estojo
automático, canetas coloridas com cheiro de chiclete e caixa grande
com vinte e quatro canetinhas. Seus cadernos eram bem encapados, sua
mochila era grande e rosa e seu uniforme engomado. O sonho das minhas
professoras e dos meus professores, a pequena musa dos meninos em
seus namoros imaginários.
Você
dizia que eu era uma menina linda, meus pais também, mas quando se
tem oito anos isso não basta. Como nós éramos em quatro irmãos, o
meu pai comprava os materiais mais simples, para que todos tivessem o
seu. Eu sonhava com o estojo que Sabrina e as outras meninas brancas
tinham, e agradecia quando alguma delas, em raros atos de gentileza,
me deixavam brincar com eles. Mas Sabrina, não, ela nunca emprestava
seu material. Mesmo seu pai sendo estivador, como o meu, ela se
gabava de ser a “mais rica”, porque era descendente de italianos
e seu avô, ao morrer, deixou bens para a família.
Meu
pai, que ficou órfão de pai aos seis meses e morava com a mãe e a
irmã “numa maloca no morro da Penha” — como ele gostava de
dizer quando nos dava aquelas broncas intermináveis —, não teve a
mesma “sorte”. Morou em cortiços com minha mãe, depois numa
casa de madeira no Guarujá — lá, quando chovia, “até cobra
entrava”, ela sempre lembrava. Os três primeiros filhos nasceram
nessa casa. Eu, por conta do bolão da loteria esportiva, já nasci
no apartamento de dois quartos entre os canais 4 e 5, em Santos.
Graças ao empenho da minha mãe em ir à Caixa Econômica Federal
para renegociar as parcelas do financiamento, meus pais conseguiram
quitar o apartamento quando eu ainda era adolescente. Foi lá que
vivi os primeiros vinte e dois anos da minha vida, vó, sem regalias.
Sabrina
podia não entender nada de teorias racistas, mas sabia aproveitar
seus privilégios para sempre se colocar à frente e tentar controlar
e comandar tudo. Ela era como a líder da turma. Uma vez eu pedi uma
canetinha emprestada para uma colega, a Ana Carolina, uma garota
branca e loira — outra princesa da escola. Antes que ela pudesse
responder, Sabrina interveio: “Djamila é preta, então empresta só
a canetinha preta pra ela”. Ana Carolina hesitou, mas riu, e as
outras crianças da sala também. Era sempre assim, elas nunca me
defendiam ou recriminavam o que ouviam, era quase intuitivo o
desprezo que sentiam.
Cansada
daquelas humilhações, respondi sem pensar para Sabrina: “Na hora
do recreio eu vou te pegar”. O que eu havia dito somente para me
defender, virou uma sentença. No recreio, enquanto eu conversava com
uma colega da outra sala, Sabrina se aproximou: “Você não disse
que ia me pegar?”. E logo uma rodinha se formou, incentivando o
espetáculo.
Senti
que não tinha opção e bati em Sabrina. Conforme batia, a roda
gritava, se comprazendo com algo que poderia ter sido evitado. Ao
ouvir a gritaria, dona Assunção, inspetora da escola, apareceu.
Assim que a avistei, com seus braços fortes e avental azul, congelei
e me afastei da minha adversária. Eu havia ganhado a briga, então
sabia que não apanharia em casa. Meu medo era, na verdade, de levar
bronca da diretora, famosa por ser linha dura.
Eu
sabia que todas as crianças negras que revidavam eram advertidas,
suspensas ou passavam horas na diretoria. As professoras nunca nos
defendiam, então que opções tínhamos? Mesmo ganhando a briga, se
eu fosse suspensa ou algo do tipo, a punição lá em casa seria
dura. Com um frio na barriga, imaginei o pior. Foi Sabrina que,
sabendo o quanto a escola era devota de meninas como ela, quebrou o
silêncio que se formou no pátio: “Dona Assunção, a Djamila me
bateu”, e desabou a chorar. Eu, sabendo o quanto aquela escola
repudiava meninas como eu, já tinha dado como certa a surra que
levaria em casa após ficar horas ouvindo broncas da diretora. É a
dupla violência: somos violentados pelo racismo e por enfrentá-lo.
Porém, para minha surpresa, dona Assunção respondeu: “Bem feito,
Sabrina, quem mandou você mexer com ela?”.
Naquele
momento, vó, sem saber racionalizar direito, eu me senti em casa,
segura. Além disso, ganhei o respeito de algumas crianças que
também não gostavam de Sabrina, e essa foi uma das raras vezes em
que fui vista como uma vencedora — e não como a “neguinha feia
do cabelo duro”. Sem saber, dona Assunção me mostrou que era
importante lutar para ser respeitada. Ela foi, por um breve momento,
a música que me livrou da náusea. Ali, sem saber, ela me fez
perceber que a sensação de direito adquirido era melhor que a
sensação de dever cumprido.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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