Um
amigo meu diz que em todos nós existe o charlatão. Concordei. Sinto
em mim a charlatã me espreitando. Só não vence, primeiro porque
não é realmente verdade, segundo porque minha honestidade básica
até me enjoa. Há outra coisa que me espreita e que me faz sorrir: o
mau gosto. Ah, a vontade que tenho de ceder ao mau gosto. Em quê?
Ora, o campo é ilimitado, simplesmente ilimitado. Vai desde o
instante em que se pode dizer a palavra errada exatamente quando ela
cairia pior – até o instante em que se diriam palavras de grande
beleza e verdade quando o interlocutor está desprevenido e levaria
um susto de constrangimento, e haveria o silêncio depois. Em que
mais? Em se vestir, por exemplo. Não necessariamente o óbvio do
equivalente a plumas. Não sei descrever, mas saberia usar um mau
gosto perfeito. E em escrever? A tentação é grande, pois a linha
divisória é quase invisível entre o mau gosto e a verdade. E mesmo
porque, pior que o mau gosto em matéria de escrever, é um certo
tipo horrível de bom gosto. Às vezes, de puro prazer, de pura
pesquisa simples, ando sobre linha bamba.
Como
é que eu seria charlatã? Eu fui, e com toda a sinceridade, pensando
que acertava. Sou, por exemplo, formada em direito, e com isso
enganei a mim e aos outros. Não, mais a mim que a todos. No entanto,
como eu era sincera: fui estudar direito porque desejava reformar as
penitenciárias no Brasil.
O
charlatão é um contrabandista de si mesmo. Que é mesmo o que estou
dizendo? Era uma coisa, mas já me escapou. O charlatão se
prejudica? Não sei, mas sei que às vezes a charlatanice dói e
muito. Imiscui-se nos momentos mais graves. Dá uma vontade de não
ser, exatamente quando se é com toda a força. Não posso
infelizmente me alongar mais nesse assunto.
Disseram-me
que um crítico teria escrito que Guimarães Rosa e eu éramos dois
embustes, o que vale dizer charlatões. Esse crítico não vai
entender nada do que estou dizendo aqui. É outra coisa. Estou
falando de algo muito profundo, embora não pareça, embora eu mesma
esteja um pouco tristemente brincando com o assunto.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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