sábado, 30 de novembro de 2019

Hamilton de Holanda e Stefano Bollani - "Rosa" (Pixinguinha)

A sociedade vigilante

Os partidos que reconstruíram os Estados e suprimiram os rivais não foram onipotentes desde o começo. Eles se aproveitaram de um momento histórico para tornar a vida política impraticável para os adversários. Por isso, apoie o sistema multipartidário e defenda as regras de eleições democráticas. Vote em eleições municipais e estaduais enquanto for possível. Pense em concorrer a um cargo eletivo”.
Timothy Snyder, in Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente
Para Snyder, o século XX testemunhou ótimas medidas para ampliar o direito do voto e de criar democracias duradouras.
Porém, as democracias que surgiram depois da primeira e da segunda guerra, em muitos casos, se corroeram quando um único partido tomou o poder mediante combinação de eleição e golpe de Estado.
Como ele afirma: “Um partido fortalecido por resultados eleitorais favoráveis, ou motivado por uma ideologia, ou ambas as coisas, podia transformar o sistema de dentro pra fora”. Justamento o que fizeram Nazi/Fascistas.
A maioria dos alemães da década de 30, que votaram no Partido Nazista, não se deram conta de que aquela poderia ser a sua última eleição livre. Isso também ocorreu com países do leste europeu, sob o regime comunista.
Qualquer eleição pode ser a última, o que resta é a necessidade de total vigilância da parte da sociedade.

Jorge

Arte: Kaleb de Carvalho

Eu devia ter uns três anos de idade e não me lembro de nada. A família já melhorara de vida, passara da fase que a minha mãe lembra como a fase dos caixotes — móveis improvisados feitos de embalagens de madeira — e ocupava um apartamento melhorzinho, grande o bastante para receber um hóspede, pelo menos um hóspede magro: Jorge Amado. Ele ficou alguns dias na nossa casa, escondido da polícia política. Minha irmã brincava de cabeleireira com seus cabelos, e ele inventou que eu não tinha cara de Luis Fernando, tinha cara de João. Até a última vez em que nos encontramos, me chamou de João. Não foram muitos os encontros. Ele fez mais algumas visitas a Porto Alegre — nunca mais como fugitivo —, a Lúcia e eu levamos nosso convite de casamento para ele e a Zélia no seu apartamento do Rio (minha intenção, confesso, era impressionar a noiva), eu fui visitá-los uma vez no apartamento do Marais, em Paris, depois participei das comemorações dos seus 80 anos, em Salvador, e conheci a casa do Rio Vermelho onde agora estão as suas cinzas.
Desde o seu rápido asilo conosco, ele e meu pai, Erico Verissimo, foram amigos, mas a amizade passou por alguma turbulência no final dos anos 40 e início dos 50, quando a questão do engajamento político dividiu os intelectuais do país. Meu pai contava uma cena dolorosa e cômica que se passara no banheiro de um quarto de hotel no Rio, ele dentro de uma banheira de água quente tentando aliviar uma cólica renal e ao mesmo tempo convencer o Jorge, sentado num banquinho ao lado, que, com toda a sua simpatia pelo socialismo, não podia aceitar o dogmatismo comunista e o totalitarismo, e o amigo tentando convencê-lo da justificativa histórica do stalinismo. Mas continuaram se gostando e se admirando, e acabaram se aproximando politicamente também, engajados no repúdio a qualquer sistema desumano. Quando o lamentável Buzaid, então ministro da Justiça, ameaçou instaurar a censura prévia de livros no Brasil, os dois assinaram um manifesto conjunto contra a ideia que ajudou a matá-la no nascedouro. Eles mantiveram uma correspondência esparsa mas afetuosa até a morte do meu pai. Depois disso, ele e a Zélia e minha mãe telefonavam-se frequentemente — e as mensagens dele sempre incluíam “lembranças para o João”.
Gosto de uma história que contou o pintor Calasans Neto, amigo de Jorge. A mãe do escritor comentou numa roda que, graças a Deus, seu filho nunca se envolvera em política. Depois de um instante de espanto silencioso, alguém disse: “Mas dona Eulália, o Jorge foi deputado constituinte pelo Partido Comunista!”. E dona Eulália: “Ah, um partidinho de nada...”.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

A mão do Senhor

Bendita seja, Senhor, a mão, que tantas graças em mim tem derramado. Vós me destes progenitores imaculados, que buscaram ensinar-me a não errar os vossos caminhos. Liberalizastes-me cinquenta anos de atividade ao serviço do meu país. Mais de quarenta me permitistes de união com uma companheira, que tem sido a vida de minha vida, a alma de minha alma, a flor sempre viva da vossa bondade no meu lar. Já me deixastes ver a segunda geração de uma descendência que me não deslustra. Ao cabo de tantas dádivas, me vejo agora cercado, tão assinaladamente pela benquerença dos meus concidadãos. E, sobre essa profusão de benefícios, ainda me cabe a dita, sem preço, de ver, no esboçar-se da vitória dos povos contra os déspotas, na confissão do valor dos pequenos pelos grandes Estados, na próxima União das Nações, o amanhecer desses ideais de legalidade e direito, de tolerância e democracia, de paz e fraternidade, que os vossos Evangelhos nos entremostram há mais de 1.900 anos. É muito, Senhor, para quem tão pouco merece, e, por mais dura que me tenha sido a carga do trabalho, por mais que me haja custado o amargor dos trabalhos, nada me resta, nada se apura do meu escasso crédito, comparado à dívida infinita, de que a vossa misericórdia me acabrunha.
Mas, Senhor, se a quem nada tem com que pagar, ainda será lícita a ousadia de pedir (e tal é, para convosco, a condição de todas as criaturas), dai que hoje, daqui, do alto desta solenidade, cujo esplendor só a vós pode ser tributado, juntemos todos as nossas orações às que há quatro anos se elevam aos vossos pés, de todos os cantos do planeta, num oceano de lágrimas, soluços e vidas, pela regeneração da vossa obra inenarrável, desnaturada hoje totalmente com a renascença do antigo paganismo na política anticristã, que baniu a moral, o direito e a verdade, substituídas pelo interesse, pela servidão e pela mentira.
Da vitória do bem não duvidei jamais, porque nunca me vacilou a crença na vossa justiça.
Rui Barbosa, in Antologia

Calvin


Recessão no Nordeste, quem trabalha está ameaçado de morrer à noite. E os bolsões de calor aumentam, só o guarda-chuva de seda preta resiste

(Narração feita pelo homem que costuma se sentar sempre à ponta da mesa. Souza ouviu, lembrando-se, como professor de História, da primeira cruzada arrasando Jerusalém, em 1099, tal como foi relatada por D’Agiles em História Francorum Qui Ceperunt Hierusalem: “Entre os sarracenos, uns tinham a cabeça cortada, o que era para eles a sorte mais doce; outros, atravessados por flechas, se viam obrigados a saltar do alto das torres; ou-tros ainda, após longo sofrimento, eram entregues às chamas e por elas consumidos. Viam-se nas ruas e nas praças da cidade pedaços de cabeças, de mãos, de pés. Infantes e cavaleiros abriam caminho através de cadáveres. Mas tudo isso ainda era pouco. Vamos até o Templo de Salomão, onde os sarracenos tinham o costume de celebrar as solenidades de seu culto! Que aconteceu nesses lugares? Se dissermos a verdade, ultrapassaremos os limites do inacreditável”.) O homem que se senta sempre à ponta da mesa contou: – Trabalhei numa tecelagem até que ela se fechou. Quando tudo se acabou no Nordeste, vim embora. Mais ou menos no Fim da Grande Época dos DIs. Os Deís, como o povo chamava lá em cima, eram os Decididamente Incompetentes. Você deve se lembrar, eles dominaram o país por seis anos. Três governos, cada um de dois anos. Os golpes de Estado funcionaram como relógio. A cada setecentos e trinta dias, um novo Deí substituía o anterior, demonstrando incompetência ainda maior que seu antecessor. Os Deís apenas não eram incompetentes para encher os próprios bolsos. Se quisessem, saberiam governar. No entanto, o Esquema estava manipulado, de modo que os postos se mantivessem entre eles, inacessíveis a qualquer cidadão. Ora, estou chovendo no molhado, um professor de História sabe disso melhor do que eu. Afinal, sou apenas um Operário Esclarecido. Ao menos, me considero um produto daqueles homens ótimos e lúcidos, exterminados no Período dos Mentirosos Crônicos. Meu pai desapareceu naquele tempo, engolido. Bem que os Operários Esclarecidos tentaram se movimentar, se arregimentar, abrir as cabeças dos trabalhadores. Os Mentirosos Crônicos castraram as lideranças, sufocaram os rebeldes, amaciaram os dúbios, compraram os fracos, enganaram todo mundo. Novidade nisso? Nenhuma. Posso dizer que sou um Operário Esclarecido porque não comecei como trabalhador comum. Fiz universidade, peguei meu diploma de sociologia e caí no vazio. Procurando emprego, procurando. Cata daqui, pega de lá, acabei na organização do pessoal numa tecelagem média do Alto São Francisco. O rio tinha entrado em agonia após anos de devastação em suas margens. Eliminada a cobertura vegetal, vieram as erosões, o escoamento superficial aumentou, assim como o assoreamento dos rios, das barragens e dos cursos de água. Quando o São Francisco se reduziu a um filete tentando sobreviver na areia quente, o povo ficou maluco. Com razão. Açudes secos, barragens vazias, o gado morto na caatinga, o sol esquentando, crianças morrendo. Elas não resistiam. A Grande Época dos Deís coincidiu com o fim das crianças no Nordeste. Elas foram exterminadas antes que o Esquema iniciasse o processo geral da esterilização do povo por causa dos acidentes com usinas nucleares. Havia dias em que a fábrica era um forno medonho, pessoas desmaiando, sufocadas, suando em bicas, se desidratando. Eu indagava onde íamos parar. Não havia possibilidade de deter nada, era um processo bola de neve, desencadeado muitos e muitos anos atrás. Modificar o clima? De que jeito? Empurrar o sol para cima? Era o que dava vontade para se livrar da quentura que arrancava a pele, ardia a cabeça, torrava os pés. A terra era areia, ou pedras. Me batia o desespero por não poder mover uma palha. Colocar de novo as montanhas no lugar, plantar a mata, puxar água do fundo da terra e transformá-la em rio? Tá brincando? Estou, é o jeito. Chegar ao governo e denunciar. Denunciar o quê, estava tudo denunciado. E acaso não foram as denúncias que conduziram aos Tempos Lamentáveis das Imensas Escamoteações, quando o Esquema mentia e enganava, fazia, desfazia e negava? Há anos os governantes se isolaram, inacessíveis, inabordáveis, imunes a qualquer contato com a população. Adiantava falar com as pessoas, pobres coitadas, preocupadas, e como, com o trabalho, a comida, o dia a dia? Elas me perguntavam: “Está bem, o que a gente faz? Para de trabalhar? Reclama com o patrão e é despedido? Organiza um movimento, assina um manifesto?”. Tinham razão, quantos movimentos foram planejados e boicotados? E os milhares de manifestos que estão arquivados, se é que estão, no túmulo da memória nacional? O problema era não provocar demissão. A perda do emprego significava morte para a família inteira. Estar na fábrica representava uma cota de água, mínima, um salário vergonhoso, a garantia da maloca em que se morava. A insegurança era imensa, quem estava desempregado fazia tudo para arranjar um posto. Tudo. O que amanhecia de gente morta nos terrenos, nos subúrbios das cidades, era inacreditável. Criaram-se patrulhas destinadas a recolher os corpos cada manhã. Percorriam os arrabaldes e traziam os cadáveres dos assassinados com paus, pedras, peixeiras, tiros, socos, pontapés. Havia fossos em volta das fábricas, em torno de qualquer lugar onde houvesse gente trabalhando. Valas, como na Idade Média, cercando castelos. Os empregados eram escoltados para suas casas e até patrulhas se viam atacadas, porque vigia e segurança também eram profissões. Percorria a caatinga, manhãzinha, e sofria enjoo, ânsia de vômito, a cabeça latejava. Me lembro de um velho filme, célebre no passado, que a televisão reprisa, você deve ter visto. Chama-se E o vento levou , e tem uma hora que a câmera sobe numa estação ferroviária e mostra o chão coalhado de mortos. Cena fantástica, clássica no cinema. Jamais se tinha visto tanto morto junto. Coisa de filme, se dizia. Hoje sei, não é. (Ouço, pensou Souza, com o mesmo horror com que li a história da primeira cruzada sobre Jerusalém. Cada palavra de D’Agiles, o historiador, me ficou gravada. De repente, estava tudo reproduzido, não no ano 1099, mas na entrada do século XXI, No templo e no pórtico de Salomão cavalga-se com sangue até o joelho do cavaleiro e até as rédeas do cavalo.) Depois de algum feriado, a violência era maior, não sei se pela bebida, se por causa do descuido. Ninguém suportava ficar em casa o tempo inteiro, sem sair nunca. Viver prisioneiro. Morar entre quatro paredes, ir para o emprego em furgões blindados, encerrar-se na fábrica por doze horas, temer a chacina diária. Conviver a cada instante com a possibilidade de morrer, preparar-se. Fomos nos habituando, de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia, aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade de acomodação da mentalidade, sua adaptação ao horror. Acredito que a gente possua um componente de perversidade que nos leva a encarar como normal esse pavor, a desejá-lo às vezes, desde que não nos toque. Uma porcentagem de perversidade que tem sido alimentada pelo Esquema, essa coisa tão abstrata, que consegue se manter em meio à anarquia, ao caos estabelecido como ordem, à anomalia mascarada em progresso. Não me interrompa, me deixe falar, botar para fora, vomitar o que vi e engoli e aceitei. Me sentia como os judeus caminhando ordenadamente para os fornos crematórios de Auschwitz, Dachau. Conhecedores e impotentes, esperançosos, até a hora do forno, na expectativa de que o fogo se apagasse, o gás perdesse o efeito mortífero, os aliados chegassem para salvá-los. Aí é que me pergunto, podemos lutar pela salvação isolados, individualizados, ou temos de contar com auxílios exteriores, amparo? Fizeram tudo para massificar, ao mesmo tempo que isolaram cada pessoa em si, tornando-a ferozmente individualista, fechada para o outro, sem apoio e sem querer apoiar, medrosa da própria personalidade. Você me acha louco, sinto no jeito com que me olha. Pode ser que seja. Prefiro estar. Minha vontade é que tudo isso seja mentira, delírio. A viagem pelas estradas, à noite, derreteu meu cérebro, fui deixando os miolos em fiapos pelo caminho. Tudo que tenho dentro é uma nuvenzinha leve, sombra do que foi uma cabeça que raciocinava, que me fazia agir. Acho que procuro desculpas para não carregar um grande peso. Eu olhava aquele Nordeste devastado, campo de batalha medieval. Horrorizado a cada novo dia, porque o sol levantava sobre o sangue seco das pessoas mortas no escuro. Porque eram pessoas que tinham emprego. E cada morte representava uma vaga, disputada violentamente nos portões das fábricas, numa guerra surda, não disfarçada, consentida e incentivada pelas empresas, ignorada pelo Esquema. Na minha cabeça ressoavam as palavras de Isaías: “Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhes os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. Então eu disse: Até quando Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores e a terra seja de todo assolada e o Senhor afaste dela os homens e no meio da terra seja grande o desamparo. Estava previsto. Oh! Povo meu! Os que te guiam te enganam, e destroem o caminho por onde deves seguir”. Tudo ali, dois mil anos, escrito e repetido, finalmente realizado. Tire daí o que se refere ao Senhor e a ficção científica se concretizou. Engraçado é que fugimos de lá, viemos para cá, e encontramos a mesma coisa. Empregados contra desempregados, na guerra mais violenta desde a do Paraguai. E sobre tudo o sol. A impressão é que ele desce milímetro a milímetro. Não sei se é possível, não sei nada de ciência. Possível ou não, a gente olhava para cima e a cabeça estourava, os olhos lacrimejavam. Começou a ficar impossível sair de casa. As pessoas passaram a usar chapéus, e não adiantava. Veio o tempo de guarda-chuvas. Alguém descobriu que o sol não atravessava guarda-chuvas de seda preta. Só os de seda. Outro pano não resistia. Dois, três dias de uso, o pano se esfarelava. Menos a seda preta. Ela resistia, protegia, formava uma sombra agradável. Não me pergunte por quê. Não me pergunte nada. Ninguém me respondeu, ninguém responde coisa alguma neste país. Havia outra situação estranha, curiosa. As regiões de quentura. Verdadeiros bolsões em que era impossível ficar, passar, atravessar. Você ia andando, mergulhava naquele calor insuportável. Corria, tentando escapar, porque às vezes o bolsão era pequeno, a gente se livrava logo. No fundo, era um divertimento. Dramático, mas engraçado, porque subitamente alguém a sua frente punha-se a pererecar, gritar, voltava correndo. Voltavam todos, sabia-se que era um bolsão. Mais tarde, quando fizemos a grande travessia, vimos que os bolsões existiam por toda a parte. Eram imensos em certas regiões, estendiam-se por quilômetros. Até que chegou o Tempo Intolerável. Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura retorcia. A luz lambia como raio laser. Com o tempo, o perigo nos bolsões de soalheira, como o povo chamava, aumentou terrivelmente. Quem caía dentro não se salvava. O sol atravessava como verruma, matava. Ao menos era a imagem que a gente tinha, porque a pessoa dava um berro enorme, apertava a cabeça com as duas mãos, o olho saltava, a boca se abria em busca de ar. Num segundo o infeliz caía, duro, sem se contorcer. A gente via, a alguns passos, a pessoa murchando, secando, desidratada, a pele se desgrudava como folha seca, mais um pouco e os ossos dissolviam. Não acredita, não é? Nunca ouviu falar disso. Ninguém falou, a imprensa jamais noticiou. Os cientistas foram estudar e ficaram perplexos. Apenas conseguiram determinar que os bolsões aumentavam gradualmente, em porcentagem semanal. Fizeram mapas, a população recebeu gráficos, mudaram o trânsito da ruas, as pessoas se deslocaram, alteraram estradas. As crianças brincavam empurrando cachorros e gatos para dentro dos bolsões. Até que os animais se transformaram em comida e não se deixava mais desperdiçá-los. Os Civiltares utilizavam os bolsões como castigo. Jogavam presos, desafetos, inimigos, subversivos na soalheira e esperavam. Desaparecido o corpo, sem testemunhas, não há crime, diz a lei. Para conseguir confissões ameaçavam as pessoas no limite dos bolsões: Fala, ou te jogo aí. Falavam. Claro, os bolsões à noite desapareciam. Deve ser aquele fenômeno comum ao deserto. Quente de dia, frio de noite. As famílias andavam pelas ruas, cercanias da cidade, em busca das cinzas de parentes que imaginavam consumidos. Não havia como reconhecer quem. Guiavam-se por conhecimentos relativos, baseando-se em dados frágeis: a mãe que tinha mandado o filho à venda, recomendando cuidado com o bolsão da praça. O pai que tinha ido ver um leilão de carne-seca nos arrabaldes. A filha que tinha ido à loja. A tia que tentava visitar uma avó. Namorada querendo se encontrar com namorado. Procura inútil, todo mundo sabia. Ninguém seguro de que estava levando para casa as cinzas certas. Podia ser um bezerro morto, se bem que bezerro fosse coisa rara, preciosa. Na verdade, ninguém suportava ficar dentro de casa. Saíam à noite e se encontravam. Os amigos ajudavam na procura. Ninguém saía só, formavam-se grandes grupos, com medo de ataques dos Caçadores Implacáveis de Empregados. Passeios temerosos, as pessoas sobressaltadas. Se alguém avistava um grupo, desviava-se logo. E o que se via, se pudesse ser visto do alto, era quase um balé, gente indo, vindo, desviando-se, voltando, encontrando outro grupo, se afastando, rodeando, andando de costas, girando. Maluquice, seu! Alguém suporta uma tensão dessas? Até que ninguém mais saiu. De dia ou de noite. Nem aqueles que tinham guarda-chuvas de seda preta. Não confiavam na invulnerabilidade. Também não adiantava sair. Estava tudo fechado. O padeiro não fazia pão, não existia farinha, nem mesmo a factícia. Os bares esgotaram estoques. A farmácia não tinha nem comprimido. Os fornecedores não chegavam, supunha-se que haviam sido apanhados pelos bolsões em algum ponto da estrada. Os açudes esvaziaram. Quem trabalhava podia se abastecer na subsistência das fábricas, no entanto mesmo estas, apesar de muito estoque, começaram a esvaziar. As pessoas se divertiam um pouco jogando pelas janelas os restos de comida, se é que sobrava, o lixo das casas, os papéis, bobaginhas. Às vezes, o lixo se incendiava em pleno ar antes de cair. E então não houve mais possibilidade de viver. O povo resolveu fugir. A vida intolerável. Sabe o que a gente fazia quando estava apertado, barriga solta? Esperava a noite, ia lá fora. No dia seguinte, o sol incinerava. As noites eram escuras, a energia tinha-se esgotado. Verdade, chegaram ao Nordeste alguns geradores de energia solar. Sabe com quem ficaram, não sabe? Com os últimos coronéis, com as famílias que mandavam, com aqueles ligados às Multinter. Puxa, você deve estar pensando, não havia mais nada de bom? Tinha, a vontade daquele povo de viver, não se entregar. Por isso começou a sair. Uma decisão automática, inconsciente, maciça. Os grupos começaram a partir à noite, protegidos pelos Caça-Empregados. Para eles, quanto mais gente se fosse, melhor. Instigavam, açulavam.
O quê? Açulavam?
É, açulavam.
Faz, no mínimo, sessenta anos que ninguém usa essa palavra, achei engraçado.
Ah, vê se me leva a sério.
Levo até demais. Mas que estranhei, estranhei. E daí?
Os Caça-Empregados praticamente começaram a obrigar as pessoas a migrar. As pessoas esperavam a noite entrar e o calor diminuir. Só alta madrugada refrescava mesmo e aí tudo gelava. Era um período relativamente curto, de três, quatro horas. Cada um levava sua mala, pacote, saco, gaiola. Havia caixotes que precisavam de dois, três para sustentar. Puxavam carrinhos com roupas, quadros, estatuetas, bugigangas. Incrível como as pessoas não se desprendem das coisas, se apegam a objetos, dependem deles, sentem-se inseguras, apavoradas. A primeira leva foi trágica. Quando a manhã chegou, estava em plena estrada, a alguns quilômetros da vila. Veio o sol e todos estavam dentro de um bolsão. Perceberam que iam morrer. Olharam em volta, procurando abrigo. A estrada cortava a caatinga, a terra gretada. O asfalto derretido, em bolotas, se esparramava para os lados do que tinha sido a pista. Alguns voltaram correndo. Um ou dois chegaram e mereciam medalhas de ouro olímpicas pela velocidade. Contaram. Os retirantes viam aqui e ali uma casa, um abrigo abandonado. Se amontoavam, se acotovelavam, pulavam uns sobre os outros, disputando a réstia de sombra. Chegavam a derrubar a casa de pau a pique, tanta gente entrava. Outros corriam, corriam na esperança de sair do bolsão. Outros ainda colocavam sobre a cabeça o que podiam. Roupa, telha, chapéu, tábua, quadro, guarda-chuva. O solo fervia, o chão queimava a sola dos pés. E o que se via era a dança mais incrível, todos pulando, os pés mal tocando o solo e se erguendo como que impulsionados por molas. Pulavam e gritavam de dor. À medida que o dia crescia, a dança da morte ao sol aumentava em intensidade. Parecia um ataque histérico, um transe coletivo, o santo baixado em todo mundo. Logo, ia diminuindo. O sol comia as roupas, os quadros, os guarda-chuvas que não eram de seda preta. Lambia os cabelos, a pele, as carnes, os ossos. Pelas nove da manhã sobravam montes de cinzas espalhados pela terra, misturados ao asfalto derretido. Quem tinha sobrevivido nos poucos abrigos esperava a noite para recomeçar a marcha. Tinham visto as pessoas se consumirem. Sem orientação, tomavam as estradas que iam para o Sul. Os gráficos dos bolsões não adiantavam. Os indicadores não se encontravam nos lugares, talvez fossem realmente móveis. Em compensação, surgiam outros. As pessoas sabiam que a caminhada seria cheia de voltas, teriam de contornar as reservas das Multinter, territórios proibidos a brasileiros, você conhece bem o assunto. A esperança era que no Centro, no Leste e no Sul existissem cidades que o sol não tivesse atingido. – Bom, mas os bolsões também atingiam as reservas, não atingiam? As empresas afinal não são tão poderosas assim que conseguissem formar uma barreira contra o clima. – Não tenho a mínima ideia. Nunca entrei. Os que moravam lá e eram brasileiros foram obrigados a sair e não se sabe o que acontece dentro. O mistério é esse. – Alguém sabe! – Pois é, me mostre esse alguém! Continuo? Está bem. Aos poucos, a multidão engrossava com as correntes vindas de outras cidades. Se encontravam nos cruzamentos, no meio dos campos. Atravessavam aldeias, a população se juntava. Os doentes permaneciam, ficavam acenando das janelas, das portas. Vi muitas famílias levando os velhos para o meio da rua, a pedido deles mesmos. Queriam esperar o dia nascer. Não podiam caminhar, não queriam ficar sozinhos, decidiam pelo meio da rua. Colocavam os velhos em grupos, e eles, tranquilos, se punham a conversar, as mulheres de terço na mão, esperando o sol. Alguns, não! Gritavam, esperneavam, tentavam acompanhar o estirão. Muitos acompanharam até o fim, até chegar a esta cidade. Todo mundo dizia: “Vamos para a cidade estrela, lá dá para viver, comer, trabalhar” . – Eu me lembro, meses atrás, quando era permitido, a televisão noticiou essa marcha. Filmaram os retirantes de helicóptero e era de impressionar a massa que se deslocava. Parecia visita do papa. Lembra-se das fotos da década de oitenta quando o papa visitou o país? Aquela multidão que não acabava mais, aclamando. Meu Deus, como o povo andava necessitado de líderes naquele tempo. Era um período de transição, não entendiam que a era dos líderes estava acabada, não surgiria mais nenhum. Sentiam-se órfãos, desamparados, sem condutor.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Rachell luz feat. Zeca Baleiro - Flor da Pele

A prisão do livro “Mundo da paz”

Houve ultimamente neste país um caso lastimoso, mais ou menos abafado, pois é conveniente ao poder público, aos homens que nos dirigem discricionariamente, guardar silêncio às vezes.
O caso foi este: prendeu-se um livro. Teria sido melhor, com certeza, meter na cadeia o autor, como se fazia há quinze anos, com vantagem para o governo. Agora, infelizmente, isto não foi possível: o autor estava longe, para lá da cortina de ferro. Se o doutor Fulano quisesse agarrá-lo, acharia dificuldades.
Sabem a quem me refiro: ao escritor Jorge Amado, homem perigoso, perigosíssimo, na opinião das pessoas castradas que governam, com antolhos, o hemisfério ocidental e cristão.
Que se passa além da cortina de ferro? Desejamos saber isso, esforçamo-nos por entender os telegramas forjados pelos nossos patrões.
Recebemos um livro. Muito bem. Vamos ver o que existe para lá da cortina de ferro. Mas a polícia não consente que leiamos esse livro. Por quê? A polícia não quer que saibamos o que acontece no mundo.
Há nessas páginas, possivelmente, qualquer coisa contra a ordem ocidental e cristã. Não podemos ver esses horrores, porque nos arrancam das mãos o volume. Antes de examinar o livro, a ordem já sabe que ele não presta. Não se condena o livro, mas o autor, que vive bem, suponho, melhor que nós, fora do cristianismo e do dólar.
Este caso, minhas senhoras e meus senhores, é triste e é burlesco. Fazia tempo que não víamos isso. Entra um funcionário carrancudo na livraria e retira algumas dezenas de volumes da prateleira. Está salva a pátria, pelo menos durante uma semana.
Mas a inteligência que determinou a brutalidade ignora isto: o livro se valoriza. Passaria talvez despercebido, vendia-se por trinta, quarenta, cinquenta mil-réis. Depois da apreensão, é vendido clandestinamente por um conto de réis, ou mais, nem sei quanto, dinheiro como o diabo. Muita gente que o veria sem interesse deseja comprá-lo, porque está proibido. O mercado negro, que arranjam por aí. Não temos culpa disso.
Outra coisa: as nossas autoridades cautelosas desconhecem um fato corriqueiro: a literatura de Jorge Amado é publicada em vinte línguas, mais de vinte línguas. Será que a nossa polícia tem a pretensão de retirar esse veneno das vitrines em Sofia, em Bucareste, em Praga e em Varsóvia? Os dedos dela são curtos, não chegam lá.
Minhas senhoras e meus senhores: o escritor Miécio Tati, que nos honra com seu trabalho na Associação Brasileira de Escritores, vai dar-nos o prazer de ouvir um estudo sobre os romances do nosso companheiro Jorge Amado.
Graciliano Ramos, in Garranchos

Aqui ou lá fora

 

Depoimento

Cessou o jorro das fontes”
anotou aquele velho escriba em suas tábuas
e mal sabia ele que essa era a maior História
da invasão de Roma pelos bárbaros.
Mário Quintana

As idades de Josephine


Aos nove anos de idade, ela trabalha limpando casas em St. Louis, às margens do rio Mississippi.
Aos 10, ela começa a dançar na rua em troca de moedas. Aos 13, ela se casa.
Aos 15, se casa novamente. Do primeiro marido, ela não guarda nem mesmo uma lembrança ruim. Do segundo, ela guarda o sobrenome, pois gosta de como ele soa.
Aos 17, Josephine Baker dança o Charleston na Broadway. Aos 18, ela cruza o Atlântico e conquista Paris. A “Vênus de Bronze” faz sua performance nua, usando nada mais do que um cacho de bananas.
Aos 24, ela é a mulher mais fotografada no planeta. Pablo Picasso, de joelhos, a pinta. Para parecer com ela, as jovens donzelas pálidas de Paris esfregavam creme de nogueira, que escurece a pele.
Aos 30, ela tem problema em alguns hotéis, pois viaja com um chimpanzé, uma cobra, uma cabra, dois papagaios, vários peixes, três gatos, sete cães, uma chita chamada Chiquita, que usa um colar de diamantes, e um porquinho chamado Albert, que ela banha em um perfume Je Reviens.
Aos 40, ela recebe a medalha de Honra da Legião, por seus serviços à Resistência Francesa durante a ocupação nazista.
Aos 41 e em seu quarto marido, ela adota 12 crianças de diversas cores de pele e diversas origens, que ela chama de “minha tribo arco-íris”.
Aos 45, ela retorna aos EUA. Ele insiste que qualquer um, brancos ou negros, se sentem juntos em seus shows. Senão, ela não se apresentaria. Aos 57, ela divide o palco com Martin Luther King e fala contra a discriminação racial diante de um imenso público na Marcha a Washington.
Aos 68, ela se recupera de uma calamitosa falência e no Teatro Bobino, em Paris, ela celebra cinquenta anos nos palcos.
E ela morre.
Eduardo Galeano, in Espelhos – uma história quase universal

Capítulo 150 - Rotação e translação

Há em cada empresa, afeição ou idade um ciclo inteiro da vida humana. O primeiro número do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis meses depois batia a hora da velhice, e daí a duas semanas a da morte, que foi clandestina, como a de Dona Plácida. No dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer uma coisa inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menos nítida e adequada, prefiro uma imagem astronômica: o homem executa à roda do grande mistério um movimento duplo de rotação e translação; tem os seus dias, desiguais como os de Júpiter, e deles compõe o seu ano mais ou menos longo.
No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação, concluía Lobo Neves o seu movimento de translação.
Morria com o pé na escada ministerial. Correu, ao menos durante algumas semanas, que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita irritação e inveja, não é impossível que a notícia da morte me deixasse alguma tranquilidade, alívio, e um ou dois minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura verdade.
Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério, principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tarde tinha o peso e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas pretas…
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Almério - Por Que Você

Por que Neruda

O sal do mundo tinha se reunido no México. Escritores exilados de todos os países tinham acampado sob a liberdade mexicana enquanto a guerra se prolongava na Europa com vitória após vitória das forças de Hitler que já tinham ocupado a França e a Itália. Ali estava Ana Seghers e o hoje desaparecido humorista tcheco Egon Erwin Kish, entre outros. Kish deixou alguns livros fascinantes e eu admirava muito sua grande inventiva, a curiosidade infantil e os conhecimentos de prestidigitação. Mal entrava em minha casa tirava um ovo de uma orelha ou ia engolindo, uma por uma, até sete moedas que bastante falta faziam ao pobre e grande escritor desterrado. Já nos conhecíamos da Espanha e, como ele manifestava a insistente curiosidade de saber por que motivo me chamava Neruda sem ter nascido com esse sobrenome, eu lhe dizia de brincadeira:
Grande Kish, foste tu o descobridor do mistério do Coronel Redl (famoso caso de espionagem acontecido na Áustria, em 1914) mas nunca esclarecerás o mistério de meu nome Neruda.
E assim foi. Morreria em Praga, em meio a todas as homenagens que sua pátria libertada lhe deu, mas nunca o intrometido profissional conseguiria saber por que Neruda se chamava Neruda.
A resposta era demasiado simples e tão sem nada de extraordinário que eu guardava o mais cuidadoso segredo. Quando eu tinha quatorze anos de idade, meu pai perseguia denodadamente minha atividade literária. Não concordava em ter um filho poeta. Para encobrir a publicação de meus primeiros versos busquei um sobrenome que o despistasse totalmente. Encontrei numa revista esse nome tcheco, sem saber sequer que se tratava de um grande escritor, venerado por todo um povo, autor de belíssimas baladas e romances e com monumento erigido no bairro Mala Strana de Praga. Mal cheguei à Tchecoslováquia, muitos anos depois, coloquei uma flor aos pés de sua estátua barbuda.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Medalhas

No fim da vida, ele possuía grande coleção de medalhas, todas obtidas por merecimento. Havia as de curso primário, as de curso médio, as de universidade, as de natação, as de fidelidade partidária. Ganhara medalha por ato de bravura e por assiduidade ao serviço. Medalha de literatura e medalha de pintor de domingo. Medalha de benemérito de várias instituições consideradas de utilidade pública. Muitas medalhas.
Esquecia-me de mencionar a medalha de sofrimento, que lhe deram por haver suportado sem queixa a amputação de uma perna em consequência de desastre na via Dutra. Sua resignação fora exemplar, e a medalha, cunhada especialmente para ele.
Contemplava todas essas medalhas sem orgulho, mas com algum prazer, e só não gostava de pegar em uma delas. A medalha de silêncio, conquistada por haver mantido discrição num caso de segurança nacional. Seu depoimento salvaria um inocente, mas, fiel a seus princípios, não quis pôr em xeque os altos interesses do Estado, ou que lhe pareciam tal. Esta distinção o deixava triste. Ao morrer, pediu que jogassem todas fora.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

A crítica social no traço do cubano Angel Boligán


Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa

Um vison próprio

A sra. Munson acabou de entrançar uma rosa de linho no cabelo castanho avermelhado e recuou do espelho para avaliar o efeito. Então correu as mãos até os quadris... o vestido era justo demais, esse era o problema. “Uma mudança não vai salvá-lo”, ela pensou, irritada. Com um último olhar depreciativo para seu reflexo, virou-se e foi para a sala de estar.
As janelas estavam abertas, e a sala, cheia de gritos estridentes altos, pavorosos. A sra. Munson morava no terceiro andar, e do outro lado da rua ficava o playground de uma escola pública. No final da tarde o barulho era quase insuportável. Deus, se ela soubesse disso antes de assinar o contrato de aluguel! Com um pequeno grunhido fechou as duas janelas, e em sua opinião elas podiam ficar assim pelos dois anos seguintes.
Mas a sra. Munson estava excitada demais para ficar realmente aborrecida. Vini Rondo vinha visitá-la, imagine, Vini Rondo... e esta tarde! Quando ela pensou nisso, sentiu asas adejantes no estômago. Fazia quase cinco anos, e Vini tinha estado na Europa todo esse tempo. Sempre que a sra. Munson se encontrava num grupo discutindo a guerra, invariavelmente anunciava: “Bem, vocês sabem que eu tenho uma amiga muito querida em Paris neste exato minuto, Vini Rondo, ela estava lá quando os alemães chegaram! Eu tenho verdadeiros pesadelos quando penso no que ela deve ter passado!”. A sra. Munson dizia isso como se o que estivesse em jogo fosse seu próprio destino.
Se houvesse alguém na festa que ainda não tivesse ouvido a história, ela se apressava a dar explicações sobre a amiga. “Sabe”, começava, “Vini era a mais talentosa das garotas, interessada em arte e todo esse tipo de coisa. Bem, tinha um bocado de dinheiro, então ia à Europa pelo menos uma vez por ano. Por fim, quando seu pai morreu, ela empacotou suas coisas e foi de vez. Oh, mas ela teve um caso passageiro, e então casou com um conde ou barão ou coisa parecida. Talvez você tenha ouvido alguma coisa sobre ela... Vini Rondo... Cholly Knickerbocker costumava falar dela o tempo todo.” E assim continuava, como numa aula de história.
Vini, de volta à América”, ela pensou, sem parar de se deleitar com a maravilha daquilo. Afofou as almofadinhas verdes no sofá e sentou-se. Com olhos penetrantes, examinou a sala. É engraçado como nunca vemos de fato nosso ambiente até o momento em que esperamos uma visita. Bem, a sra. Munson suspirou de contentamento, aquela nova criada, para variar, tinha restaurado os padrões anteriores à guerra.
A campainha soou abruptamente. Tocou duas vezes antes que a sra. Munson conseguisse se mover, de tão excitada. Por fim ela se compôs e foi atender.
De início a sra. Munson não a reconheceu. A mulher que a confrontava não usava nenhum penteado armado chique... na verdade seu cabelo pendia um tanto frouxo e parecia despenteado. Um vestido estampado em janeiro? A sra. Munson tentou evitar que a decepção aparecesse em sua voz quando disse: “Vini, querida, eu a reconheceria em qualquer lugar”.
A mulher ainda estava na soleira. Debaixo do braço, carregava uma grande caixa cor-de-rosa, e seus olhos cinza olhavam curiosos para a sra. Munson.
Reconheceria, Bertha?” Sua voz era apenas um sussurro. “Que bom, muito bom. Eu também a teria reconhecido, embora você tenha engordado um pouco, não é?” Então ela aceitou a mão estendida da sra. Munson e entrou.
A sra. Munson estava constrangida e não sabia exatamente o que dizer. De braço dado, elas entraram na sala de estar e sentaram-se.
Que tal um sherry?”
Vini balançou sua cabecinha escura: “Não, obrigada”.
Bem, e que tal um scotch ou alguma outra coisa?”, perguntou, desesperada, a sra. Munson. O relógio-estatueta no falso consolo de lareira repicou suavemente. A sra. Munson nunca notara como ele soava alto.
Não”, disse Vini com firmeza, “nada, obrigada.”
Resignada, a sra. Munson voltou a sentar no sofá. “Agora, querida, me conte. Quando chegou aos Estados Unidos?” Gostava do som daquilo. “Estados Unidos.”
Vini colocou a grande caixa cor-de-rosa entre as pernas e entrelaçou os dedos das mãos. “Estou aqui há quase um ano”, fez uma pausa, depois, percebendo a expressão de surpresa da anfitriã, se apressou, “mas não estive em Nova York. Naturalmente eu teria entrado em contato com você antes, mas eu estava na Califórnia.”
Ah, a Califórnia, eu adoro a Califórnia!”, exclamou a sra. Munson, embora, na verdade, em suas viagens para o Oeste ela nunca tivesse ido além de Chicago.
Vini sorriu, e a sra. Munson percebeu como seus dentes eram irregulares e decidiu que eles precisavam de uma boa escovada.
Então”, continuou Vini, “quando eu voltei para Nova York na semana passada, logo pensei em você. Tive uma enorme dificuldade para encontrá-la, porque não conseguia lembrar do primeiro nome de seu marido...”
Albert”, disse a sra. Munson, sem necessidade.
... mas por fim lembrei, e aqui estou. Sabe, Bertha, eu realmente comecei a pensar em você quando decidi me desfazer do meu casaco de vison.”
A sra. Munson viu um rubor repentino no rosto de Vini.
Seu casaco de vison?”
É”, disse Vini, erguendo a caixa cor-de-rosa. “Você se lembra do meu casaco de vison. Você sempre o admirou tanto. Sempre dizia que era o casaco mais adorável que já tinha visto.” Começou a desamarrar a fita de seda puída que prendia a caixa.
É claro, sim, é claro”, disse a sra. Munson, deixando o “claro” vibrar suavemente.
Eu disse comigo mesma: ‘Vini Rondo, para que você precisa desse casaco? Por que não deixar que Bertha o possua?’. Sabe, Bertha, eu comprei uma zibelina magnífica em Paris, e você deve entender que realmente não preciso de dois casacos de pele. Além disso, tenho minha jaqueta de pele de raposa prateada.”
A sra. Munson observou-a abrir o papel de seda na caixa, viu o esmalte lascado em suas unhas, viu que seus dedos não tinham jóias, e de repente percebeu muitas outras coisas.
Então pensei em você, e, a menos que você o queira, vou simplesmente guardá-lo, porque não suportaria pensar em outra pessoa como dona dele.” Segurou o casaco e o virou para um lado e para outro. Era um belo casaco; a pele brilhava, viva e muito uniforme. A sra. Munson estendeu o braço e passou os dedos nele do jeito errado, eriçando os pêlos minúsculos. Sem pensar, disse: “Quanto?”.
A sra. Munson recolheu rapidamente a mão, como se tivesse tocado em fogo, e então ouviu a voz de Vini, baixa e cansada.
Eu paguei quase mil por ele. Mil é demais?”
Na rua, a sra. Munson podia ouvir o rugido ensurdecedor do playground, e por uma vez se sentiu agradecida. Ele dava a ela algo mais em que se concentrar, algo para diminuir a intensidade de seus sentimentos.
Infelizmente, sim. Eu realmente não posso pagar isso”, disse a sra. Munson, distraída, ainda olhando para o casaco, com medo de erguer os olhos e ver o rosto da outra mulher.
Vini pôs o casaco no sofá. “Bem, eu quero que você fique com ele. Não é tanto pelo dinheiro, mas penso que devo ter algo em troca de meu investimento... Quanto você pode pagar?”
A sra. Munson fechou os olhos. Oh, Deus, isso era horrível! Tão horrível!
Talvez quatrocentos”, respondeu debilmente.
Vini pegou de novo o casaco e disse, animada: “Então vamos ver como fica em você”.
Elas foram para o quarto, e a sra. Munson experimentou o casaco na frente do espelho de corpo inteiro de seu guarda-roupa. Apenas alguns ajustes, encurtar as mangas, e talvez ela mandasse poli-lo de novo. Sim, certamente ele caía muito bem nela.
Oh, eu acho que está lindo, Vini. Foi tão amável de sua parte ter pensado em mim.”
Vini encostou-se na parede, o rosto pálido parecendo severo à luz do sol magnificada das grandes janelas do quarto.
Pode fazer o cheque para mim”, disse desinteressadamente.
Sim, é claro”, disse a sra. Munson, voltando a si de repente. Imagine Bertha Munson com seu próprio vison!
Elas voltaram para a sala de estar, e ela preencheu o cheque para Vini. Depois de dobrá-lo cuidadosamente, Vini o guardou em sua bolsinha de contas.
A sra. Munson se esforçou para manter a conversa, mas a cada nova tentativa esbarrava numa parede fria. Uma vez perguntou: “Onde está seu marido, Vini? Você deve trazê-lo para conversar com Albert”. E Vini respondeu: “Ah, ele! Faz zilhões de anos que não o vejo. Pelo que sei, ainda está em Lisboa”. E foi isso.
Por fim, depois de prometer telefonar no dia seguinte, Vini foi embora. Assim que ela saiu, a sra. Munson pensou: “Ora essa, pobre Vini, não passa de uma refugiada!”. Então pegou seu novo casaco e foi para o quarto. Não podia contar a Albert como o conseguira, isso estava fora de questão. Meu Deus, mas ele ficaria louco por causa do dinheiro! Ela decidiu escondê-lo no canto mais inacessível do guarda-roupa, e então, um dia, ela o pegaria e diria: “Albert, olhe o vison divino que eu comprei num leilão. Paguei quase nada por ele”.
Tateando no escuro do guarda-roupa, ela pôs o casaco num cabide. Deu um puxãozinho e ficou aterrorizada ao ouvir o som de esgarçar. Acendeu depressa a luz e viu que a manga estava rasgada. Segurou o rasgo e puxou de leve. Ele se abriu mais, e mais. Sentindo um vazio pesaroso, ela soube que estava tudo péssimo. “Oh, meu Deus”, disse, agarrando a rosa de linho em seu cabelo. “Oh, meu Deus, eu fui lesada e bem lesada, não há nada neste mundo que eu possa fazer, absolutamente nada!” Porque de repente a sra. Munson se deu conta de que Vini não telefonaria nem no dia seguinte nem nunca mais.
Truman Capote, in 20 contos de Truman Capote

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Da razão

Duas extravagâncias: excluir a razão, admitir só a razão.”
Blas Pascal

Um rôo de remorso

  

Assim mesmo, naquele estado exaltado em que andei, concebi fundamento para um conselho: na jornada por diante, a gente tinha de deixar duma banda do rio, ir passar a Serra-da-Onça e entestar com a travessia do Jequitaí, por onde podia ter tropa de soldados; mais ajuizado não seria se enviar só um, até lá, espiar o que se desse e colher outras informações?
Titão Passos era homem ponderado em simples, achou boa a minha razão.Todos acharam. Aquela munição era de ida urgente, mas também valia mais que ouro, que sangue, se carecia de todo cuidado. Fui louvado e dito valedor, certo nas ideias. Ao senhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo ― que a assoprada na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e mais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que minha opinião era só pelo desejo encoberto de que a gente pudesse ficar mais tempo ali, naquele lugar que me concedia tantos regalos. Assim um rôo de remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão séria em cima, e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres. Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer surtiu efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o Jenolim saiu em rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com a mesma tenção, rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o Pontal da Barra, com todos os ouvidos bem abertos. E nós ficamos esperando a volta deles, cinco dias lá, com grande regozijo e repouso, na casa do preto Pedro Segundo de Rezende, que era posteiro em terras da Fazenda São Joãozinho, de um coronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e tirando mel da abelha-de-poucas-flores, que arma sua cera cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousados nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me perguntou! ― Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos? ― Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigo seu! ― eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricurí retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom. Titão Passos regulou um espanto! uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem disse, risonho bobeento:
Bom? Um messias!... O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era sempre tranquilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal. Talvez também seja. Anta entra nágua, se rupêia. Mas, não. Era não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava criticando, era me a mim contando logro ― jigajogas.
Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo... ― o Reinaldo veio dizendo. ― Vai ver que ele é o homem que existe mais valente! Me olhou, com aqueles olhos quando doces. E perfez: ― Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?! Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser. Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao com padre meu Quelemém. ― Do que o valor dessas palavras tem dentro ― ele me respondeu ― não pode haver verdade maior... Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar meu pêjo de tribulação.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Egberto Gismonti - Água & Vinho (1972)

Mas vai chover

Maria Angélica de Andrade tinha sessenta anos. E um amante, Alexandre, de dezenove anos.
Todos sabiam que o menino se aproveitava da riqueza de Maria Angélica. Só Maria Angélica não suspeitava.
Começou assim: Alexandre era entregador de produtos farmacêuticos e tocou a campainha da casa de Maria Angélica. Esta mesma abriu a porta. E deparou-se com um jovem forte, alto, de grande beleza. Em vez de receber o remédio que encomendara e pagar o preço, perguntou-lhe, meio assustada com a própria ousadia, se não queria entrar para tomar um café.
Alexandre espantou-se e disse que não, obrigado. Mas ela insistiu. Acrescentou que tinha bolo também.
O rapaz hesitava, visivelmente constrangido. Mas disse:
Se for por pouco tempo, entro, porque tenho que trabalhar.
Entrou. Maria Angélica não sabia que já estava apaixonada. Deu-lhe uma grossa fatia de bolo e café com leite. Enquanto ele comia pouco à vontade, ela embevecida o olhava. Ele era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado. O rapaz acabou de comer e beber, e enxugou a boca com a manga da camisa. Maria Angélica não achou que fossem maus modos: ficou deliciada, achou-o natural, simples, encantador.
Agora vou embora que meu patrão vai me deixar grilado se eu demorar.
Ela estava fascinada. Observou que ele tinha umas poucas espinhas no rosto. Mas isso não lhe alterava a beleza e a masculinidade: os hormônios lá ferviam. Aquele, sim, era um homem. Deu-lhe uma gorjeta enorme, desproporcional, que surpreendeu o rapaz. E disse com uma vozinha cantante e com trejeitos de mocinha romântica:
Só deixo você sair se prometer que voltará! Hoje mesmo! Porque vou pedir uma vitaminazinha na farmácia...
Uma hora depois ele estava de volta com as vitaminas. Ela havia mudado de roupa, estava com um quimono de renda transparente. Via-se a marca de suas calcinhas. Mandou-o entrar. Disse-lhe que era viúva. Era o modo de lhe avisar que era livre. Mas o rapaz não entendia.
Convidou-o a percorrer o bem decorado apartamento deixando-o embasbacado. Levou-o a seu quarto. Não sabia como fazer para que ele entendesse. Disse-lhe então:
Deixe eu lhe dar um beijinho!
O rapaz se espantou, estendeu-lhe o rosto. Mas ela alcançou bem depressa a boca e quase a devorou.
Minha senhora, disse o menino nervoso, por favor se controle! A senhora está passando bem?
Não posso me controlar! Eu te amo! Venha para a cama comigo!
Tá doida?!
Não estou doida! Ou melhor: estou doida por você! gritou-lhe enquanto tirava a coberta roxa da grande cama de casal.
E vendo que ele nunca entenderia, disse-lhe morta de vergonha:
Venha para a cama comigo...
Eu?!
Eu lhe dou um presente grande! Eu lhe dou um carro!
Carro? Os olhos do rapaz faiscaram de cobiça. Um carro! Era tudo o que desejava na vida. Perguntou desconfiado:
Um karmann-ghia?
Sim, meu amor, o que você quiser!
O que se passou em seguida foi horrível. Não é necessário saber. Maria Angélica – oh, meu Deus, tenha piedade de mim, me perdoe por ter que escrever isto! – Maria Angélica dava gritinhos na hora do amor. E Alexandre tendo que suportar com nojo, com revolta. Transformou-se num rebelado para o resto da vida. Tinha a impressão de que nunca mais ia poder dormir com uma mulher. O que aconteceria mesmo: aos vinte e sete anos ficou impotente.
E tornaram-se amantes. Ele, por causa dos vizinhos, não morava com ela. Quis morar num hotel de luxo: tomava café na cama. E logo abandonou o emprego. Comprou camisas caríssimas. Foi a um dermatologista e as espinhas desapareceram.
Maria Angélica mal acreditava na sua sorte. Pouco se importava com as criadas que quase riam na sua cara.
Uma amiga sua advertiu-lhe:
Maria Angélica, você não vê que o rapaz é um pilantra? que está explorando você?
Não admito que você chame Alex de pilantra! E ele me ama!
Um dia Alex teve uma ousadia. Disse-lhe:
Vou passar uns dias fora do Rio com uma garota que conheci. Preciso de dinheiro.
Foram dias horríveis para Maria Angélica. Não saiu de casa, não tomou banho, mal se alimentou. Era por teimosia que ainda acreditava em Deus. Porque Deus a abandonara. Ela era obrigada a ser penosamente ela mesma.
Cinco dias depois ele voltou, todo pimpão, todo alegre. Trouxe-lhe de presente uma lata de goiabada cascão. Ela foi comer e quebrou um dente. Teve que ir ao dentista para pôr um dente falso.
E a vida corria. As contas aumentavam. Alexandre exigente. Maria Angélica aflita. Quando fez sessenta e um anos de idade ele não apareceu. Ela ficou sozinha diante do bolo de aniversário.
Então – então aconteceu.
Alexandre lhe disse:
Preciso de um milhão de cruzeiros.
Um milhão? espantou-se Maria Angélica.
Sim!, respondeu irritado, um bilhão antigo!
Mas... mas eu não tenho tanto dinheiro...
Venda o apartamento, então, e venda o seu Mercedes, dispense o chofer.
Mesmo assim não dava, meu amor, tenha piedade de mim!
O rapaz enfureceu-se:
Sua velha desgraçada! sua porca, sua vagabunda! Sem um bilhão não me presto mais para as suas sem-vergonhices!
E, num ímpeto de ódio, saiu batendo a porta de casa.
Maria Angélica ficou ali de pé. Doía-lhe o corpo todo.
Depois foi devagar sentar-se no sofá da sala. Parecia uma ferida de guerra. Mas não havia Cruz Vermelha que a socorresse. Estava quieta, muda. Sem palavra nenhuma a dizer.
Parece – pensou – parece que vai chover.
Clarice Lispector, in A via crucis do corpo