(Narração
feita pelo homem que costuma se sentar sempre à ponta da mesa. Souza
ouviu, lembrando-se, como professor de História, da primeira cruzada
arrasando Jerusalém, em 1099, tal como foi relatada por D’Agiles
em História Francorum Qui Ceperunt Hierusalem: “Entre os
sarracenos, uns tinham a cabeça cortada, o que era para eles a sorte
mais doce; outros, atravessados por flechas, se viam obrigados a
saltar do alto das torres; ou-tros ainda, após longo sofrimento,
eram entregues às chamas e por elas consumidos. Viam-se nas ruas e
nas praças da cidade pedaços de cabeças, de mãos, de pés.
Infantes e cavaleiros abriam caminho através de cadáveres. Mas tudo
isso ainda era pouco. Vamos até o Templo de Salomão, onde os
sarracenos tinham o costume de celebrar as solenidades de seu culto!
Que aconteceu nesses lugares? Se dissermos a verdade, ultrapassaremos
os limites do inacreditável”.) O homem que se senta sempre à
ponta da mesa contou: – Trabalhei numa tecelagem até que ela se
fechou. Quando tudo se acabou no Nordeste, vim embora. Mais ou menos
no Fim da Grande Época dos DIs. Os Deís, como o povo chamava lá em
cima, eram os Decididamente Incompetentes. Você deve se lembrar,
eles dominaram o país por seis anos. Três governos, cada um de dois
anos. Os golpes de Estado funcionaram como relógio. A cada
setecentos e trinta dias, um novo Deí substituía o anterior,
demonstrando incompetência ainda maior que seu antecessor. Os Deís
apenas não eram incompetentes para encher os próprios bolsos. Se
quisessem, saberiam governar. No entanto, o Esquema estava
manipulado, de modo que os postos se mantivessem entre eles,
inacessíveis a qualquer cidadão. Ora, estou chovendo no molhado, um
professor de História sabe disso melhor do que eu. Afinal, sou
apenas um Operário Esclarecido. Ao menos, me considero um produto
daqueles homens ótimos e lúcidos, exterminados no Período dos
Mentirosos Crônicos. Meu pai desapareceu naquele tempo, engolido.
Bem que os Operários Esclarecidos tentaram se movimentar, se
arregimentar, abrir as cabeças dos trabalhadores. Os Mentirosos
Crônicos castraram as lideranças, sufocaram os rebeldes, amaciaram
os dúbios, compraram os fracos, enganaram todo mundo. Novidade
nisso? Nenhuma. Posso dizer que sou um Operário Esclarecido porque
não comecei como trabalhador comum. Fiz universidade, peguei meu
diploma de sociologia e caí no vazio. Procurando emprego,
procurando. Cata daqui, pega de lá, acabei na organização do
pessoal numa tecelagem média do Alto São Francisco. O rio tinha
entrado em agonia após anos de devastação em suas margens.
Eliminada a cobertura vegetal, vieram as erosões, o escoamento
superficial aumentou, assim como o assoreamento dos rios, das
barragens e dos cursos de água. Quando o São Francisco se reduziu a
um filete tentando sobreviver na areia quente, o povo ficou maluco.
Com razão. Açudes secos, barragens vazias, o gado morto na
caatinga, o sol esquentando, crianças morrendo. Elas não resistiam.
A Grande Época dos Deís coincidiu com o fim das crianças no
Nordeste. Elas foram exterminadas antes que o Esquema iniciasse o
processo geral da esterilização do povo por causa dos acidentes com
usinas nucleares. Havia dias em que a fábrica era um forno medonho,
pessoas desmaiando, sufocadas, suando em bicas, se desidratando. Eu
indagava onde íamos parar. Não havia possibilidade de deter nada,
era um processo bola de neve, desencadeado muitos e muitos anos
atrás. Modificar o clima? De que jeito? Empurrar o sol para cima?
Era o que dava vontade para se livrar da quentura que arrancava a
pele, ardia a cabeça, torrava os pés. A terra era areia, ou pedras.
Me batia o desespero por não poder mover uma palha. Colocar de novo
as montanhas no lugar, plantar a mata, puxar água do fundo da terra
e transformá-la em rio? Tá brincando? Estou, é o jeito. Chegar ao
governo e denunciar. Denunciar o quê, estava tudo denunciado. E
acaso não foram as denúncias que conduziram aos Tempos Lamentáveis
das Imensas Escamoteações, quando o Esquema mentia e enganava,
fazia, desfazia e negava? Há anos os governantes se isolaram,
inacessíveis, inabordáveis, imunes a qualquer contato com a
população. Adiantava falar com as pessoas, pobres coitadas,
preocupadas, e como, com o trabalho, a comida, o dia a dia? Elas me
perguntavam: “Está bem, o que a gente faz? Para de trabalhar?
Reclama com o patrão e é despedido? Organiza um movimento, assina
um manifesto?”. Tinham razão, quantos movimentos foram planejados
e boicotados? E os milhares de manifestos que estão arquivados, se é
que estão, no túmulo da memória nacional? O problema era não
provocar demissão. A perda do emprego significava morte para a
família inteira. Estar na fábrica representava uma cota de água,
mínima, um salário vergonhoso, a garantia da maloca em que se
morava. A insegurança era imensa, quem estava desempregado fazia
tudo para arranjar um posto. Tudo. O que amanhecia de gente morta nos
terrenos, nos subúrbios das cidades, era inacreditável. Criaram-se
patrulhas destinadas a recolher os corpos cada manhã. Percorriam os
arrabaldes e traziam os cadáveres dos assassinados com paus, pedras,
peixeiras, tiros, socos, pontapés. Havia fossos em volta das
fábricas, em torno de qualquer lugar onde houvesse gente
trabalhando. Valas, como na Idade Média, cercando castelos. Os
empregados eram escoltados para suas casas e até patrulhas se viam
atacadas, porque vigia e segurança também eram profissões.
Percorria a caatinga, manhãzinha, e sofria enjoo, ânsia de vômito,
a cabeça latejava. Me lembro de um velho filme, célebre no passado,
que a televisão reprisa, você deve ter visto. Chama-se E o vento
levou , e tem uma hora que a câmera sobe numa estação ferroviária
e mostra o chão coalhado de mortos. Cena fantástica, clássica no
cinema. Jamais se tinha visto tanto morto junto. Coisa de filme, se
dizia. Hoje sei, não é. (Ouço, pensou Souza, com o mesmo horror
com que li a história da primeira cruzada sobre Jerusalém. Cada
palavra de D’Agiles, o historiador, me ficou gravada. De repente,
estava tudo reproduzido, não no ano 1099, mas na entrada do século
XXI, No templo e no pórtico de Salomão cavalga-se com sangue até
o joelho do cavaleiro e até as rédeas do cavalo.) Depois de
algum feriado, a violência era maior, não sei se pela bebida, se
por causa do descuido. Ninguém suportava ficar em casa o tempo
inteiro, sem sair nunca. Viver prisioneiro. Morar entre quatro
paredes, ir para o emprego em furgões blindados, encerrar-se na
fábrica por doze horas, temer a chacina diária. Conviver a cada
instante com a possibilidade de morrer, preparar-se. Fomos nos
habituando, de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia,
aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade de acomodação
da mentalidade, sua adaptação ao horror. Acredito que a gente
possua um componente de perversidade que nos leva a encarar como
normal esse pavor, a desejá-lo às vezes, desde que não nos toque.
Uma porcentagem de perversidade que tem sido alimentada pelo Esquema,
essa coisa tão abstrata, que consegue se manter em meio à anarquia,
ao caos estabelecido como ordem, à anomalia mascarada em progresso.
Não me interrompa, me deixe falar, botar para fora, vomitar o que vi
e engoli e aceitei. Me sentia como os judeus caminhando ordenadamente
para os fornos crematórios de Auschwitz, Dachau. Conhecedores e
impotentes, esperançosos, até a hora do forno, na expectativa de
que o fogo se apagasse, o gás perdesse o efeito mortífero, os
aliados chegassem para salvá-los. Aí é que me pergunto, podemos
lutar pela salvação isolados, individualizados, ou temos de contar
com auxílios exteriores, amparo? Fizeram tudo para massificar, ao
mesmo tempo que isolaram cada pessoa em si, tornando-a ferozmente
individualista, fechada para o outro, sem apoio e sem querer apoiar,
medrosa da própria personalidade. Você me acha louco, sinto no
jeito com que me olha. Pode ser que seja. Prefiro estar. Minha
vontade é que tudo isso seja mentira, delírio. A viagem pelas
estradas, à noite, derreteu meu cérebro, fui deixando os miolos em
fiapos pelo caminho. Tudo que tenho dentro é uma nuvenzinha leve,
sombra do que foi uma cabeça que raciocinava, que me fazia agir.
Acho que procuro desculpas para não carregar um grande peso. Eu
olhava aquele Nordeste devastado, campo de batalha medieval.
Horrorizado a cada novo dia, porque o sol levantava sobre o sangue
seco das pessoas mortas no escuro. Porque eram pessoas que tinham
emprego. E cada morte representava uma vaga, disputada violentamente
nos portões das fábricas, numa guerra surda, não disfarçada,
consentida e incentivada pelas empresas, ignorada pelo Esquema. Na
minha cabeça ressoavam as palavras de Isaías: “Torna insensível
o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhes os
olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os
ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo.
Então eu disse: Até quando Senhor? Ele respondeu: Até que sejam
desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem
moradores e a terra seja de todo assolada e o Senhor afaste dela os
homens e no meio da terra seja grande o desamparo. Estava previsto.
Oh! Povo meu! Os que te guiam te enganam, e destroem o caminho por
onde deves seguir”. Tudo ali, dois mil anos, escrito e repetido,
finalmente realizado. Tire daí o que se refere ao Senhor e a ficção
científica se concretizou. Engraçado é que fugimos de lá, viemos
para cá, e encontramos a mesma coisa. Empregados contra
desempregados, na guerra mais violenta desde a do Paraguai. E sobre
tudo o sol. A impressão é que ele desce milímetro a milímetro.
Não sei se é possível, não sei nada de ciência. Possível ou
não, a gente olhava para cima e a cabeça estourava, os olhos
lacrimejavam. Começou a ficar impossível sair de casa. As pessoas
passaram a usar chapéus, e não adiantava. Veio o tempo de
guarda-chuvas. Alguém descobriu que o sol não atravessava
guarda-chuvas de seda preta. Só os de seda. Outro pano não
resistia. Dois, três dias de uso, o pano se esfarelava. Menos a seda
preta. Ela resistia, protegia, formava uma sombra agradável. Não me
pergunte por quê. Não me pergunte nada. Ninguém me respondeu,
ninguém responde coisa alguma neste país. Havia outra situação
estranha, curiosa. As regiões de quentura. Verdadeiros bolsões em
que era impossível ficar, passar, atravessar. Você ia andando,
mergulhava naquele calor insuportável. Corria, tentando escapar,
porque às vezes o bolsão era pequeno, a gente se livrava logo. No
fundo, era um divertimento. Dramático, mas engraçado, porque
subitamente alguém a sua frente punha-se a pererecar, gritar,
voltava correndo. Voltavam todos, sabia-se que era um bolsão. Mais
tarde, quando fizemos a grande travessia, vimos que os bolsões
existiam por toda a parte. Eram imensos em certas regiões,
estendiam-se por quilômetros. Até que chegou o Tempo Intolerável.
Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns
segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura
retorcia. A luz lambia como raio laser. Com o tempo, o perigo nos
bolsões de soalheira, como o povo chamava, aumentou terrivelmente.
Quem caía dentro não se salvava. O sol atravessava como verruma,
matava. Ao menos era a imagem que a gente tinha, porque a pessoa dava
um berro enorme, apertava a cabeça com as duas mãos, o olho
saltava, a boca se abria em busca de ar. Num segundo o infeliz caía,
duro, sem se contorcer. A gente via, a alguns passos, a pessoa
murchando, secando, desidratada, a pele se desgrudava como folha
seca, mais um pouco e os ossos dissolviam. Não acredita, não é?
Nunca ouviu falar disso. Ninguém falou, a imprensa jamais noticiou.
Os cientistas foram estudar e ficaram perplexos. Apenas conseguiram
determinar que os bolsões aumentavam gradualmente, em porcentagem
semanal. Fizeram mapas, a população recebeu gráficos, mudaram o
trânsito da ruas, as pessoas se deslocaram, alteraram estradas. As
crianças brincavam empurrando cachorros e gatos para dentro dos
bolsões. Até que os animais se transformaram em comida e não se
deixava mais desperdiçá-los. Os Civiltares utilizavam os bolsões
como castigo. Jogavam presos, desafetos, inimigos, subversivos na
soalheira e esperavam. Desaparecido o corpo, sem testemunhas, não há
crime, diz a lei. Para conseguir confissões ameaçavam as pessoas no
limite dos bolsões: Fala, ou te jogo aí. Falavam. Claro, os
bolsões à noite desapareciam. Deve ser aquele fenômeno comum ao
deserto. Quente de dia, frio de noite. As famílias andavam pelas
ruas, cercanias da cidade, em busca das cinzas de parentes que
imaginavam consumidos. Não havia como reconhecer quem. Guiavam-se
por conhecimentos relativos, baseando-se em dados frágeis: a mãe
que tinha mandado o filho à venda, recomendando cuidado com o bolsão
da praça. O pai que tinha ido ver um leilão de carne-seca nos
arrabaldes. A filha que tinha ido à loja. A tia que tentava visitar
uma avó. Namorada querendo se encontrar com namorado. Procura
inútil, todo mundo sabia. Ninguém seguro de que estava levando para
casa as cinzas certas. Podia ser um bezerro morto, se bem que bezerro
fosse coisa rara, preciosa. Na verdade, ninguém suportava ficar
dentro de casa. Saíam à noite e se encontravam. Os amigos ajudavam
na procura. Ninguém saía só, formavam-se grandes grupos, com medo
de ataques dos Caçadores Implacáveis de Empregados. Passeios
temerosos, as pessoas sobressaltadas. Se alguém avistava um grupo,
desviava-se logo. E o que se via, se pudesse ser visto do alto, era
quase um balé, gente indo, vindo, desviando-se, voltando,
encontrando outro grupo, se afastando, rodeando, andando de costas,
girando. Maluquice, seu! Alguém suporta uma tensão dessas? Até que
ninguém mais saiu. De dia ou de noite. Nem aqueles que tinham
guarda-chuvas de seda preta. Não confiavam na invulnerabilidade.
Também não adiantava sair. Estava tudo fechado. O padeiro não
fazia pão, não existia farinha, nem mesmo a factícia. Os bares
esgotaram estoques. A farmácia não tinha nem comprimido. Os
fornecedores não chegavam, supunha-se que haviam sido apanhados
pelos bolsões em algum ponto da estrada. Os açudes esvaziaram. Quem
trabalhava podia se abastecer na subsistência das fábricas, no
entanto mesmo estas, apesar de muito estoque, começaram a esvaziar.
As pessoas se divertiam um pouco jogando pelas janelas os restos de
comida, se é que sobrava, o lixo das casas, os papéis, bobaginhas.
Às vezes, o lixo se incendiava em pleno ar antes de cair. E então
não houve mais possibilidade de viver. O povo resolveu fugir. A vida
intolerável. Sabe o que a gente fazia quando estava apertado,
barriga solta? Esperava a noite, ia lá fora. No dia seguinte, o sol
incinerava. As noites eram escuras, a energia tinha-se esgotado.
Verdade, chegaram ao Nordeste alguns geradores de energia solar. Sabe
com quem ficaram, não sabe? Com os últimos coronéis, com as
famílias que mandavam, com aqueles ligados às Multinter. Puxa, você
deve estar pensando, não havia mais nada de bom? Tinha, a vontade
daquele povo de viver, não se entregar. Por isso começou a sair.
Uma decisão automática, inconsciente, maciça. Os grupos começaram
a partir à noite, protegidos pelos Caça-Empregados. Para eles,
quanto mais gente se fosse, melhor. Instigavam, açulavam.
– O
quê? Açulavam?
– É,
açulavam.
– Faz,
no mínimo, sessenta anos que ninguém usa essa palavra, achei
engraçado.
– Ah,
vê se me leva a sério.
– Levo
até demais. Mas que estranhei, estranhei. E daí?
– Os
Caça-Empregados praticamente começaram a obrigar as pessoas a
migrar. As pessoas esperavam a noite entrar e o calor diminuir. Só
alta madrugada refrescava mesmo e aí tudo gelava. Era um período
relativamente curto, de três, quatro horas. Cada um levava sua mala,
pacote, saco, gaiola. Havia caixotes que precisavam de dois, três
para sustentar. Puxavam carrinhos com roupas, quadros, estatuetas,
bugigangas. Incrível como as pessoas não se desprendem das coisas,
se apegam a objetos, dependem deles, sentem-se inseguras, apavoradas.
A primeira leva foi trágica. Quando a manhã chegou, estava em plena
estrada, a alguns quilômetros da vila. Veio o sol e todos estavam
dentro de um bolsão. Perceberam que iam morrer. Olharam em volta,
procurando abrigo. A estrada cortava a caatinga, a terra gretada. O
asfalto derretido, em bolotas, se esparramava para os lados do que
tinha sido a pista. Alguns voltaram correndo. Um ou dois chegaram e
mereciam medalhas de ouro olímpicas pela velocidade. Contaram. Os
retirantes viam aqui e ali uma casa, um abrigo abandonado. Se
amontoavam, se acotovelavam, pulavam uns sobre os outros, disputando
a réstia de sombra. Chegavam a derrubar a casa de pau a pique, tanta
gente entrava. Outros corriam, corriam na esperança de sair do
bolsão. Outros ainda colocavam sobre a cabeça o que podiam. Roupa,
telha, chapéu, tábua, quadro, guarda-chuva. O solo fervia, o chão
queimava a sola dos pés. E o que se via era a dança mais incrível,
todos pulando, os pés mal tocando o solo e se erguendo como que
impulsionados por molas. Pulavam e gritavam de dor. À medida que o
dia crescia, a dança da morte ao sol aumentava em intensidade.
Parecia um ataque histérico, um transe coletivo, o santo baixado em
todo mundo. Logo, ia diminuindo. O sol comia as roupas, os quadros,
os guarda-chuvas que não eram de seda preta. Lambia os cabelos, a
pele, as carnes, os ossos. Pelas nove da manhã sobravam montes de
cinzas espalhados pela terra, misturados ao asfalto derretido. Quem
tinha sobrevivido nos poucos abrigos esperava a noite para recomeçar
a marcha. Tinham visto as pessoas se consumirem. Sem orientação,
tomavam as estradas que iam para o Sul. Os gráficos dos bolsões não
adiantavam. Os indicadores não se encontravam nos lugares, talvez
fossem realmente móveis. Em compensação, surgiam outros. As
pessoas sabiam que a caminhada seria cheia de voltas, teriam de
contornar as reservas das Multinter, territórios proibidos a
brasileiros, você conhece bem o assunto. A esperança era que no
Centro, no Leste e no Sul existissem cidades que o sol não tivesse
atingido. – Bom, mas os bolsões também atingiam as reservas, não
atingiam? As empresas afinal não são tão poderosas assim que
conseguissem formar uma barreira contra o clima. – Não tenho a
mínima ideia. Nunca entrei. Os que moravam lá e eram brasileiros
foram obrigados a sair e não se sabe o que acontece dentro. O
mistério é esse. – Alguém sabe! – Pois é, me mostre esse
alguém! Continuo? Está bem. Aos poucos, a multidão engrossava com
as correntes vindas de outras cidades. Se encontravam nos
cruzamentos, no meio dos campos. Atravessavam aldeias, a população
se juntava. Os doentes permaneciam, ficavam acenando das janelas, das
portas. Vi muitas famílias levando os velhos para o meio da rua, a
pedido deles mesmos. Queriam esperar o dia nascer. Não podiam
caminhar, não queriam ficar sozinhos, decidiam pelo meio da rua.
Colocavam os velhos em grupos, e eles, tranquilos, se punham a
conversar, as mulheres de terço na mão, esperando o sol. Alguns,
não! Gritavam, esperneavam, tentavam acompanhar o estirão. Muitos
acompanharam até o fim, até chegar a esta cidade. Todo mundo dizia:
“Vamos para a cidade estrela, lá dá para viver, comer, trabalhar”
. – Eu me lembro, meses atrás, quando era permitido, a televisão
noticiou essa marcha. Filmaram os retirantes de helicóptero e era de
impressionar a massa que se deslocava. Parecia visita do papa.
Lembra-se das fotos da década de oitenta quando o papa visitou o
país? Aquela multidão que não acabava mais, aclamando. Meu Deus,
como o povo andava necessitado de líderes naquele tempo. Era um
período de transição, não entendiam que a era dos líderes estava
acabada, não surgiria mais nenhum. Sentiam-se órfãos,
desamparados, sem condutor.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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