Arte: Kaleb de Carvalho
Eu
devia ter uns três anos de idade e não me lembro de nada. A família
já melhorara de vida, passara da fase que a minha mãe lembra como a
fase dos caixotes — móveis improvisados feitos de embalagens de
madeira — e ocupava um apartamento melhorzinho, grande o bastante
para receber um hóspede, pelo menos um hóspede magro: Jorge Amado.
Ele ficou alguns dias na nossa casa, escondido da polícia política.
Minha irmã brincava de cabeleireira com seus cabelos, e ele inventou
que eu não tinha cara de Luis Fernando, tinha cara de João. Até a
última vez em que nos encontramos, me chamou de João. Não foram
muitos os encontros. Ele fez mais algumas visitas a Porto Alegre —
nunca mais como fugitivo —, a Lúcia e eu levamos nosso convite de
casamento para ele e a Zélia no seu apartamento do Rio (minha
intenção, confesso, era impressionar a noiva), eu fui visitá-los
uma vez no apartamento do Marais, em Paris, depois participei das
comemorações dos seus 80 anos, em Salvador, e conheci a casa do Rio
Vermelho onde agora estão as suas cinzas.
Desde
o seu rápido asilo conosco, ele e meu pai, Erico Verissimo, foram
amigos, mas a amizade passou por alguma turbulência no final dos
anos 40 e início dos 50, quando a questão do engajamento político
dividiu os intelectuais do país. Meu pai contava uma cena dolorosa e
cômica que se passara no banheiro de um quarto de hotel no Rio, ele
dentro de uma banheira de água quente tentando aliviar uma cólica
renal e ao mesmo tempo convencer o Jorge, sentado num banquinho ao
lado, que, com toda a sua simpatia pelo socialismo, não podia
aceitar o dogmatismo comunista e o totalitarismo, e o amigo tentando
convencê-lo da justificativa histórica do stalinismo. Mas
continuaram se gostando e se admirando, e acabaram se aproximando
politicamente também, engajados no repúdio a qualquer sistema
desumano. Quando o lamentável Buzaid, então ministro da Justiça,
ameaçou instaurar a censura prévia de livros no Brasil, os dois
assinaram um manifesto conjunto contra a ideia que ajudou a matá-la
no nascedouro. Eles mantiveram uma correspondência esparsa mas
afetuosa até a morte do meu pai. Depois disso, ele e a Zélia e
minha mãe telefonavam-se frequentemente — e as mensagens dele
sempre incluíam “lembranças para o João”.
Gosto
de uma história que contou o pintor Calasans Neto, amigo de Jorge. A
mãe do escritor comentou numa roda que, graças a Deus, seu filho
nunca se envolvera em política. Depois de um instante de espanto
silencioso, alguém disse: “Mas dona Eulália, o Jorge foi deputado
constituinte pelo Partido Comunista!”. E dona Eulália: “Ah, um
partidinho de nada...”.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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