terça-feira, 26 de novembro de 2019

Um rôo de remorso

  

Assim mesmo, naquele estado exaltado em que andei, concebi fundamento para um conselho: na jornada por diante, a gente tinha de deixar duma banda do rio, ir passar a Serra-da-Onça e entestar com a travessia do Jequitaí, por onde podia ter tropa de soldados; mais ajuizado não seria se enviar só um, até lá, espiar o que se desse e colher outras informações?
Titão Passos era homem ponderado em simples, achou boa a minha razão.Todos acharam. Aquela munição era de ida urgente, mas também valia mais que ouro, que sangue, se carecia de todo cuidado. Fui louvado e dito valedor, certo nas ideias. Ao senhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo ― que a assoprada na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e mais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que minha opinião era só pelo desejo encoberto de que a gente pudesse ficar mais tempo ali, naquele lugar que me concedia tantos regalos. Assim um rôo de remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão séria em cima, e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres. Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer surtiu efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o Jenolim saiu em rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com a mesma tenção, rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o Pontal da Barra, com todos os ouvidos bem abertos. E nós ficamos esperando a volta deles, cinco dias lá, com grande regozijo e repouso, na casa do preto Pedro Segundo de Rezende, que era posteiro em terras da Fazenda São Joãozinho, de um coronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e tirando mel da abelha-de-poucas-flores, que arma sua cera cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousados nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me perguntou! ― Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos? ― Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigo seu! ― eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricurí retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom. Titão Passos regulou um espanto! uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem disse, risonho bobeento:
Bom? Um messias!... O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era sempre tranquilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal. Talvez também seja. Anta entra nágua, se rupêia. Mas, não. Era não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava criticando, era me a mim contando logro ― jigajogas.
Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo... ― o Reinaldo veio dizendo. ― Vai ver que ele é o homem que existe mais valente! Me olhou, com aqueles olhos quando doces. E perfez: ― Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?! Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser. Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao com padre meu Quelemém. ― Do que o valor dessas palavras tem dentro ― ele me respondeu ― não pode haver verdade maior... Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar meu pêjo de tribulação.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Nenhum comentário:

Postar um comentário