Assim
mesmo, naquele estado exaltado em que andei, concebi fundamento para
um conselho: na jornada por diante, a gente tinha de deixar duma
banda do rio, ir passar a Serra-da-Onça e entestar com a travessia
do Jequitaí, por onde podia ter tropa de soldados; mais ajuizado não
seria se enviar só um, até lá, espiar o que se desse e colher
outras informações?
Titão
Passos era homem ponderado em simples, achou boa a minha razão.Todos
acharam. Aquela munição era de ida urgente, mas também valia mais
que ouro, que sangue, se carecia de todo cuidado. Fui louvado e dito
valedor, certo nas ideias. Ao senhor confesso, desmedi satisfação,
no ouvir aquilo ― que a assoprada na vaidade é a alegria que dá
chama mais depressa e mais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que
minha opinião era só pelo desejo encoberto de que a gente pudesse
ficar mais tempo ali, naquele lugar que me concedia tantos regalos.
Assim um rôo de remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão
séria em cima, e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres.
Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer surtiu
efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o Jenolim saiu em
rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com a mesma tenção,
rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o Pontal da Barra, com
todos os ouvidos bem abertos. E nós ficamos esperando a volta deles,
cinco dias lá, com grande regozijo e repouso, na casa do preto Pedro
Segundo de Rezende, que era posteiro em terras da Fazenda São
Joãozinho, de um coronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo
retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de
minha vida. Em horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas
palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e
tirando mel da abelha-de-poucas-flores, que arma sua cera
cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousados nas
crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o
derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão
alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me perguntou! ―
Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos? ― Reinaldo,
pois eu morro e vivo sendo amigo seu! ― eu respondi. Os afetos.
Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da
minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que
tudo era falante, ai, sei. De manhã, o rio alto branco, de neblim; e
o ouricurí retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que
podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos
outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi deles. Bons
homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns
assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de
paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e
fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão Passos, digo,
apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração
nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte
natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era
homem bom. Titão Passos regulou um espanto! uma pergunta dessa
decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que
Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro,
e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem
disse, risonho bobeento:
― Bom?
Um messias!... O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de
frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao que,
em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou.
Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com
os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui
conhecendo também que ele não era sempre tranquilo igual, feito
antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava
suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras.
Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas
eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem,
sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser
parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso,
tão governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma
vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal. Talvez também
seja. Anta entra nágua, se rupêia. Mas, não. Era não. Era, era
que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um
bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites.
O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu
estava criticando, era me a mim contando logro ― jigajogas.
― Você
vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo... ― o Reinaldo veio
dizendo. ― Vai ver que ele é o homem que existe mais valente! Me
olhou, com aqueles olhos quando doces. E perfez: ― Não sabe que
quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode
deixar de ser bom?! Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para
mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida.
Não podia ser. Mais eu pensando nisso, uma hora, outra hora.
Perguntei ao com padre meu Quelemém. ― Do que o valor dessas
palavras tem dentro ― ele me respondeu ― não pode haver verdade
maior... Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o
senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar meu
pêjo de tribulação.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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