Houve
ultimamente neste país um caso lastimoso, mais ou menos abafado,
pois é conveniente ao poder público, aos homens que nos dirigem
discricionariamente, guardar silêncio às vezes.
O
caso foi este: prendeu-se um livro. Teria sido melhor, com certeza,
meter na cadeia o autor, como se fazia há quinze anos, com vantagem
para o governo. Agora, infelizmente, isto não foi possível: o autor
estava longe, para lá da cortina de ferro. Se o doutor Fulano
quisesse agarrá-lo, acharia dificuldades.
Sabem
a quem me refiro: ao escritor Jorge Amado, homem perigoso,
perigosíssimo, na opinião das pessoas castradas que governam, com
antolhos, o hemisfério ocidental e cristão.
Que
se passa além da cortina de ferro? Desejamos saber isso,
esforçamo-nos por entender os telegramas forjados pelos nossos
patrões.
Recebemos
um livro. Muito bem. Vamos ver o que existe para lá da cortina de
ferro. Mas a polícia não consente que leiamos esse livro. Por quê?
A polícia não quer que saibamos o que acontece no mundo.
Há
nessas páginas, possivelmente, qualquer coisa contra a ordem
ocidental e cristã. Não podemos ver esses horrores, porque nos
arrancam das mãos o volume. Antes de examinar o livro, a ordem já
sabe que ele não presta. Não se condena o livro, mas o autor, que
vive bem, suponho, melhor que nós, fora do cristianismo e do dólar.
Este
caso, minhas senhoras e meus senhores, é triste e é burlesco. Fazia
tempo que não víamos isso. Entra um funcionário carrancudo na
livraria e retira algumas dezenas de volumes da prateleira. Está
salva a pátria, pelo menos durante uma semana.
Mas
a inteligência que determinou a brutalidade ignora isto: o livro se
valoriza. Passaria talvez despercebido, vendia-se por trinta,
quarenta, cinquenta mil-réis. Depois da apreensão, é vendido
clandestinamente por um conto de réis, ou mais, nem sei quanto,
dinheiro como o diabo. Muita gente que o veria sem interesse deseja
comprá-lo, porque está proibido. O mercado negro, que arranjam por
aí. Não temos culpa disso.
Outra
coisa: as nossas autoridades cautelosas desconhecem um fato
corriqueiro: a literatura de Jorge Amado é publicada em vinte
línguas, mais de vinte línguas. Será que a nossa polícia tem a
pretensão de retirar esse veneno das vitrines em Sofia, em
Bucareste, em Praga e em Varsóvia? Os dedos dela são curtos, não
chegam lá.
Minhas
senhoras e meus senhores: o escritor Miécio Tati, que nos honra com
seu trabalho na Associação Brasileira de Escritores, vai dar-nos o
prazer de ouvir um estudo sobre os romances do nosso companheiro
Jorge Amado.
Graciliano Ramos,
in Garranchos
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