Ao
apagar as luzes, a mãe deixava acesa a do corredor. Deitava-se e não
dormia, à espera. O destino da mulher é esperar pelo marido e,
depois do marido, pelos filhos. Chegavam um a um, estendiam-se nas
camas. O último era Osvaldo, o mais parecido com o pai, gordo, quase
calvo, distraído. Roupa amarrotada de quem dormia vestido, a gravata
escorregando do colarinho.
— Meu
filho — queixava-se Dona Maria. — Quem te vê diz que não tem
mãe!
Osvaldo
sorria, sem responder. Não tinha dois dentes na frente e sorria com
a mão na boca.
— Esses
dentes, meu filho. Por que não uma gravata nova?
Sempre
a mesma gravata de bolinhas.
— É
preciso falar com o Osvaldo — apelava Dona Maria ao marido.
— Já
lhe digo duas verdades!
O
filho intimidava-o, não era como os outros. Nunca lhe respondera
mal; pudera, tão pouco se falavam. Dias depois:
— Rapaz
sem ambição. Entenda-se com ele. Podia ser alguém na vida!
Sentava-se
à mesa diante do pai. Os outros conversavam; ele comia, de cabeça
baixa.
Chegou
da rua com a roupa suja e rasgada. Às perguntas aflitas de Dona
Maria, não era nada, todos sabiam de sua miopia. A mãe descobriu
que atropelado por bicicleta — meu Deus, não tinha osso quebrado?
Sorriso de banguela foi a resposta.
Domingo
os netos enchiam de gritos a casa de Dona Maria. Calmo, só Osvaldo.
Deixava
os sobrinhos instalarem-se no joelho, não os beijava. Teria doença
de homem? Se a mãe morresse, que seria dele? Comia o que lhe
serviam, alguém soube do seu pedaço predileto de galinha? Sua vida
um segredo para a família.
O
velho o seguiu ao botequim. O tempo que lá esteve, observando o
filho, este não o olhou e, na opinião do pai, nem o viu. O garçom
trazia a garrafa, enchia o cálice de Osvaldo, sem qualquer palavra
entre os dois. Mão no bolso, espiando o cálice, certa mancha na
parede, simplesmente a parede. Não deu pela presença do outro.
Sempre só, na mesa do fundo, nem parecia triste.
Dona
Maria esperava ouvir o filho mexer no trinco. Único ruído na casa,
além do ronco do marido, era dos passarinhos a beliscar as sementes.
Na sua volta, Osvaldo dava-lhes cânhamo e alpiste, mudava a água
das tigelinhas.
Quantas
noites, tão logo abre a porta, apaga o rapaz a lâmpada do corredor?
A mãe a deixava acesa a fim de que encontrasse o quarto. Por que a
extinguia, tateando pelo corredor escuro e derrubando os chapéus do
cabide? Apagaria a lâmpada para não se ver, quem sabe, no espelho
da sala. Mas o filho, na opinião de Dona Maria, sempre foi moço
bonito.
Encontrava
a porta, atirava-se na cama vestido c calçado, a fumar um cigarro
depois de outro. Dormia, esquecido o cigarro na mão... Havia posto
fogo ao lençol e ao colchão. Com todos os buracos de brasa no
pijama, ó Deus do céu, o seu peito como não estaria? Ocultava no
bolso a mão negra chamuscada. A mãe se benzia — não fosse
incendiar a casa. Osvaldo fumava sem abrir a janela, dormia entre a
fumaça.
De
manhã tossia, às vezes cuspia sangue. Levava-lhe Dona Maria o café
na cama, que engolia sapecando a língua, para acender com dedo
trêmulo o primeiro cigarro.
— Pobre
do meu filho!
Um
sorriso era a resposta. A velha preferia não indagar por quê
apagava a luz do corredor.
Agora
estava acesa. Osvaldo não havia chegado. A mãe pensava, toda noite,
no noivado. Trouxera a moça para Dona Maria conhecer, não sabia que
o filho tivesse ao menos namorada. Moça feia, quem sabe pálida, por
certo magra. Osvaldo era um romântico, assim a mãe gostou de
Glorinha.
Dia
seguinte uma carroça entregaria o armário, a mesa, quatro cadeiras.
Osvaldo comprava a mobília, a mãe apressou-se em marcar-lhe algumas
camisas e costurar seis cuecas novas.
Quatro
anos depois, Glorinha e a mãe dela bateram palmas no corredor. A
moça era de casa, entrava sem cerimônia. Aquela vez bateu palmas, a
mãe Gracinda toda de preto.
— Entre,
minha filha. Não veio almoçar domingo? Sente-se, por favor, Dona
Gracinda.
A
outra respondeu que ia bem, obrigada. O assunto que a trazia à casa
de Dona Maria era a felicidade de Glorinha.
— Que
aconteceu, Dona Gracinda? A senhora me deixa aflita!
Segundo
a outra, não havia precisão de palavra. Osvaldo não se decidia a
marcar a data.
Glorinha
não queria morrer solteira. Já tinha perdido os quatro melhores
anos de sua vida.
— Mamãe!
— interrompeu a moça. — Por favor, mãe!
Sempre
de chapéu, a dona ergueu dos olhos o véu negro.
— Osvaldo
não fala comigo, Dona Maria. Já não gosta de mim!
— Seu
filho, Dona Maria, sabe o que ele é?
Glorinha
suplicou à mãe que, pelo amor de Deus, a deixasse explicar. No
princípio não estranhou o silêncio de Osvaldo. Ela contou-lhe a
vida inteira desde a infância, o que fizera dia por dia. Osvaldo
podia ser tímido, ela oferecia licorzinho, que aceitava sem uma
palavra. A moça deixava-o por vezes na sala, limpando as unhas com
um palito, e ia conversar com a mãe na cozinha. Não discutia com
Glorinha, nem parecia notar que estivera fora — capaz de ficar
noivando sozinho. Para Dona Gracinda, que lhe trazia o café,
perguntava: “Boa noite, como vai a senhora?” Depois acendia o
cigarro, tinham de falar uma com a outra.
— Minha
filha, o que me conta!
Dois
primeiros anos, Osvaldo tirava o óculo na sala, mais bonito.
Glorinha sabia que gostava dela. Terceiro ano já não tirou...
— Mais
respeito, Glorinha! — atalhou Dona Gracinda.
Nos
olhos vermelhos da moça uma lágrima parada.
— Por
favor, mãe!
Certo,
Osvaldo jamais combinou o dia. — Minha filha, o que me conta! E
ele, Glorinha? Que é que ele diz?
— Nada,
Dona Maria. Nunca falta ao encontro.
Nessa
hora Osvaldo saiu do quarto. Almoçava antes que os pais, entrando na
repartição ao meio-dia.
— Meu
filho, vem cá. Uma coisa muito triste.
Sorria,
a mão na boca. Sentou-se ao lado de Glorinha. A mãe pôs-se a
duvidar das outras. O moço ouviu com espanto a mulher que falava —
cada uma falou por sua vez —, ela se perturbava e desviava os
olhos.
— Meu
filho, não quer casar com a Glorinha? — indagou por fim Dona
Maria.
Que
sim, queria. Era o noivo de Glorinha. Claro, ele queria.
— Por
que não marca o dia? — interveio Dona Gracinda. — Olhe que são
quatro anos!
— A
mobília da copa já comprei. A senhora não viu a mobília?
Dona
Gracinda desceu o véu sobre o rosto severo. Deu o braço à filha.
Osvaldo quis falar, o relógio bateu, ele pediu licença. Hora do
emprego, almoçar depressa. A moça devolveu a aliança, que trazia
fora do dedo Foi falar, rompeu no choro. Dona Gracinda abriu a bolsa
da filha, retirou embrulhinho em papel de seda azul, colocou-o na
mesa:
— Os
seus presentes!
Ele
as deixou na companhia da mãe, almoçou com o apetite de sempre e,
quando voltou à sala, as duas tinham-se ido.
Glorinha
podia ser boa moça, pensava a mãe, atenta à chave na porta. Quem
sabe não fosse a noiva para Osvaldo. A família não notou diferença
na sua conduta. Se chegava cada noite mais tarde... O pai levara a
mesma vida.
Na
verdade um fato estranho: os passarinhos. Osvaldo apanhara-os com o
alçapão havia muitos anos: um pintassilgo, uma coleira, um
canário-da-terra; tão velhos, as unhas descreviam uma volta no
poleiro. Madrugada enchia de alpiste o cocho, mudava a água da
tigelinha. Andando por tão raros caminhos trazia uma folhinha de
alface... Eles cantavam, iludidos pela luz.
Trincando
as cascas, eram ouvidos por Dona Maria no quarto. Sentou-se na cama,
com o sentimento de uma desgraça. Não sabia o que era. De repente
lembrou-se: os passarinhos. Nem um som das gaiolas. Mortos, a
cabecinha no cocho vazio — ó Deus, como pudera o filho esquecer?
Foi quando começou a apagar a luz do corredor.
A
mãe escutava o relógio bater duas, três, quatro horas e, por
último, os passos de Osvaldo na rua. Os mesmos passos do pai. Abria
a porta, apagava a: luz. Tateando no escuro, derrubava um chapéu do
cabide. Quem dera a Dona Maria ele dormisse: o estalido de um
fósforo, de outro, mais outro... No dedo amarelo a aliança de noivo
fiel.
O
marido estava em casa, o filho pródigo acabava de se recolher. Dona
Maria podia dormir. Ah.. se soubesse... Extinguindo a luz, Osvaldo
não entrava só. Ao voltar do último botequim — fazia que de
noites? — encontrou-se com Glorinha na porta; vestida de noiva, o
véu de renda preta na cabeça.
— Entro
com você, meu amor.
Antes
de ele encontrar a chave, insinuou-se através da porta fechada.
No
corredor iluminado, onde a moça? Então apagou a luz: ela surgiu no
quarto.
— Não
me deixe, Glorinha!
Deitava-se
vestido e de sapato. Sentada ao pé da cama, Glorinha recordava os
fatos banais do dia. O noivo à escuta, cigarro na boca, olho
perdido.
Dona
Maria não ouve no outro quarto a voz da moça, e dorme, porque às
mães não foi dado entender os filhos, apenas amá-los.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares