domingo, 28 de julho de 2019

O noivo

Ao apagar as luzes, a mãe deixava acesa a do corredor. Deitava-se e não dormia, à espera. O destino da mulher é esperar pelo marido e, depois do marido, pelos filhos. Chegavam um a um, estendiam-se nas camas. O último era Osvaldo, o mais parecido com o pai, gordo, quase calvo, distraído. Roupa amarrotada de quem dormia vestido, a gravata escorregando do colarinho.
Meu filho — queixava-se Dona Maria. — Quem te vê diz que não tem mãe!
Osvaldo sorria, sem responder. Não tinha dois dentes na frente e sorria com a mão na boca.
Esses dentes, meu filho. Por que não uma gravata nova?
Sempre a mesma gravata de bolinhas.
É preciso falar com o Osvaldo — apelava Dona Maria ao marido.
Já lhe digo duas verdades!
O filho intimidava-o, não era como os outros. Nunca lhe respondera mal; pudera, tão pouco se falavam. Dias depois:
Rapaz sem ambição. Entenda-se com ele. Podia ser alguém na vida!
Sentava-se à mesa diante do pai. Os outros conversavam; ele comia, de cabeça baixa.
Chegou da rua com a roupa suja e rasgada. Às perguntas aflitas de Dona Maria, não era nada, todos sabiam de sua miopia. A mãe descobriu que atropelado por bicicleta — meu Deus, não tinha osso quebrado? Sorriso de banguela foi a resposta.
Domingo os netos enchiam de gritos a casa de Dona Maria. Calmo, só Osvaldo.
Deixava os sobrinhos instalarem-se no joelho, não os beijava. Teria doença de homem? Se a mãe morresse, que seria dele? Comia o que lhe serviam, alguém soube do seu pedaço predileto de galinha? Sua vida um segredo para a família.
O velho o seguiu ao botequim. O tempo que lá esteve, observando o filho, este não o olhou e, na opinião do pai, nem o viu. O garçom trazia a garrafa, enchia o cálice de Osvaldo, sem qualquer palavra entre os dois. Mão no bolso, espiando o cálice, certa mancha na parede, simplesmente a parede. Não deu pela presença do outro. Sempre só, na mesa do fundo, nem parecia triste.
Dona Maria esperava ouvir o filho mexer no trinco. Único ruído na casa, além do ronco do marido, era dos passarinhos a beliscar as sementes. Na sua volta, Osvaldo dava-lhes cânhamo e alpiste, mudava a água das tigelinhas.
Quantas noites, tão logo abre a porta, apaga o rapaz a lâmpada do corredor? A mãe a deixava acesa a fim de que encontrasse o quarto. Por que a extinguia, tateando pelo corredor escuro e derrubando os chapéus do cabide? Apagaria a lâmpada para não se ver, quem sabe, no espelho da sala. Mas o filho, na opinião de Dona Maria, sempre foi moço bonito.
Encontrava a porta, atirava-se na cama vestido c calçado, a fumar um cigarro depois de outro. Dormia, esquecido o cigarro na mão... Havia posto fogo ao lençol e ao colchão. Com todos os buracos de brasa no pijama, ó Deus do céu, o seu peito como não estaria? Ocultava no bolso a mão negra chamuscada. A mãe se benzia — não fosse incendiar a casa. Osvaldo fumava sem abrir a janela, dormia entre a fumaça.
De manhã tossia, às vezes cuspia sangue. Levava-lhe Dona Maria o café na cama, que engolia sapecando a língua, para acender com dedo trêmulo o primeiro cigarro.
Pobre do meu filho!
Um sorriso era a resposta. A velha preferia não indagar por quê apagava a luz do corredor.
Agora estava acesa. Osvaldo não havia chegado. A mãe pensava, toda noite, no noivado. Trouxera a moça para Dona Maria conhecer, não sabia que o filho tivesse ao menos namorada. Moça feia, quem sabe pálida, por certo magra. Osvaldo era um romântico, assim a mãe gostou de Glorinha.
Dia seguinte uma carroça entregaria o armário, a mesa, quatro cadeiras. Osvaldo comprava a mobília, a mãe apressou-se em marcar-lhe algumas camisas e costurar seis cuecas novas.
Quatro anos depois, Glorinha e a mãe dela bateram palmas no corredor. A moça era de casa, entrava sem cerimônia. Aquela vez bateu palmas, a mãe Gracinda toda de preto.
Entre, minha filha. Não veio almoçar domingo? Sente-se, por favor, Dona Gracinda.
A outra respondeu que ia bem, obrigada. O assunto que a trazia à casa de Dona Maria era a felicidade de Glorinha.
Que aconteceu, Dona Gracinda? A senhora me deixa aflita!
Segundo a outra, não havia precisão de palavra. Osvaldo não se decidia a marcar a data.
Glorinha não queria morrer solteira. Já tinha perdido os quatro melhores anos de sua vida.
Mamãe! — interrompeu a moça. — Por favor, mãe!
Sempre de chapéu, a dona ergueu dos olhos o véu negro.
Osvaldo não fala comigo, Dona Maria. Já não gosta de mim!
Seu filho, Dona Maria, sabe o que ele é?
Glorinha suplicou à mãe que, pelo amor de Deus, a deixasse explicar. No princípio não estranhou o silêncio de Osvaldo. Ela contou-lhe a vida inteira desde a infância, o que fizera dia por dia. Osvaldo podia ser tímido, ela oferecia licorzinho, que aceitava sem uma palavra. A moça deixava-o por vezes na sala, limpando as unhas com um palito, e ia conversar com a mãe na cozinha. Não discutia com Glorinha, nem parecia notar que estivera fora — capaz de ficar noivando sozinho. Para Dona Gracinda, que lhe trazia o café, perguntava: “Boa noite, como vai a senhora?” Depois acendia o cigarro, tinham de falar uma com a outra.
Minha filha, o que me conta!
Dois primeiros anos, Osvaldo tirava o óculo na sala, mais bonito. Glorinha sabia que gostava dela. Terceiro ano já não tirou...
Mais respeito, Glorinha! — atalhou Dona Gracinda.
Nos olhos vermelhos da moça uma lágrima parada.
Por favor, mãe!
Certo, Osvaldo jamais combinou o dia. — Minha filha, o que me conta! E ele, Glorinha? Que é que ele diz?
Nada, Dona Maria. Nunca falta ao encontro.
Nessa hora Osvaldo saiu do quarto. Almoçava antes que os pais, entrando na repartição ao meio-dia.
Meu filho, vem cá. Uma coisa muito triste.
Sorria, a mão na boca. Sentou-se ao lado de Glorinha. A mãe pôs-se a duvidar das outras. O moço ouviu com espanto a mulher que falava — cada uma falou por sua vez —, ela se perturbava e desviava os olhos.
Meu filho, não quer casar com a Glorinha? — indagou por fim Dona Maria.
Que sim, queria. Era o noivo de Glorinha. Claro, ele queria.
Por que não marca o dia? — interveio Dona Gracinda. — Olhe que são quatro anos!
A mobília da copa já comprei. A senhora não viu a mobília?
Dona Gracinda desceu o véu sobre o rosto severo. Deu o braço à filha. Osvaldo quis falar, o relógio bateu, ele pediu licença. Hora do emprego, almoçar depressa. A moça devolveu a aliança, que trazia fora do dedo Foi falar, rompeu no choro. Dona Gracinda abriu a bolsa da filha, retirou embrulhinho em papel de seda azul, colocou-o na mesa:
Os seus presentes!
Ele as deixou na companhia da mãe, almoçou com o apetite de sempre e, quando voltou à sala, as duas tinham-se ido.
Glorinha podia ser boa moça, pensava a mãe, atenta à chave na porta. Quem sabe não fosse a noiva para Osvaldo. A família não notou diferença na sua conduta. Se chegava cada noite mais tarde... O pai levara a mesma vida.
Na verdade um fato estranho: os passarinhos. Osvaldo apanhara-os com o alçapão havia muitos anos: um pintassilgo, uma coleira, um canário-da-terra; tão velhos, as unhas descreviam uma volta no poleiro. Madrugada enchia de alpiste o cocho, mudava a água da tigelinha. Andando por tão raros caminhos trazia uma folhinha de alface... Eles cantavam, iludidos pela luz.
Trincando as cascas, eram ouvidos por Dona Maria no quarto. Sentou-se na cama, com o sentimento de uma desgraça. Não sabia o que era. De repente lembrou-se: os passarinhos. Nem um som das gaiolas. Mortos, a cabecinha no cocho vazio — ó Deus, como pudera o filho esquecer? Foi quando começou a apagar a luz do corredor.
A mãe escutava o relógio bater duas, três, quatro horas e, por último, os passos de Osvaldo na rua. Os mesmos passos do pai. Abria a porta, apagava a: luz. Tateando no escuro, derrubava um chapéu do cabide. Quem dera a Dona Maria ele dormisse: o estalido de um fósforo, de outro, mais outro... No dedo amarelo a aliança de noivo fiel.
O marido estava em casa, o filho pródigo acabava de se recolher. Dona Maria podia dormir. Ah.. se soubesse... Extinguindo a luz, Osvaldo não entrava só. Ao voltar do último botequim — fazia que de noites? — encontrou-se com Glorinha na porta; vestida de noiva, o véu de renda preta na cabeça.
Entro com você, meu amor.
Antes de ele encontrar a chave, insinuou-se através da porta fechada.
No corredor iluminado, onde a moça? Então apagou a luz: ela surgiu no quarto.
Não me deixe, Glorinha!
Deitava-se vestido e de sapato. Sentada ao pé da cama, Glorinha recordava os fatos banais do dia. O noivo à escuta, cigarro na boca, olho perdido.
Dona Maria não ouve no outro quarto a voz da moça, e dorme, porque às mães não foi dado entender os filhos, apenas amá-los.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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