Num
sábado, ela encontrou o bilhete debaixo da porta: “Por que não se
mudam?”. No domingo, havia dois. Escritos em folhas amareladas
(onde teriam conseguido?): “Fiquem longe. Levem esse furo na mão
para outro lugar”. “Vamos chamar os Civiltares se vocês não se
forem.” “Desapareçam.”
Adelaide
me trouxe os bilhetes na cama. Quinze para as sete, eu não tinha me
levantado. Ela estranhou, desde que nos conhecemos nunca fiquei
deitado depois dessa hora. As cobertas puxadas sobre minha cabeça. A
madrugada foi fria. Senti que ela ficou parada, indecisa. Depois me
tocou.
– Os
vizinhos sabem do teu furo. Não dá mais para disfarçar.
Abaixei
as cobertas enquanto Adelaide lia. Qualquer coisa a coloca trêmula.
Bastou sair do seu normal. Eu me lembro quando chegavam cartas de
cobrança por crediários atrasados. Ela imaginava que ia perder a
casa, viriam buscar os móveis. Respeitava os avisos como coisas
sagradas.
– Besteiras
de vizinhos, fica tranquila.
– Não
fico, não. Faz dois dias que ninguém fala comigo.
– O
que é normal. Todo mundo evita todo mundo. Nas desgraças, de vez em
quando, eles se auxiliam.
– Vizinhança
é coisa boa, Souza.
– Você
sempre teve mania de vizinhos. Por todos os lugares onde passamos, a
primeira coisa que fazia era bater na porta ao lado. Avisava: “Somos
os novos vizinhos, se precisarem de alguma coisa”.
– Vivemos
sempre bem com eles. Não sei viver sozinha. É tão bom ir a uma
casa no meio da tarde, tomar café, fritar bolinhos.
– Há
quantos anos você não faz isso?
– Sabe
o que encontrei no corredor?
– O
despertador.
– Como
sabe?
– Eu
é que joguei.
Adelaide
sacudiu o relógio, para certificar-se de que funcionava, não tinha
quebrado. Pela sua expressão, deu para saber nada. Colocou o
despertador sobre o criado-mudo, em cima dos bilhetes. E me olhou,
como que dizendo: aí estão, depois conversamos. Conheço este
olhar. Tem um depois nele.
– A
que horas vamos para a casa da mamãe?
– Não
vou.
– Mas
hoje é domingo, estão esperando.
– Não
vou.
– E
o que eu digo? Ao menos você podia ir, fingir um pouco, para eles
não ficarem preocupados.
– Vai
você.
– Mamãe
vai ficar triste.
Demorei
na cama o tempo suficiente para que ela fizesse o bolo de mandioca
para a mãe. Todos os domingos faz um. Mandioca factícia é um pó
amarelado que vem em sacos plásticos. O gosto parece o mesmo, mas a
memória pode se enganar. Adelaide reclama apenas da consistência.
Borracha pura.
Ela
veio ao quarto dizer que o café estava pronto. Saiu soluçando. Por
um momento tive vontade de correr atrás. Não deixá-la ir sozinha.
No entanto não me mexi. O quarto estava agradável, na penumbra.
Sair ao sol significava suar. Estar o dia todo fora de casa, ao
mormaço, me desanimava.
Quando
voltou, à noite, me encontrou observando o furo na mão. O chão
estava cheio de pontas de cigarro e restos da comida que eu mesmo
esquentei. Ela começou a limpar tudo, em silêncio. Nada me perturba
mais do que a acusação não dita, velada. O mal-estar dissimulado
na atmosfera.
Adelaide
aproveita a noite de domingo para limpezas. É mais fresco. Depois
toma banho, vai para a cama. Deixa o serviço grosso para a
faxineira. Portas, vidros, azulejos, banheiros. Ela anda pelo quarto
e parece ter nojo. Não me olha; estranho que não me olhe; o que
pretende?
Passou
a enceradeira, lustrou com flanela, deixando o assoalho polido. Faz
anos que digo: “Vamos passar verniz sintético, poupa todo esse
trabalho”. Mas ela acha que a cera dá um brilho que o sintético
não consegue. E o cheiro da cera invade a casa, trazendo as manhãs
de sábado.
Manhãs
de sábado, minha infância. Água de sabão correndo pelos
ladrilhos, assoalhos, cobertores estendidos na janela e nos varais.
Colchões ao sol. As vassouras na calçada, a água molhando a pedra
quente, o cheiro úmido que subia da rua inteira, alegre, mergulhada
no mesmo ritual.
Mulheres
penduradas nas janelas a limpar vidros. Espanadores sobre os móveis,
escovão indo e vindo nas áreas, varandas, salas de visita.
Compridos cabos com pano na ponta, exterminando teias de aranha nos
cantos do forro. Lençóis cheirando a sol e cedro e naftalina
retirados das gavetas.
Havia
apenas uma casa fechada, quieta, impenetrável. Marginalizada. No
canto do quarteirão, uma família sabatista. Encravada como espinho
debaixo da unha, no meio de tantas casas católicas. Bem cedo,
trancavam a casa e partiam, talvez para não testemunhar aquela
azáfama sacrílega.
Tão
estranhos para nós quanto o seu Moisés, judeu que vendia ovos.
Quanta curiosidade. Minha mãe não deixava que conversássemos com
eles. Protestantes eram hereges, negaram obedecer ao santo papa.
Judeus tinham matado Jesus. Eu imaginava seu Moisés atirando ovos
podres contra a cruz.
Os
homens da prefeitura, de quinze em quinze dias, passando com suas
foices. Arrancando a grama que crescia entre paralelepípedos.
Durante o dia se ouvia o barulho ritmado do ferro, enquanto das
pedras saltavam faíscas. O cheiro forte da grama dilacerada tomava
todo o quarteirão.
Cada
dia era próprio, tinha o seu jeito, o clima. Segunda, dia de branco,
varais repletos, as mulheres encostadas ao tanque de lavar roupa.
Cantavam. No meio da manhã se podiam ouvir todas as melodias,
estranha mistura de músicas populares que formava um som único,
quase o mesmo.
Na
terça, as moças se preparavam para o cinema. Filmes românticos. Às
quartas, no fim da tarde, as mulheres subiam em direção à igreja.
Quinta, cinema para todo mundo; sexta, o recolhimento. Sábado de
manhã era limpeza, à tarde buscavam-se roupas no tintureiro, à
noite, cinema e baile.
Agora,
não se sabe se é terça ou sábado, a única diferença é o
domingo, porque não se trabalha, mas falam em uma lei para extinguir
a folga dominical. De que adianta pensar nessas coisas? Pareço um
caduco, a sonhar. Pior, a sonhar com a vida fantástica de um planeta
perdido.
Velho.
Como as coisas mudaram. Como pode ser velho alguém de cinquenta
anos? No entanto sou. As pessoas estão morrendo com trinta e cinco,
quarenta anos. Na última década, disse a Rádio Geral, a média de
vida decresceu para quarenta e três anos. E a ciência que nos
prometia oitenta anos?
“Boa
média”, comentou meu sobrinho. “Tem gente demais. Não pense que
o Esquema está interessado em aumentá-la. Ao contrário. Senão o
que seria? Onde colocar tanta gente?” E pensar que nos Abertos
Oitenta tínhamos chegado à média de setenta e quatro anos. “Somos
um país jovem”, orgulhou-se o sobrinho.
– Você
fumou no quarto.
– Um
pouco.
– Pouco?
Olha a cinzaiada, os tocos. O que há com você, Souza? Me diz? Não
se sente bem? Vamos ao Posto?
– Ir
ao Posto, só porque fumei no quarto?
– Você
nunca fez isso na vida. Sabe que detesto cheiro de cigarros no
quarto.
Continuei
fumando enquanto ela reclamava. É preciso saber que um dia as coisas
mudam. Como Adelaide pode ser tão insensível? O mundo se transforma
inteiro lá fora, e ela continua. Bem, eu também continuei, passei
anos contemplando sem agir, reagir. Traumatizado pela minha
compulsória.
Que
fraqueza, reconheço. Mas não sou forte. Sou apenas um homem comum
que tenta viver o seu dia a dia, quer ser feliz, realizar alguma
coisa na vida.
Mas,
de repente, esse realizar não tem sentido. Porque não há para onde
ir. Mas não posso me sentar e ficar esperando a morte.
Esperar
que me levem a um Patrocínio, asilado. Um lugar onde eu não me
comunique com ninguém. Adelaide corre, bate a porta do banheiro,
ouço as suas ânsias. Ela vomita. Depois vem, hesita, vai para a
sala. Como viver com uma mulher medrosa que fica trançando como
barata tonta?
– Souza,
me decidi.
Levei
um susto. Tinha cochilado um pouco. Ela estava diante da cama, a
caixa dos primeiros socorros na mão. E me olhava. Finalmente, um
olhar novo no rosto de Adelaide. Firme, decidida. Olhar de ódio,
determinação. Sentou-se na cama, pegou minha mão. Puxei, ela pegou
outra vez, enérgica. Puxa!
– Ou
coloco um bandeide, uma faixa, ou vou me embora. Já.
– Não
vai colocar. Deixe o furo em paz!
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
Nenhum comentário:
Postar um comentário