sábado, 27 de julho de 2019

Adelaide preparou gostoso bolo de mandioca factícia para levar à mãe. Corajoso, Souza recusa-se a acompanhá-la, deixa que vá sozinha, manda lembranças

Num sábado, ela encontrou o bilhete debaixo da porta: “Por que não se mudam?”. No domingo, havia dois. Escritos em folhas amareladas (onde teriam conseguido?): “Fiquem longe. Levem esse furo na mão para outro lugar”. “Vamos chamar os Civiltares se vocês não se forem.” “Desapareçam.”
Adelaide me trouxe os bilhetes na cama. Quinze para as sete, eu não tinha me levantado. Ela estranhou, desde que nos conhecemos nunca fiquei deitado depois dessa hora. As cobertas puxadas sobre minha cabeça. A madrugada foi fria. Senti que ela ficou parada, indecisa. Depois me tocou.
Os vizinhos sabem do teu furo. Não dá mais para disfarçar.
Abaixei as cobertas enquanto Adelaide lia. Qualquer coisa a coloca trêmula. Bastou sair do seu normal. Eu me lembro quando chegavam cartas de cobrança por crediários atrasados. Ela imaginava que ia perder a casa, viriam buscar os móveis. Respeitava os avisos como coisas sagradas.
Besteiras de vizinhos, fica tranquila.
Não fico, não. Faz dois dias que ninguém fala comigo.
O que é normal. Todo mundo evita todo mundo. Nas desgraças, de vez em quando, eles se auxiliam.
Vizinhança é coisa boa, Souza.
Você sempre teve mania de vizinhos. Por todos os lugares onde passamos, a primeira coisa que fazia era bater na porta ao lado. Avisava: “Somos os novos vizinhos, se precisarem de alguma coisa”.
Vivemos sempre bem com eles. Não sei viver sozinha. É tão bom ir a uma casa no meio da tarde, tomar café, fritar bolinhos.
Há quantos anos você não faz isso?
Sabe o que encontrei no corredor?
O despertador.
Como sabe?
Eu é que joguei.
Adelaide sacudiu o relógio, para certificar-se de que funcionava, não tinha quebrado. Pela sua expressão, deu para saber nada. Colocou o despertador sobre o criado-mudo, em cima dos bilhetes. E me olhou, como que dizendo: aí estão, depois conversamos. Conheço este olhar. Tem um depois nele.
A que horas vamos para a casa da mamãe?
Não vou.
Mas hoje é domingo, estão esperando.
Não vou.
E o que eu digo? Ao menos você podia ir, fingir um pouco, para eles não ficarem preocupados.
Vai você.
Mamãe vai ficar triste.
Demorei na cama o tempo suficiente para que ela fizesse o bolo de mandioca para a mãe. Todos os domingos faz um. Mandioca factícia é um pó amarelado que vem em sacos plásticos. O gosto parece o mesmo, mas a memória pode se enganar. Adelaide reclama apenas da consistência. Borracha pura.
Ela veio ao quarto dizer que o café estava pronto. Saiu soluçando. Por um momento tive vontade de correr atrás. Não deixá-la ir sozinha. No entanto não me mexi. O quarto estava agradável, na penumbra. Sair ao sol significava suar. Estar o dia todo fora de casa, ao mormaço, me desanimava.
Quando voltou, à noite, me encontrou observando o furo na mão. O chão estava cheio de pontas de cigarro e restos da comida que eu mesmo esquentei. Ela começou a limpar tudo, em silêncio. Nada me perturba mais do que a acusação não dita, velada. O mal-estar dissimulado na atmosfera.
Adelaide aproveita a noite de domingo para limpezas. É mais fresco. Depois toma banho, vai para a cama. Deixa o serviço grosso para a faxineira. Portas, vidros, azulejos, banheiros. Ela anda pelo quarto e parece ter nojo. Não me olha; estranho que não me olhe; o que pretende?
Passou a enceradeira, lustrou com flanela, deixando o assoalho polido. Faz anos que digo: “Vamos passar verniz sintético, poupa todo esse trabalho”. Mas ela acha que a cera dá um brilho que o sintético não consegue. E o cheiro da cera invade a casa, trazendo as manhãs de sábado.
Manhãs de sábado, minha infância. Água de sabão correndo pelos ladrilhos, assoalhos, cobertores estendidos na janela e nos varais. Colchões ao sol. As vassouras na calçada, a água molhando a pedra quente, o cheiro úmido que subia da rua inteira, alegre, mergulhada no mesmo ritual.
Mulheres penduradas nas janelas a limpar vidros. Espanadores sobre os móveis, escovão indo e vindo nas áreas, varandas, salas de visita. Compridos cabos com pano na ponta, exterminando teias de aranha nos cantos do forro. Lençóis cheirando a sol e cedro e naftalina retirados das gavetas.
Havia apenas uma casa fechada, quieta, impenetrável. Marginalizada. No canto do quarteirão, uma família sabatista. Encravada como espinho debaixo da unha, no meio de tantas casas católicas. Bem cedo, trancavam a casa e partiam, talvez para não testemunhar aquela azáfama sacrílega.
Tão estranhos para nós quanto o seu Moisés, judeu que vendia ovos. Quanta curiosidade. Minha mãe não deixava que conversássemos com eles. Protestantes eram hereges, negaram obedecer ao santo papa. Judeus tinham matado Jesus. Eu imaginava seu Moisés atirando ovos podres contra a cruz.
Os homens da prefeitura, de quinze em quinze dias, passando com suas foices. Arrancando a grama que crescia entre paralelepípedos. Durante o dia se ouvia o barulho ritmado do ferro, enquanto das pedras saltavam faíscas. O cheiro forte da grama dilacerada tomava todo o quarteirão.
Cada dia era próprio, tinha o seu jeito, o clima. Segunda, dia de branco, varais repletos, as mulheres encostadas ao tanque de lavar roupa. Cantavam. No meio da manhã se podiam ouvir todas as melodias, estranha mistura de músicas populares que formava um som único, quase o mesmo.
Na terça, as moças se preparavam para o cinema. Filmes românticos. Às quartas, no fim da tarde, as mulheres subiam em direção à igreja. Quinta, cinema para todo mundo; sexta, o recolhimento. Sábado de manhã era limpeza, à tarde buscavam-se roupas no tintureiro, à noite, cinema e baile.
Agora, não se sabe se é terça ou sábado, a única diferença é o domingo, porque não se trabalha, mas falam em uma lei para extinguir a folga dominical. De que adianta pensar nessas coisas? Pareço um caduco, a sonhar. Pior, a sonhar com a vida fantástica de um planeta perdido.
Velho. Como as coisas mudaram. Como pode ser velho alguém de cinquenta anos? No entanto sou. As pessoas estão morrendo com trinta e cinco, quarenta anos. Na última década, disse a Rádio Geral, a média de vida decresceu para quarenta e três anos. E a ciência que nos prometia oitenta anos?
Boa média”, comentou meu sobrinho. “Tem gente demais. Não pense que o Esquema está interessado em aumentá-la. Ao contrário. Senão o que seria? Onde colocar tanta gente?” E pensar que nos Abertos Oitenta tínhamos chegado à média de setenta e quatro anos. “Somos um país jovem”, orgulhou-se o sobrinho.
Você fumou no quarto.
Um pouco.
Pouco? Olha a cinzaiada, os tocos. O que há com você, Souza? Me diz? Não se sente bem? Vamos ao Posto?
Ir ao Posto, só porque fumei no quarto?
Você nunca fez isso na vida. Sabe que detesto cheiro de cigarros no quarto.
Continuei fumando enquanto ela reclamava. É preciso saber que um dia as coisas mudam. Como Adelaide pode ser tão insensível? O mundo se transforma inteiro lá fora, e ela continua. Bem, eu também continuei, passei anos contemplando sem agir, reagir. Traumatizado pela minha compulsória.
Que fraqueza, reconheço. Mas não sou forte. Sou apenas um homem comum que tenta viver o seu dia a dia, quer ser feliz, realizar alguma coisa na vida.
Mas, de repente, esse realizar não tem sentido. Porque não há para onde ir. Mas não posso me sentar e ficar esperando a morte.
Esperar que me levem a um Patrocínio, asilado. Um lugar onde eu não me comunique com ninguém. Adelaide corre, bate a porta do banheiro, ouço as suas ânsias. Ela vomita. Depois vem, hesita, vai para a sala. Como viver com uma mulher medrosa que fica trançando como barata tonta?
Souza, me decidi.
Levei um susto. Tinha cochilado um pouco. Ela estava diante da cama, a caixa dos primeiros socorros na mão. E me olhava. Finalmente, um olhar novo no rosto de Adelaide. Firme, decidida. Olhar de ódio, determinação. Sentou-se na cama, pegou minha mão. Puxei, ela pegou outra vez, enérgica. Puxa!
Ou coloco um bandeide, uma faixa, ou vou me embora. Já.
Não vai colocar. Deixe o furo em paz!
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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