Para
um hitchcockiano como eu, era um banquete. Pegamos o último dia da
mostra Hitchcock e a arte no Centro George Pompidou, também
chamado de Mausoléu do Robocop. A exposição incluía desde objetos
famosos dos filmes de Alfred Hitchcock — o isqueiro de Pacto
sinistro, a tesoura de Disque M para matar, a câmera com
lente telescópica que o James Stewart usa em Janela indiscreta
etc. — até exemplos da sua própria arte, ou da arte da narrativa
cinematográfica, da qual ele foi um dos grandes mestres, passando
por pintores e autores (e outros diretores) que o influenciaram e, em
alguns casos (como Salvador Dalí em Quando fala o coração),
foram seus colaboradores. Havia uma sala só sobre a conhecida mania
de Hitchcock de aparecer em seus filmes, com a projeção de uma
sequência inteira de tais cenas, desde a primeira, que deve ser sua
mais longa participação no cinema: Hitchcock é um gordinho
brigando com um garoto que insiste em roubar o seu chapéu. Suas
outras aparições foram mais discretas, e algumas exigiram alguma
engenhosidade. No filme Um barco e nove destinos, que se passa
todo dentro de um bote salva-vidas, por exemplo, o diretor aparece
num jornal lido por um dos sobreviventes: ele é o “antes” e o
“depois” num anúncio de regime para emagrecer. Certos paralelos
sugeridos pela mostra, como o dos filmes de Hitchcock com outras
artes — a literatura gótica de Edgar Allan Poe e o romantismo algo
lúgubre dos pintores pré-rafaelitas ingleses, por exemplo —,
parecem forçados, e há pouco sobre a relação de amor e ódio do
diretor com as louras, mas o banquete não decepcionou.
Divagação
inescapável. No meio de uma sala da exposição dedicada a outra
mania de Hitchcock, a de filmar o desenlace das suas tramas em locais
insólitos como a cabeça da Estátua da Liberdade ou as caras dos
presidentes americanos esculpidas naquela rocha (em Intriga
internacional), pensei em como ele levava a um extremo inglês —
isto é, irônico e um pouco condescendente com a ex-colônia — o
velho truque americano de usar a paisagem e as coisas do cotidiano
como personagens de cinema, até como uma maneira de não ser
europeu, de celebrar o comum e o antiartístico, artisticamente. Os
personagens de Hitchcock vivem seus momentos decisivos na superfície
de sólidos e indiferentes símbolos americanos, um pouco como ele,
um intelectual europeu, fazendo a sua grande arte disfarçada de
entretenimento popular, na cara dos americanos. As torres simétricas
do World Trade Center representavam solidez e indiferença, e as
esculturas trágicas das suas carcaças calcinadas também são
exemplos de símbolos dramaticamente transformados em arte. Mas
Hitchcock concordaria que isto é levar a humanização da paisagem
um pouco longe demais.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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