domingo, 28 de julho de 2019

Hitchcockianas


Para um hitchcockiano como eu, era um banquete. Pegamos o último dia da mostra Hitchcock e a arte no Centro George Pompidou, também chamado de Mausoléu do Robocop. A exposição incluía desde objetos famosos dos filmes de Alfred Hitchcock — o isqueiro de Pacto sinistro, a tesoura de Disque M para matar, a câmera com lente telescópica que o James Stewart usa em Janela indiscreta etc. — até exemplos da sua própria arte, ou da arte da narrativa cinematográfica, da qual ele foi um dos grandes mestres, passando por pintores e autores (e outros diretores) que o influenciaram e, em alguns casos (como Salvador Dalí em Quando fala o coração), foram seus colaboradores. Havia uma sala só sobre a conhecida mania de Hitchcock de aparecer em seus filmes, com a projeção de uma sequência inteira de tais cenas, desde a primeira, que deve ser sua mais longa participação no cinema: Hitchcock é um gordinho brigando com um garoto que insiste em roubar o seu chapéu. Suas outras aparições foram mais discretas, e algumas exigiram alguma engenhosidade. No filme Um barco e nove destinos, que se passa todo dentro de um bote salva-vidas, por exemplo, o diretor aparece num jornal lido por um dos sobreviventes: ele é o “antes” e o “depois” num anúncio de regime para emagrecer. Certos paralelos sugeridos pela mostra, como o dos filmes de Hitchcock com outras artes — a literatura gótica de Edgar Allan Poe e o romantismo algo lúgubre dos pintores pré-rafaelitas ingleses, por exemplo —, parecem forçados, e há pouco sobre a relação de amor e ódio do diretor com as louras, mas o banquete não decepcionou.
Divagação inescapável. No meio de uma sala da exposição dedicada a outra mania de Hitchcock, a de filmar o desenlace das suas tramas em locais insólitos como a cabeça da Estátua da Liberdade ou as caras dos presidentes americanos esculpidas naquela rocha (em Intriga internacional), pensei em como ele levava a um extremo inglês — isto é, irônico e um pouco condescendente com a ex-colônia — o velho truque americano de usar a paisagem e as coisas do cotidiano como personagens de cinema, até como uma maneira de não ser europeu, de celebrar o comum e o antiartístico, artisticamente. Os personagens de Hitchcock vivem seus momentos decisivos na superfície de sólidos e indiferentes símbolos americanos, um pouco como ele, um intelectual europeu, fazendo a sua grande arte disfarçada de entretenimento popular, na cara dos americanos. As torres simétricas do World Trade Center representavam solidez e indiferença, e as esculturas trágicas das suas carcaças calcinadas também são exemplos de símbolos dramaticamente transformados em arte. Mas Hitchcock concordaria que isto é levar a humanização da paisagem um pouco longe demais.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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