Duas
forças, porém, além de uma terceira, compeliam-se a tomar à vida
agitada do costume: Sabina e Quincas Borba. Minha irmã encaminhou a
candidatura conjugal de Nhá-loló de um modo verdadeiramente
impetuoso. Quando dei por mim estava com a moça quase nos braços.
Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o Humanitismo, sistema de
filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas.
– Humanitas,
dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo
homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a
estática, anterior a toda a criação; a expansiva, começo das
coisas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará mais uma, a
contrativa absorção do homem e das coisas. A expansão, iniciando o
universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e dai a dispersão,
que não é mais do que a multiplicação personificada da substância
original.
Como
me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba
desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas do
sistema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao
Bramanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas diferentes
partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religião indiana
tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era
no Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do
peito ou dos rins de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o
mesmo que descender dos cabelos ou da ponta do nariz. Dai a
necessidade de cultivar e temperar o músculo. Hércules ou Herakles
não foi senão um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto o
Quincas Borba ponderou que o paganismo poderia ter chegado à
verdade, se se não houvesse amesquinhado com a parte galante dos
seus mitos. Nada disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja
nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem
alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução
um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há
mendigo que não prefira
a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas),
segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de
galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto,
verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.
– Imagina,
por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o Quincas Borba; é
positivo que não teria agora o prazer de conversar contigo, comer
esta batata, ir ao teatro, e para tudo dizer numa só palavra: viver.
Nota que não faço do homem um simples veículo de Humanitas; não,
ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o
próprio Humanitas reduzido; dai a necessidade de adorar-se a si
próprio. Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla
a inveja. Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano,
que troveje contra o sentimento da inveja, O acordo é universal,
desde os campos da Iduméia até o Alto da Tijuca. Ora bem; abre mão
dos velhos preconceitos, esquece as retóricas rafadas, e estuda a
inveja, esse sentimento tão sutil e tão nobre. Sendo cada homem uma
redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente
oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias.
Assim, por exemplo, o algoz que executa o condenado pode excitar o
vão clamor dos poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige
em Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do
indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de
Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente
estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja
não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande
função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os
mais adequados à sua felicidade. Dai vem que a inveja é uma
virtude.
Para
que negá-lo? eu estava estupefato. A clareza da exposição, a
lógica dos princípios, o rigor das consequências,
tudo isso parecia superiormente grande, e foi-me preciso suspender a
conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova.
Quincas Borba mal podia encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma
asa de frango no prato, e trincava-a com filosófica serenidade. Eu
fiz-lhe ainda algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não
gastou muito tempo em destruí-las.
– Para
entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca
o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a
guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente,
como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele
chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que
Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro
documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango.
Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos,
importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um
navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por
dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram,
sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim,
este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma
multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar
mate ao meu apetite.
Entre
o queijo e o café, demonstrou-me o Quincas Borba que o seu sistema
era a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura
ilusão. Quando a criança é ameaçada por um pau, antes mesmo de
ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é
que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não
basta certamente a adoção do sistema para acabar logo com a dor,
mas é indispensável; o resto é a natural evolução das coisas.
Uma vez que o homem se compenetra bem de que ele é o próprio
Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à substância
original para obstar qualquer sensação dolorosa. A evolução,
porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns
milhares de anos.
Quincas
Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes
manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações
latinas. O último volume compunha-se de um tratado político,
fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema,
posto que concebia com um formidável rigor de lógica. Reorganizada
a sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam eliminadas a
guerra, a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a
miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos flagelos
verdadeiros equívocos do entendimento, porque não passariam de
movimentos externos da substância interior, destinados a não
influir sobre o homem, senão como simples quebra da monotonia
universal, claro estava que a sua existência não impediria a
felicidade humana. Mas ainda quando tais flagelos (o que era
radicalmente falso) correspondessem no futuro à concepção acanhada
de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o sistema, e por
dois motivos: 1º
porque sendo Humanitas a substância criadora e absoluta, cada
indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se
ao princípio
de que descende; 2º
porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual do homem
sobre a terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as
estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss, dizia-me ele
ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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