Quando
os seminaristas foram saindo em fila, procurando furtivamente o vulto
de Francisca dissimulada atrás de uma coluna de canto, Nando se
aproximou.
— Sabe
que aqui mesmo, não tão longe do mosteiro, ainda existe uma grande
indústria de ladrilhos e azulejos? — disse Francisca.
— Sei.
Ou acho que sabia — disse Nando, que depois se corrigiu, rindo. —
Claro! É de seu pai. Mas por quê?
— Porque,
com o seu auxílio, pretendo descobrir como eram e reconstituir o
desenho dos ladrilhos perdidos. Depois encomendam-se os azulejos. Se
o mosteiro não pagar o serviço, peço esmola aos turistas para
pagar papai.
Nando
riu.
— Vejo
que Teresa fez uma conquista.
— Pois
é. Sua admiração é contagiosa, padre Nando. Mas, voltando aos
azulejos que faltam. De um ainda existe no muro uma ponta. Venha ver.
No azulejo anterior, Teresa, sineta na mão direita e uma imagem de
São José com o Menino nos braços, parece anunciar o acontecimento
da fundação das Descalças. Se não me engano é o que diz o latim
da inscrição.
— Exatamente
isto — disse Nando.
— Mas
pelo fragmento, o que vem em seguida é mais um close-up do que um
azulejo panorâmico. Veja aqui. Fibras. Uma alça de metal...
— Deixe
ver. Temos a seguir um grupo de Descalças.
— Aliás
com sandálias — disse Francisca.
— Mas
usavam sandálias de corda.
— Adivinhei!
É uma sandália de corda. Alça de couro, as fibras de corda.
— Bravos
— disse Nando —, é a sandália, sem dúvida. Belo trabalho de
detetive.
— Mas
o close-up me fez pensar num outro azulejo esplêndido. Também
nessa técnica. Venha vê-lo. Aqui. Olhe. Teresa está sem dúvida
tendo uma visão. Repare que a visão vai chegando, vai se
aproximando, arrebatando Teresa. De repente essas mãos, no azulejo
inteiro.
E
Nando:
— Ah,
dona Francisca, isto é uma das visões mais lindas de Teresa,
narrada na sua vida. “Estando um dia em oração quis o Senhor
mostrar-me apenas as mãos com tão grandíssima formosura.” Teresa
dizia que não era somente pobre de espírito e sim que era louca de
espírito.
— Vou
querer seu auxílio para traduzir o latim das inscrições que há em
alguns azulejos — disse Francisca.
— Acabo
fazendo um livro inteiro sobre esse painel de Teresa de Jesus.
Só
depois de se despedir e se afastar deixou Francisca tombar nos ombros
a mantilha preta. O sol caiu em seus cabelos como numa armadilha.
Toda clara sem sombra, pensou Nando com um arrepio.
No
dia seguinte esperou-a no pátio do mosteiro.
— Ah
— disse Nando —, esqueci de lhe dizer que nosso amigo Leslie
ficou magoado com sua recusa de colaborar com ele, ilustrando o livro
que ele está escrevendo.
Era
um assunto.
— Ele
andou falando nisso? — disse Francisca.
— E
pela reação de Winifred tem falado com grande frequência.
— Uma
boa pessoa — disse Francisca. — E sente que me deu uma chance que
eu devia aceitar. Mas eu tenho meus azulejos de Santa Teresa, meu
noivo, meus cadiuéu. Sabe que para me exercitar eu copio os desenhos
corporais que encontro em livros? Aliás, estou com uns desenhos aqui
há dias para lhe mostrar.
Eram
índios e índias ajaezados de traços, vestidos de arabescos. Os
lábios grossos das mulheres cadiuéu emoldurados por desenhos
abstratos como num tapete. Às vezes os desenhos passando por cima da
boca, outras vezes mantendo seu rigoroso caráter de moldura. Lábios
grossos, gretados, como de borracha na sua tumescência brotando de
um perverso labirinto de riscos, pontos, volutas, acantos e florões.
Que coisa seria aquela? Gregos ainda nus teriam rascunhado ornamentos
do que seriam capitéis dóricos e iônicos pelos beiços e peitos de
gente viva? Se não fossem perturbados em que iriam desembocar afinal
aqueles índios orgulhosos e que assim sabiam carregar em cara, seio
e ventre, geração após geração, uma língua ornamental tão
exata? Esquecidos os lábios túmidos, tida em mente só a
transitória tatuagem, o dedo fino e elegante de Francisca não
parecia de outro período histórico. Estava certo e justo
acompanhando os triângulos, diademas, frisos não mais miméticos na
sua orgulhosa função de só adorno. A unha longa e alva passando
pela arte que passava pelo corpo nu inclusive de homem com estojo
penial ou com absolutamente nada. Mãos franciscais e bugres, alguma
coisa ali horrorizava Nando.
— Talvez
meus croquis sirvam um dia para ilustrar livro seu, isto sim, sobre
índios.
— Meu?
— Sim,
das suas missões. Padre Hosana me disse que a sua Prelazia vai
acabar nos mapas de turismo do Brasil.
Irritava
Nando uma certa desordem que havia no mundo. A voz de Francisca
falando em Hosana era como seu dedo passeando pela pele de índios
nus. Nando resolveu adotar um tom ligeiro.
— Vamos
combinar uma coisa. Se eu escrever o livro, as ilustrações são
suas.
— É
um trato — disse Francisca estendendo a mão a Nando.
Nando
viu diante dos olhos um livro como o de Von den Steinen, de Lugon, de
Aurélio Pôrto. Seu livro, ilustrado por Francisca. Cada página com
um fundo de vitral azul-marinho e as letras do texto em ouro. As
cores da libré de Francisca. Maiúsculas vermelhas, verdes, roxas,
sustentando arabescos efêmeros como os dos cadiuéu. E cada duas
páginas de texto comprimindo entre si desenhos de Francisca.
Antonio
Callado, in Quarup
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