domingo, 28 de julho de 2019

Um trato

Quando os seminaristas foram saindo em fila, procurando furtivamente o vulto de Francisca dissimulada atrás de uma coluna de canto, Nando se aproximou.
Sabe que aqui mesmo, não tão longe do mosteiro, ainda existe uma grande indústria de ladrilhos e azulejos? — disse Francisca.
Sei. Ou acho que sabia — disse Nando, que depois se corrigiu, rindo. — Claro! É de seu pai. Mas por quê?
Porque, com o seu auxílio, pretendo descobrir como eram e reconstituir o desenho dos ladrilhos perdidos. Depois encomendam-se os azulejos. Se o mosteiro não pagar o serviço, peço esmola aos turistas para pagar papai.
Nando riu.
Vejo que Teresa fez uma conquista.
Pois é. Sua admiração é contagiosa, padre Nando. Mas, voltando aos azulejos que faltam. De um ainda existe no muro uma ponta. Venha ver. No azulejo anterior, Teresa, sineta na mão direita e uma imagem de São José com o Menino nos braços, parece anunciar o acontecimento da fundação das Descalças. Se não me engano é o que diz o latim da inscrição.
Exatamente isto — disse Nando.
Mas pelo fragmento, o que vem em seguida é mais um close-up do que um azulejo panorâmico. Veja aqui. Fibras. Uma alça de metal...
Deixe ver. Temos a seguir um grupo de Descalças.
Aliás com sandálias — disse Francisca.
Mas usavam sandálias de corda.
Adivinhei! É uma sandália de corda. Alça de couro, as fibras de corda.
Bravos — disse Nando —, é a sandália, sem dúvida. Belo trabalho de detetive.
Mas o close-up me fez pensar num outro azulejo esplêndido. Também nessa técnica. Venha vê-lo. Aqui. Olhe. Teresa está sem dúvida tendo uma visão. Repare que a visão vai chegando, vai se aproximando, arrebatando Teresa. De repente essas mãos, no azulejo inteiro.
E Nando:
Ah, dona Francisca, isto é uma das visões mais lindas de Teresa, narrada na sua vida. “Estando um dia em oração quis o Senhor mostrar-me apenas as mãos com tão grandíssima formosura.” Teresa dizia que não era somente pobre de espírito e sim que era louca de espírito.
Vou querer seu auxílio para traduzir o latim das inscrições que há em alguns azulejos — disse Francisca.
Acabo fazendo um livro inteiro sobre esse painel de Teresa de Jesus.
Só depois de se despedir e se afastar deixou Francisca tombar nos ombros a mantilha preta. O sol caiu em seus cabelos como numa armadilha. Toda clara sem sombra, pensou Nando com um arrepio.
No dia seguinte esperou-a no pátio do mosteiro.
Ah — disse Nando —, esqueci de lhe dizer que nosso amigo Leslie ficou magoado com sua recusa de colaborar com ele, ilustrando o livro que ele está escrevendo.
Era um assunto.
Ele andou falando nisso? — disse Francisca.
E pela reação de Winifred tem falado com grande frequência.
Uma boa pessoa — disse Francisca. — E sente que me deu uma chance que eu devia aceitar. Mas eu tenho meus azulejos de Santa Teresa, meu noivo, meus cadiuéu. Sabe que para me exercitar eu copio os desenhos corporais que encontro em livros? Aliás, estou com uns desenhos aqui há dias para lhe mostrar.
Eram índios e índias ajaezados de traços, vestidos de arabescos. Os lábios grossos das mulheres cadiuéu emoldurados por desenhos abstratos como num tapete. Às vezes os desenhos passando por cima da boca, outras vezes mantendo seu rigoroso caráter de moldura. Lábios grossos, gretados, como de borracha na sua tumescência brotando de um perverso labirinto de riscos, pontos, volutas, acantos e florões. Que coisa seria aquela? Gregos ainda nus teriam rascunhado ornamentos do que seriam capitéis dóricos e iônicos pelos beiços e peitos de gente viva? Se não fossem perturbados em que iriam desembocar afinal aqueles índios orgulhosos e que assim sabiam carregar em cara, seio e ventre, geração após geração, uma língua ornamental tão exata? Esquecidos os lábios túmidos, tida em mente só a transitória tatuagem, o dedo fino e elegante de Francisca não parecia de outro período histórico. Estava certo e justo acompanhando os triângulos, diademas, frisos não mais miméticos na sua orgulhosa função de só adorno. A unha longa e alva passando pela arte que passava pelo corpo nu inclusive de homem com estojo penial ou com absolutamente nada. Mãos franciscais e bugres, alguma coisa ali horrorizava Nando.
Talvez meus croquis sirvam um dia para ilustrar livro seu, isto sim, sobre índios.
Meu?
Sim, das suas missões. Padre Hosana me disse que a sua Prelazia vai acabar nos mapas de turismo do Brasil.
Irritava Nando uma certa desordem que havia no mundo. A voz de Francisca falando em Hosana era como seu dedo passeando pela pele de índios nus. Nando resolveu adotar um tom ligeiro.
Vamos combinar uma coisa. Se eu escrever o livro, as ilustrações são suas.
É um trato — disse Francisca estendendo a mão a Nando.
Nando viu diante dos olhos um livro como o de Von den Steinen, de Lugon, de Aurélio Pôrto. Seu livro, ilustrado por Francisca. Cada página com um fundo de vitral azul-marinho e as letras do texto em ouro. As cores da libré de Francisca. Maiúsculas vermelhas, verdes, roxas, sustentando arabescos efêmeros como os dos cadiuéu. E cada duas páginas de texto comprimindo entre si desenhos de Francisca.
Antonio Callado, in Quarup

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