sábado, 27 de julho de 2019

O paradoxo de Pamuk

Durante séculos, diz o ficcionista turco Orhan Pamuk, escritores e leitores tentam, sem sucesso, chegar a um acordo a respeito da natureza da ficção. “Não quero dar a impressão de que tenho alguma esperança em relação a esse acordo”, ele nos adverte. “Ao contrário, a arte do romance tira sua força da ausência de um consenso perfeito entre escritor e leitor sobre o entendimento da ficção.”
O paradoxo que Pamuk nos oferece está em O romancista ingênuo e o sentimental (Companhia das Letras, tradução de Hildegard Feist), transcrição de seis conferências que fez nas Charles Eliot Norton Lectures, um ciclo de palestras na Universidade de Harvard. O título se refere ao clássico ensaio Sobre poesia ingênua e sentimental, do poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805). Livro que, recorda Pamuk, foi decisivo em sua formação intelectual e cujas ideias ele, agora, transporta da poesia para a ficção.
O livro de Orhan Pamuk está repleto de perguntas inconvenientes (sem resposta, perguntas infernais), mas, justamente por isso, estimulantes, que perturbam a mente dos ficcionistas. Quando escrevemos uma ficção, substituímos a realidade verdadeira por outra falsa ou só a ampliamos? A ficção é o desejo de tornar-se outro ou de convencer os outros disso? O que se passa na mente do leitor enquanto lê uma narrativa: ele lê uma ficção ou uma ficção o lê?
Quando lemos um romance, oscilamos”, diz Pamuk. De um lado, “vemos” personagens e paisagens (eles se materializam em nossa mente). De outro, “somos” esses personagens e essas paisagens, na medida em que, para reconstruí-las mentalmente, utilizamos nossa memória, história pessoal, sensibilidade. Em resumo: servimo-nos de tudo o que somos. Enquanto lemos, diz Pamuk, “nossa mente e nossa percepção trabalham diligentemente, com grande rapidez e concentração, realizando numerosas operações simultâneas”. Observada de fora, a leitura se assemelha à quietude e à paz; contudo, em seu interior, a mente do leitor ferve e um vendaval de imagens a sacode.
Chega Orhan Pamuk, assim, à distinção entre o leitor ingênuo e o leitor sentimental proposta por Schiller. Ingênuo seria o leitor, que, enquanto lê, não se preocupa com os aspectos artificiais do que lê. Simplesmente se entrega, acredita com inocência em sua história e nela se dissolve. Já o leitor sentimental tem consciência dos artifícios da ficção, sabe que a literatura é uma máquina de ser e não se deixa iludir com sua aparente inocência. De um lado, a entrega. De outro, a reflexão e a suspeita. Qual o leitor ideal? Mais uma vez, a resposta é impossível. Ou melhor: ideal, sugere Pamuk, é o leitor que oscila entre as duas posições, se entrega à fantasia, mas não abdica de duvidar.
Também os escritores sofrem dessa cisão. De um lado, estão aqueles que acreditam “escrever espontaneamente” – a ficção como um espelho que acolhe o mundo. De outro, os que afirmam “escrever deliberadamente” – a ficção, já agora, como uma máquina de ser. Exemplifica Pamuk: de um lado, Goethe, com sua naturalidade, serenidade, autoconfiança; de outro, Schiller, mais inquieto, mais reflexivo, com a alma atravessada por dúvidas, um homem que escreve apesar das incertezas que o sacodem.
Recorda Pamuk que essa cisão, de certa forma, se reflete na própria história da literatura. Até o Realismo, líamos um romance “para saber o que vai acontecer”. A partir do Modernismo, ao contrário, nós o lemos sem nenhuma esperança de resposta. Por que lemos, então, autores enigmáticos como Kafka, Joyce, Pessoa? Lemos não na esperança do conhecimento; lemos, unicamente, para nos impregnar de suas “atmosferas”, de sua visão retalhada do mundo, dos pequenos terremotos que se escondem entre suas páginas. O leitor moderno lê na esperança de chegar não a uma firme estrada de respostas, mas a um instável “centro” ficcional. Isto é: de chegar ao coração do romance. Recorda Pamuk, aqui, a fórmula simples, mas devastadora, de E.M. Forster: “O teste final de um romance será nosso afeto por ele”.
Críticos, doutores, estudantes, leitores comuns: todos temos os romances que nos devastaram. Que nos levaram, de alguma forma, a pensar: “Este livro foi escrito para mim”. No fim das contas, mesmo abdicando de espelhar a existência, a ficção dela se aproxima de forma radical. Argumenta Pamuk: “Um romance é uma estrutura única que nos permite ter pensamentos contraditórios sem constrangimento e entender diferentes pontos de vista ao mesmo tempo”. A ficção nos permite ser ambíguos, indecisos, paradoxais. É do paradoxo, e não da afirmação, que as afirmações retiram sua potência.
Quando Pamuk publicou, em 2008, O museu da inocência, a história de Kemal, um homem obcecado pela paixão, muitos leitores lhe perguntaram: “Senhor Pamuk, tudo isso aconteceu realmente com o senhor? Senhor Pamuk, o senhor é Kemal?”. Gustave Flaubert pareceu nos dar uma resposta clara a essa dúvida quando disse a célebre frase: “Madame Bovary sou eu”. Pamuk nos faz recordar, porém, do óbvio: Flaubert era um homem, e não uma mulher; ao contrário de Emma, nunca se casou; sua vida foi completamente diferente da vida de sua heroína. O que quis dizer, então, quando fez sua famosa afirmação? Falava não de uma identidade, mas de um estilo. É a “maneira de ser” de um escritor, e não sua biografia, que o carrega para dentro de seus livros. E isso o expõe de modo muito mais escandaloso do que podemos imaginar.
Também o leitor, quando se apaixona por um livro, não compara conteúdos, mas maneiras (estilos) de olhar, de sentir, de perceber. “Entendemos uma cena porque a relacionamos com algo que já vivemos”, Pamuk diz. Não porque tenhamos vivido aquela cena, mas porque ela evoca outra cena guardada em nosso interior. E é dessa conexão – desse atordoamento, como um homem que leva um choque – que a leitura se alimenta. Nas ficções, realidade e fantasia se fundem de uma maneira tão intensa que é impossível separá-las. “A força da ficção está na ausência da solução e de acordo”, Pamuk insiste. Está na incerteza, uma vez que jamais chegaremos ao centro (ao coração) prometido.
José Castello, in Sábados inquietos

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