Durante
séculos, diz o ficcionista turco Orhan Pamuk, escritores e leitores
tentam, sem sucesso, chegar a um acordo a respeito da natureza da
ficção. “Não quero dar a impressão de que tenho alguma
esperança em relação a esse acordo”, ele nos adverte. “Ao
contrário, a arte do romance tira sua força da ausência de um
consenso perfeito entre escritor e leitor sobre o entendimento da
ficção.”
O
paradoxo que Pamuk nos oferece está em O romancista ingênuo e o
sentimental (Companhia das Letras, tradução de Hildegard
Feist), transcrição de seis conferências que fez nas Charles Eliot
Norton Lectures, um ciclo de palestras na Universidade de Harvard. O
título se refere ao clássico ensaio Sobre poesia ingênua e
sentimental, do poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805).
Livro que, recorda Pamuk, foi decisivo em sua formação intelectual
e cujas ideias ele, agora, transporta da poesia para a ficção.
O
livro de Orhan Pamuk está repleto de perguntas inconvenientes (sem
resposta, perguntas infernais), mas, justamente por isso,
estimulantes, que perturbam a mente dos ficcionistas. Quando
escrevemos uma ficção, substituímos a realidade verdadeira por
outra falsa ou só a ampliamos? A ficção é o desejo de tornar-se
outro ou de convencer os outros disso? O que se passa na mente do
leitor enquanto lê uma narrativa: ele lê uma ficção ou uma ficção
o lê?
“Quando
lemos um romance, oscilamos”, diz Pamuk. De um lado, “vemos”
personagens e paisagens (eles se materializam em nossa mente). De
outro, “somos” esses personagens e essas paisagens, na medida em
que, para reconstruí-las mentalmente, utilizamos nossa memória,
história pessoal, sensibilidade. Em resumo: servimo-nos de tudo o
que somos. Enquanto lemos, diz Pamuk, “nossa mente e nossa
percepção trabalham diligentemente, com grande rapidez e
concentração, realizando numerosas operações simultâneas”.
Observada de fora, a leitura se assemelha à quietude e à paz;
contudo, em seu interior, a mente do leitor ferve e um vendaval de
imagens a sacode.
Chega
Orhan Pamuk, assim, à distinção entre o leitor ingênuo e o leitor
sentimental proposta por Schiller. Ingênuo seria o leitor, que,
enquanto lê, não se preocupa com os aspectos artificiais do que lê.
Simplesmente se entrega, acredita com inocência em sua história e
nela se dissolve. Já o leitor sentimental tem consciência dos
artifícios da ficção, sabe que a literatura é uma máquina de ser
e não se deixa iludir com sua aparente inocência. De um lado, a
entrega. De outro, a reflexão e a suspeita. Qual o leitor ideal?
Mais uma vez, a resposta é impossível. Ou melhor: ideal, sugere
Pamuk, é o leitor que oscila entre as duas posições, se entrega à
fantasia, mas não abdica de duvidar.
Também
os escritores sofrem dessa cisão. De um lado, estão aqueles que
acreditam “escrever espontaneamente” – a ficção como um
espelho que acolhe o mundo. De outro, os que afirmam “escrever
deliberadamente” – a ficção, já agora, como uma máquina de
ser. Exemplifica Pamuk: de um lado, Goethe, com sua naturalidade,
serenidade, autoconfiança; de outro, Schiller, mais inquieto, mais
reflexivo, com a alma atravessada por dúvidas, um homem que escreve
apesar das incertezas que o sacodem.
Recorda
Pamuk que essa cisão, de certa forma, se reflete na própria
história da literatura. Até o Realismo, líamos um romance “para
saber o que vai acontecer”. A partir do Modernismo, ao contrário,
nós o lemos sem nenhuma esperança de resposta. Por que lemos,
então, autores enigmáticos como Kafka, Joyce, Pessoa? Lemos não na
esperança do conhecimento; lemos, unicamente, para nos impregnar de
suas “atmosferas”, de sua visão retalhada do mundo, dos pequenos
terremotos que se escondem entre suas páginas. O leitor moderno lê
na esperança de chegar não a uma firme estrada de respostas, mas a
um instável “centro” ficcional. Isto é: de chegar ao coração
do romance. Recorda Pamuk, aqui, a fórmula simples, mas devastadora,
de E.M. Forster: “O teste final de um romance será nosso afeto por
ele”.
Críticos,
doutores, estudantes, leitores comuns: todos temos os romances que
nos devastaram. Que nos levaram, de alguma forma, a pensar: “Este
livro foi escrito para mim”. No fim das contas, mesmo abdicando de
espelhar a existência, a ficção dela se aproxima de forma radical.
Argumenta Pamuk: “Um romance é uma estrutura única que nos
permite ter pensamentos contraditórios sem constrangimento e
entender diferentes pontos de vista ao mesmo tempo”. A ficção nos
permite ser ambíguos, indecisos, paradoxais. É do paradoxo, e não
da afirmação, que as afirmações retiram sua potência.
Quando
Pamuk publicou, em 2008, O museu da inocência, a história de
Kemal, um homem obcecado pela paixão, muitos leitores lhe
perguntaram: “Senhor Pamuk, tudo isso aconteceu realmente com o
senhor? Senhor Pamuk, o senhor é Kemal?”. Gustave Flaubert pareceu
nos dar uma resposta clara a essa dúvida quando disse a célebre
frase: “Madame Bovary sou eu”. Pamuk nos faz recordar, porém, do
óbvio: Flaubert era um homem, e não uma mulher; ao contrário de
Emma, nunca se casou; sua vida foi completamente diferente da vida de
sua heroína. O que quis dizer, então, quando fez sua famosa
afirmação? Falava não de uma identidade, mas de um estilo. É a
“maneira de ser” de um escritor, e não sua biografia, que o
carrega para dentro de seus livros. E isso o expõe de modo muito
mais escandaloso do que podemos imaginar.
Também
o leitor, quando se apaixona por um livro, não compara conteúdos,
mas maneiras (estilos) de olhar, de sentir, de perceber. “Entendemos
uma cena porque a relacionamos com algo que já vivemos”, Pamuk
diz. Não porque tenhamos vivido aquela cena, mas porque ela evoca
outra cena guardada em nosso interior. E é dessa conexão – desse
atordoamento, como um homem que leva um choque – que a leitura se
alimenta. Nas ficções, realidade e fantasia se fundem de uma
maneira tão intensa que é impossível separá-las. “A força da
ficção está na ausência da solução e de acordo”, Pamuk
insiste. Está na incerteza, uma vez que jamais chegaremos ao centro
(ao coração) prometido.
José
Castello, in Sábados inquietos
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