1
Ainda
tinha meio-dia e mais sessenta minutos pra fazer de conta que vivia
um pouco, antes de tudo começar.
O
estupor luminoso que, dizem os seres gasosos dos pantanais de
Canópus, explode nos epiléticos treze horas antes de um ataque, o
abismo lá no fundo, na boca do estômago, 31 graus abaixo de zero.
Até
esqueci, na excitação, não sei bem se no aeroporto ou na
rodoviária, o incidente besta da noite anterior, quando, ridículo,
cheguei a pensar que a festa já tinha começado, quando, bem,
todo mundo sabe como é que são essas coisas.
Era
natural. Natural que tivesse esquecido tudo, o esboço de festa,
minha saída, a tempestade, minha volta, a voz absoluta.
Perfeitamente
natural que eu tivesse esquecido Norma. Norma? Alguém se lembra?
2
Conheci
uma Norma antigamente, mas não era esta, essa Norma dos meus contos
dos bosques de Viena. Chamava-se Norma Propp, filha do meu analista.
Como aconteceu, nem perguntar. Foi rápido, muito rápido, rápido
como um rosto fica pálido.
Não
era grande coisa. Mas nos vimos coisas um no outro, e a besteira
estava formada. A gente se foi a primeira vez numa porção de
coisas. Sei lá que importância isso tem, mas as pessoas tendem a
atribuir virtudes mágicas às primeiras vezes. Seja lá do que for.
E assim primeiras vezes fomos, Norma e eu, muitas primeiras vezes.
3
Nunca
te ocorreu não merecer tudo aquilo que você tem, ou tudo aquilo que
você tem que suportar? Então, não conhece o melhor da vida. Norma
Propp não era assim, exatamente. Não que fosse nenhuma maravilha.
Ao contrário. Era sólida, algo assim como mulher dos signos de
Leão, Touro ou Escorpião, uma coisa sem mistério, escorregadia
como os esquemas do pai.
Dele,
herdou algumas coisas. A precisão com que atingia teu olho na
primeira porrada. O absoluto desprezo pela opinião alheia. A mania
de coçar a orelha quando pensava. Da mãe, veio tudo mais. A
simplicidade camponesa. A virada imprevisível. A certeza de estar
sempre com a razão.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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