domingo, 28 de julho de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 7

1

Ainda tinha meio-dia e mais sessenta minutos pra fazer de conta que vivia um pouco, antes de tudo começar.
O estupor luminoso que, dizem os seres gasosos dos pantanais de Canópus, explode nos epiléticos treze horas antes de um ataque, o abismo lá no fundo, na boca do estômago, 31 graus abaixo de zero.
Até esqueci, na excitação, não sei bem se no aeroporto ou na rodoviária, o incidente besta da noite anterior, quando, ridículo, cheguei a pensar que a festa já tinha começado, quando, bem, todo mundo sabe como é que são essas coisas.
Era natural. Natural que tivesse esquecido tudo, o esboço de festa, minha saída, a tempestade, minha volta, a voz absoluta.
Perfeitamente natural que eu tivesse esquecido Norma. Norma? Alguém se lembra?

2

Conheci uma Norma antigamente, mas não era esta, essa Norma dos meus contos dos bosques de Viena. Chamava-se Norma Propp, filha do meu analista. Como aconteceu, nem perguntar. Foi rápido, muito rápido, rápido como um rosto fica pálido.
Não era grande coisa. Mas nos vimos coisas um no outro, e a besteira estava formada. A gente se foi a primeira vez numa porção de coisas. Sei lá que importância isso tem, mas as pessoas tendem a atribuir virtudes mágicas às primeiras vezes. Seja lá do que for. E assim primeiras vezes fomos, Norma e eu, muitas primeiras vezes.

3

Nunca te ocorreu não merecer tudo aquilo que você tem, ou tudo aquilo que você tem que suportar? Então, não conhece o melhor da vida. Norma Propp não era assim, exatamente. Não que fosse nenhuma maravilha. Ao contrário. Era sólida, algo assim como mulher dos signos de Leão, Touro ou Escorpião, uma coisa sem mistério, escorregadia como os esquemas do pai.
Dele, herdou algumas coisas. A precisão com que atingia teu olho na primeira porrada. O absoluto desprezo pela opinião alheia. A mania de coçar a orelha quando pensava. Da mãe, veio tudo mais. A simplicidade camponesa. A virada imprevisível. A certeza de estar sempre com a razão.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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