O
mineiro é um pássaro de plumas negras que os mineiros perseguem e
não veem nunca. Voa muito alto e vai alvoroçando com seu grito duro
o topo das montanhas. Sabe-se que descansa nos últimos galhos dos
cedros das farrobas. Há outros pássaros, o capanero e a
piscua, que também anunciam o esconderijo dos diamantes.
Quando a piscua está muito alegre e canta piiiiscua,
piiiiiiscua, é por alguma coisa boa, mas cuidado com esse passarinho
manso, de plumas cinzentas, quando fica triste e canta baixo, como se
estivesse com raiva: melhor é ir embora. Em compensação, cada vez
que o mineirinho arisco grita seu único grito, está mostrando o
diamante que foge, para que os homens se lancem sobre a pedra e a
levantem no punho. O mineiro conduz os mineiros até o fundo da selva
de Guaniamo, onde vive. Quando sai na savana, mal começa a voar,
morre, porque o ar da planura bate em seu peito.
O
diamante é uma pedra que magicamente aparece no meio das peneiras,
desprendida de uma massa de pedras inúteis e barro, depois de
esconder-se nos leitos de areia dos rios ou nas profundidades da
terra, entre os sinais delatores: coisas que parecem grafite de
lápis, lentilhas, merda de papagaio, pedaços de metal e sementes de
romã. Para encontrar o diamante, este senhor, é preciso ter sangue
nas veias.
O
mineiro é um preto velho que protesta porque são três da manhã e
na rua da Salvação já não se pode beber. O que é meu é meu,
grita. Eu tenho reales, não preciso pedir dinheiro a esses
botequineiros. Somos gente boa, mas quando dá raiva, dá raiva.
Tenho um diamante grande como o da África aqui no meu bolso, e não
me atendem. Que cantem as máquinas! Que saiam as mulheres! Estão
pensando que Marchán é algum vira-latas, nesse negócio? Não me
deem nada. Eu tenho mais reales, mais que esses que têm
negócios e picas, eu tenho reales no bolso e no banco de
Caracas e em todos os lugares. Aqui estou com meu burrico e quero que
as mulheres tirem a roupa e deem banho no meu burrico com brandy,
porque é assim que ele gosta! Don Marchán é o homem mais rico de
todas as minas desse país, que caralho, e eu me chamo Dionísio
Marchán. Quem quiser dormir nesse país que faça casa. Aqui tem
muita madeira. Você vai me fazer calar? Eu não tenho medo de você
nem de ninguém. Eu é que faço você calar. Faço você calar a
boca a machadada. Eu nunca, em nenhuma mina, pedi esmola a ninguém.
E quem tiver raiva de mim eu me mato com ele, eu ou ele, a machado ou
a bala ou do jeito que for. E o homem que me venha, que me venha
frente a frente, assim, porque mamãe não me pariu escravo. Eu sou
um homem sem amo! Um homem sem medo! O tigre mais bravo que sair, já
o amamentei. Eu sou Marchán. Eu aprendi para saber. Que ninguém
banque o inimigo comigo. Uns quiseram, mas não puderam. Que saiam as
mulheres, todas as mulheres! Peladas, que Marchán paga esta noite a
festa da mina! Que saiam a Mena e a Turca e a Rosa! Aqui a máquina
tem de cantar! Seja doutor, capitão, seja o que for, ninguém na
Salvação vai fechar a porta para mim. Porque eu sou Marchán. Já
estou passando dos setenta, mas sou como burro bom, o brio eu não
perdi, já conheço a vida! Eu sou um homem que mata de frente! Hoje
já não sobram homens, isso sim. Hoje o que existe são punheteiros.
Que cantem as máquinas, eu falei! Vamos arrebentar o pescoço das
garrafas! As mulheres, que dancem! Hoje sou o que ontem não fui e o
que posso ser não sou, pois esse dia de hoje é o que digo de mim.
Que Dionísio Marchán morreu de velho. Esse não foi morto, esse
não!
O
diamante é uma planta que nasce em qualquer parte, porque para
existir não exige boa terra. Mas tem seus mistérios. Se faz
perseguir pelos túneis a golpes de lança e apaga quando quer a vela
ou os pulmões dos mineiros.
O
diamante está no topo de um morro invencível, onde muitos quiseram
subir e rodaram encosta abaixo pelas pedreiras. O morro, que se ergue
nas costas do Caura, mostra, apesar disso, cicatrizes de escaladas
que se perdem de vista muito lá em cima, e do alto se desprende,
pelas manhãs, uma cascata de laranjas muito doces (nestas terras
onde só crescem a seringueira e a sarrapia).
O
diamante jaz no fundo do leito arenoso do rio Paragua, no sítio
exato e secreto onde uma mulher encontrou, quando as águas baixaram,
um canhão de bronze com o suporte quebrado, um tremendo canhão
daqueles que os conquistadores carregavam pela boca e punham fogo na
mecha. O canhão estava ali, embora fosse impossível estar ali,
porque as cataratas do rio teriam sucumbido os galeões ou as
corvetas e ninguém poderia ter aberto uma picada, de tão longe,
através da selva cerrada.
– Don
Sifonte! Mandam-lhe lembranças.
– Como
andam as coisas?
– Até
o momento, não andam.
– Como
vai você?
– Mais
velho que ontem, mais perto da morte.
– Pasteizinhos
quentes! Para velhos que não têm dentes! Os caraquenhos são
uns frescos.
As
luzes que nascem do diamante cortam como faca. Os comerciantes os
examinam com lentes grossas. Às vezes o diamante não é um
diamante: é um quase quase.
O
mineiro é um barulho que nasce pelas noites, quando todos dormem, e
levanta levemente e flutua sobre o sonho de todos.
O
mineiro é o murmúrio das surucas nas mãos dos fantasmas; a
surda agitação dos pedregulhos lavando-se e filtrando-se por três
peneiras sucessivas; o som quase secreto da areia que, de filtro em
filtro, vai caindo.
O
mineiro é o ruído de ferro das pás e das lanças que solitárias
se erguem, dançam, se esfregam entre si e se põem em movimento até
os poços, e vão penetrando a terra e cavam os socavãos enquanto
todos dormem.
E
é o eleito que escuta, com o rosto crispado e todos os músculos em
tensão, até que finalmente o ruído cessa e fogem os fantasmas para
que não os surpreenda e os mate a luz do dia. E então,
desesperadamente, o escolhido se afunda no grotão onde o diamante o
espera.
O
diamante é uma presa que se esconde debaixo da língua de um homem
muito magro, que treme de medo. Outros homens tiraram sua roupa,
arrancaram sua roupa em farrapos. “Você roubou-nos cinco baldes”,
dizem. “Vimos quando você os roubou.” Falam com os dentes
apertados. “Todo mundo viu”, dizem.
O
homem muito magro nega agitando a cabeça e murmura algumas palavras
sem que ninguém perceba que tem o diamante debaixo da língua.
– Nadando,
nessa água imunda? Nem você acredita em você. Estava roubando.
Isso é o que você estava fazendo. Roubando. E isso não se faz.
Isso é pecado. É feio, muito feio, fazer isso.
O
homem magro está rodeado por eles, um anel de homens com olhares
acesos. Um deles atira cuidadosamente o nó escorregadio de uma corda
longa que tem numa das mãos para o galho alto de uma árvore, e o
homem muito magro engole o diamante e se condena.
O
mineiro é um homem com um arco e uma flecha tatuados no peito.
O
mineiro fala, movimento de arco em tensão: Barrabás abriu uma
época. Lá pelos anos quarenta, diz, Barrabás encontrou no Polaco
um diamante do tamanho de um ovo de pomba, que valia meio milhão de
dólares. Essa manhã, diz, os comerciantes lhe haviam negado café
com pão.
Voo
alto da flecha em direção ao alvo: o diamante era perfeito,
transparente e com reflexos azulados, embora tivesse as beiradas
irregulares. Nunca visto.
Alegria
da flecha no ar: Barrabás oferecia banquetes ao presidente e dava
grandes festas em Caracas. Passeava pelas ruas e gostava das moças
nas varandas: comprava delas um olhar e um copo d’água por cem
bolívares. Mandou arrancar todos dos dentes e fazer uma dentadura de
ouro puro. Apaixonou-se pela filha do presidente.
A
flecha bate: o mineiro diz que Barrabás ofereceu dez mil bolívares
para entrar nos salões do Tamanaco, e que não deixaram, por ser
preto. Mas o Tamanaco não existia.
A
flecha quebrada: Barrabás definha, pobre e velho, numa mina perdida
da fronteira.
Aniquilação
da flecha: quando voltou de Caracas, não conseguia nem um quilo de
arroz fiado. E já não pode contar nem consigo.
O
diamante é um espelho profundo onde os mortos de fome acreditam
encontrar seus verdadeiros rostos.
O
diamante é um recém-nascido que se oferece às putas colombianas da
zona vermelha ou se evapora em rum ou uísque escocês ou cai na
emboscada dos baralhos marcados nas vendinhas dos trapaceiros
profissionais.
O
diamante faz dançar os milhões à luz da lua, e, quando sai o sol,
no bolso não sobra nem um trocado para comprar a bala que faria
falta.
O
diamante espera, adormecido, entre as raízes de uma gameleira que
arde, ao pé das galhadas em chamas, no centro do delírio de um
homem que desesperadamente sabe que não lembrará.
O
mineiro é um corpo quente e gelado que treme numa rede, à
intempérie, com os olhos queimados pela febre. O mineiro acha que
chove. Mas a chuva é uma folha de palmeira que um homem arrasta por
um caminho poeirento, recém-aberto a machado e já rachado pelo sol,
e a folha avança e soa como uma chuva que roda. Se a chuva caísse,
a verdadeira chuva, talvez aliviasse os fervores da febre do mineiro
que queria sair da rede e da febre, mas está preso, as pernas não
respondem, o queixo treme, os dentes se enlouqueceram e chocam-se
entre si, esse diamante é meu, uma mão na garganta o afoga e
resseca sua boca, esse diamante tão grande como um penhasco,
necessita vomitar o que não comeu nem bebeu, lambido pelo fogo, eu,
eu que me banhei a sexta-feira santa e não fui transformado em
peixe, aonde me vão levar, os poros se dilatam, estouram, aonde a
transpiração salta a jorros, se aqui não temos nem cemitério, o
diamante reina no incêndio das raízes espantosas das gameleiras e
no incêndio da febre na cabeça do mineiro, a cabeça se parte, eu
que dormi com mulher numa sexta-feira santa e não fiquei grudado,
aonde vão me levar, um alicate quente que tritura o crânio e
suprime a respiração, querem me despojar, querem me roubar, a
transpiração aos jorros, abusadores, filhos da mãe, a pedra
nascida para mim aí embaixo da árvore que arde, a morte, quando os
que não voaram voam, aonde, quando os que não correram correm, as
flores grudadas, os pássaros mudos, e bruscamente surge então a
invasão de borboletas negras, grandes como urubus, apagam o céu e
cortam os caminhos e o mineiro sente que está indo, abre caminho
entre as borboletas a machadadas, invencível e veloz, a sopros de
vento puro abre caminho, deixa-se ir rumo à pedra que o chama,
fulgurante, da fogueira de árvores à beira do rio e do fim de todas
as coisas.
O
diamante é uma pedra maldita. O diamante é uma pedra só. Com suas
línguas de diamante, as antigas bruxas poderosas cortam o osso e o
aço e atravessam a carne dos planetas.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo