Acreditamos
que os homens mentem, mas a realidade não mente. As coisas,
pensamos, são sempre verdadeiras. Mas por que confiar tanto no mundo
real? Para desmascarar sua instabilidade, temos a ficção. A
literatura não é uma fantasia ingênua, um divertimento sem
consequências. Ao contrário: ela é uma máquina de interrogar as
coisas. Com suas bordas frouxas, seu olhar “de banda” e sua
inconstância, só a literatura pode desmascarar as ilusões da
Verdade.
Ideias
assim, que reviram o mundo de ponta-cabeça, agitam a alma do
escritor português Gonçalo M. Tavares. Em uma bela caixa azul,
nomeada Breves notas (editora UFSC / Editora da Casa), me chegam três
de seus preciosos livros. O primeiro, Breves notas sobre ciência,
é o que me interessa aqui. Mas os outros dois – Breves notas
sobre o medo e Breves notas sobre as ligações – são
igualmente imperdíveis.
Escolho
as notas sobre a ciência porque, no século do poder tecnológico,
ela costuma nos oprimir. Todos nos sentimos paralisados diante de um
diagnóstico médico ou de uma perícia científica. Ditadas em nome
da ciência, essas verdades podem até produzir alívio ou gerar
belas demonstrações, quando nada mais fazem que repetir e levar ao
mesmo lugar.
“Ser
exato é encaixar a exatidão nas coisas”, alerta Gonçalo. A
exatidão é uma caixa que lacra a Verdade. Os obedientes e os
crentes pensam que o mundo é perfeito, a imperfeição está em nós.
Armado com sua artilharia de métodos, o cientista – nos alerta
Gonçalo – cria dificuldades e conceitos para chegar ao que já
conhece. Nada repugna mais aos sistemas detectores da Verdade do que
a presença da Mentira. Só a Verdade, nada mais que a Verdade,
pregam os cientistas, e o mundo que se dane.
Não
é por outro motivo, diz Gonçalo, que a ciência está sempre
atrasada em relação ao Desejo. “É como se os cavalos fossem o
Desejo e a carroça puxada por eles a ciência”, compara. Se os
cavalos se separam da carroça, ganham velocidade, mas se tornam
inúteis. Mas o pior sucede à carroça: “Se os cavalos se separam
dela, ela não mais se moverá”. Interessado em manter o controle
da carruagem, o cientista exerce uma coação feroz sobre as coisas.
A ciência “embeleza” a vida, isto é, lhe empresta coerência e
limpidez. “Queres trazer-te o novo?”, Gonçalo pergunta. Ele
mesmo responde: “Sai de ti”. O novo está sempre deslocado em
relação a nosso olhar. Está sempre fora de nós.
Chegar
sempre aos mesmos resultados – acreditar que a Verdade está nas
provas que se repetem, como faz a ciência, não é pensar, é
imitar. A rigor, os instrumentos científicos não fornecem respostas
ao desconhecido. O que fazem? Enquadram o desconhecido no conhecido
e, assim, acreditam dominá-lo. O investigador vê o que seus olhos
querem ver. “Isto é: vês os teus olhos.” Quando a ciência não
passa de uma luta com os objetos do mundo. Não se trata, portanto,
de Verdade ou de Mentira, mas de forças ou de fraquezas, Gonçalo
aponta. “O evidente é aquilo que é mais forte que nós.”
A
prova é uma questão de poder (de força), e não de Verdade. Se
fosse sábio, o investigador observaria as coisas de banda, e não de
frente. “Observar a realidade pelo canto do olho, isto é: pensar
ligeiramente de lado.” Isso é a criatividade, Gonçalo sugere. Seu
livro é uma reunião de notas rápidas, trepidantes, que nos
atravessam como choques. Por isso ele é um escritor genial: não
escreve para tranquilizar, mas para acordar. Por isso faz literatura
mesmo quando parece fazer filosofia: não abdica do singular.
Mantém-se, firme, na esfera do “1” – título, aliás, de um de
seus livros de poemas (Bertrand Brasil, 2005). Se o leitor é alguém
que dorme, a literatura não é um cobertor (a ciência), mas um
despertador (a arte).
Breves
notas sobre ciência é um incomum, mas ardente, exercício de
topografia. Como um topógrafo sutil, Gonçalo acomoda as coisas lado
a lado, enfileira os conceitos e os pensamentos, e os confronta. A
ciência parte do princípio de que as coisas são estáveis e
“verdadeiras”. Contudo, alerta Gonçalo, as coisas não são
verdadeiras, as coisas mentem! “Um átomo não poderá mentir? Uma
substância química não poderá mentir? Uma pedra?”, se pergunta.
Toda a ciência parte do pressuposto de que a realidade não mente;
chegar à Verdade seria trazer à luz a realidade imóvel. Alerta
Gonçalo: esse é um pressuposto não comprovado. Aí está a
literatura, que, com seus rasgões e suas guinadas, desmascara esse
real de gelo.
Afirmar
a topografia é, pois, afirmar a inconstância da visão. “Há algo
de místico na convicção de que a palavra descreve melhor a verdade
do mundo”, diz Gonçalo. Porque repudia o singular e aprecia a
repetição, a ciência prefere as palavras que, como ovos, se
acomodam com serenidade em uma caixa. A ciência foge do desenho, que
achata e quebra os ovos, expondo o que não se pode nomear. A ciência
só se aproxima do ilógico para projetar leis que o acorrentem. Só
a literatura persiste no ilógico e faz uma aposta corajosa no Um.
A
ciência considera o singular (o Um) só um pormenor, mas o singular
é a prova da inconstância (da mentira) das coisas. Muitos
cientistas trabalham armados de mapas (modelos); mas se esquecem de
confirmar se representam, de fato, o lugar em que estão perdidos. “A
ciência parte sempre do princípio de que tem o mapa certo.” Tudo
não passaria de uma questão de empenho. Por isso ela não suporta a
metáfora, instrumento da linguagem ilógica que, em vez de acomodar,
empurra. A ciência prefere os instrumentos sólidos, como o martelo,
que bate sempre as mesmas coisas.
Contra
a figura asséptica do cientista, surge o escritor, sem método e sem
princípios, apostando tudo em seu olhar torto. A Verdade, nos diz
Gonçalo, é sempre o resultado de um método; o resto é Mentira.
Ocorre que, se mudamos o método, a Verdade também muda. O que leva
à conclusão inquietante de que, no absoluto, nada é verdadeiro. Só
a poesia suporta essa verdade feita de estilhaços. Resume Gonçalo:
“Funcionar é repetir um raciocínio. Eis o martelo. Investigar é
não repetir um raciocínio. Eis o difícil”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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