terça-feira, 26 de março de 2019

O direito à felicidade (trecho II)

Existem, é claro, tendências opostas e muito mais encorajadoras. O drástico decréscimo na mortalidade infantil certamente acarretou um aumento da felicidade humana e em parte serviu de compensação por todo o estresse da vida moderna. Ainda assim, apesar de sermos um pouco mais felizes do que nossos ancestrais, o aumento de nosso bem-estar é muito menor do que o esperado. Na Idade da Pedra o ser humano médio tinha à sua disposição 4 mil calorias de energia por dia. Além de alimento, esse número incluía a energia investida na preparação de ferramentas, vestimentas, arte e fogueiras. Hoje um americano médio usa 228 mil calorias diárias de energia para alimentar não apenas seu estômago, mas também seu carro, seu computador, sua geladeira e sua televisão. O americano médio usa, portanto, sessenta vezes mais energia do que um caçador-coletor da Idade da Pedra. O americano médio é sessenta vezes mais feliz? Não há dúvida de que podemos ser bem céticos quanto a essas visões cor-de-rosa.
E mesmo que tenhamos superado muitas agruras do passado, alcançar uma felicidade afirmativa pode ser muito mais difícil do que abolir completamente o sofrimento. Um pedaço de pão era suficiente para alegrar um camponês medieval faminto. Como alegrar um engenheiro entediado, muito bem remunerado e obeso? A segunda metade do século XX foi uma era de ouro para os Estados Unidos. A vitória na Segunda Guerra Mundial, seguida de uma vitória ainda mais decisiva na Guerra-Fria, transformou-os na maior superpotência global. Entre 1950 e 2000, o PIB americano cresceu de US $ 2 trilhões para US $ 12 trilhões. A renda real per capita dobrou. A então recém-inventada pílula anticoncepcional tornou o sexo mais livre do que nunca. Mulheres, homossexuais, afro-americanos e outras minorias finalmente ganharam uma fatia maior da torta americana. Carros baratos, geladeiras, aparelhos de ar-condicionado, aspiradores de pó, lavadoras de louça, máquinas de lavar, telefones, televisões e computadores transformaram a vida cotidiana e a fizeram ficar quase irreconhecível. Mas estudos revelam que os níveis de percepção subjetiva de bem-estar dos americanos permaneceram mais ou menos os mesmos da década de 1950.
No Japão, a renda real média multiplicou-se por cinco entre 1958 e 1987, num dos mais rápidos booms econômicos da história. Essa avalanche de riqueza, aliada a numerosas mudanças positivas e negativas no estilo de vida e nas relações sociais dos japoneses, surpreendentemente teve reduzido impacto nos níveis de bem-estar subjetivo da população. Os japoneses na década de 1990 estavam tão satisfeitos — ou insatisfeitos — quanto estavam na década de 1950.
A impressão que se tem é de que nossa felicidade vai de encontro a um misterioso teto de vidro que não permite seu crescimento, a despeito das conquistas sem precedentes que foram alcançadas. Mesmo que provêssemos alimento grátis para todos, curássemos todas as doenças e assegurássemos a paz mundial, tudo isso não iria necessariamente fazer em pedaços o teto de vidro. Alcançar a verdadeira felicidade não vai ser muito mais fácil do que vencer a velhice e a morte.
O teto de vidro da felicidade é mantido no lugar por dois pilares sólidos, um psicológico e outro biológico. No nível psicológico, a felicidade depende mais de expectativas do que de condições objetivas. Não ficamos satisfeitos com uma existência pacífica e próspera. Em vez disso, nosso contentamento resulta de a realidade corresponder a nossas expectativas. A má notícia é que, à medida que as condições melhoram, nossas expectativas inflam. Melhoras dramáticas nas condições, como as que a humanidade vem experimentando em décadas recentes, se traduzem em expectativas maiores e não em mais contentamento. Se não fizermos alguma coisa quanto a isso, ficaremos insatisfeitos também com nossas conquistas futuras.
No nível biológico, tanto nossas expectativas como nossa felicidade são determinadas mais pela bioquímica do que pela situação econômica, social ou política. Segundo Epicuro, ficamos felizes quando desfrutamos de sensações agradáveis e nos sentimos livres das desagradáveis. Jeremy Bentham, de modo semelhante, sustentava que a natureza deu o domínio sobre o homem a dois senhores — o prazer e a dor — e eles sozinhos determinam tudo o que fazemos, dizemos e pensamos. O sucessor de Bentham, John Stuart Mill, explicou que a felicidade nada é senão o prazer e a libertação da dor e que, para além de um e de outro, não há nem o bem nem o mal. Aquele que buscar deduzir o bem e o mal de algo diferente (como a palavra de Deus ou o interesse nacional) estará tentando enganá-lo, e talvez enganando a si mesmo também.
Nos tempos de Epicuro, tal discurso seria uma blasfêmia. Nos tempos de Bentham e de Mill, era subversão radical. Mas, no início do século XXI, é ortodoxia científica. Segundo as ciências biológicas, a felicidade e o sofrimento não são mais do que sensações corporais balanceadas de maneiras diferentes. Nunca reagimos a acontecimentos no mundo exterior, somente a sensações que ocorrem em nosso corpo. Ninguém sofre porque perdeu o emprego, porque se divorciou ou porque o governo deu início a uma guerra. O que faz as pessoas infelizes são as sensações desagradáveis verificadas no próprio corpo. Perder o emprego certamente pode desencadear uma depressão, que é em si um tipo de sensação corporal desagradável. São vários os motivos que podem nos fazer ficar com raiva, porém a raiva nunca é uma abstração. Ela sempre é sentida como uma sensação de calor e tensão no corpo, que é o que a torna tão irritante. Não é à toa que dizemos que estamos “ardendo” de raiva.
Inversamente, de acordo com a ciência ninguém fica feliz ao conseguir uma promoção, ganhar na loteria ou encontrar o amor verdadeiro. As pessoas ficam felizes com uma coisa, e uma coisa apenas — sensações de prazer no corpo. Imagine que você é Mario Götze, meio-campo da seleção alemã na final da Copa do Mundo de Futebol de 2014 contra a Argentina; já se passaram 113 minutos e a partida segue sem gols. Faltam apenas sete minutos para a temida decisão por pênaltis. Cerca de 75 mil fãs excitados enchem o estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, e incontáveis milhões assistem ao jogo pela televisão no mundo inteiro. Você está a poucos metros do gol argentino quando André Schürrle faz um magnífico passe em sua direção. Você ajeita a bola no peito, ela rola até seu pé e você a chuta de voleio, e a vê passar voando pelo goleiro argentino e se acomodar no interior da rede. Goooooooool! O estádio entra em erupção, como um vulcão. Dezenas de milhares de pessoas gritam como loucas, seus companheiros correm para abraçá-lo e beijá-lo, milhões de pessoas em Berlim e em Munique irrompem em lágrimas na frente da televisão. Você está em êxtase, mas não por causa da bola na rede argentina ou das comemorações que começam nos apinhados Biergartens da Bavária. Você na realidade está reagindo a uma tempestade de sensações internas. Arrepios percorrem sua espinha de cima a baixo, ondas de eletricidade varrem seu corpo, e a sensação é de que você está se dissolvendo em milhões de bolas de energia em plena explosão.
Você não precisa marcar o gol da vitória na final da Copa do Mundo de Futebol para ser tomado por essas sensações. Se você acabou de ouvir que recebeu uma promoção inesperada no trabalho e começa a dar pulos de alegria, está reagindo ao mesmo tipo de sensação. As partes mais profundas de sua mente nada sabem de futebol ou de empregos. Elas conhecem apenas sensações. Se você recebeu uma promoção, mas por algum motivo não sente nenhuma sensação prazerosa, não ficará satisfeito. O oposto também é verdadeiro. Se você acabou de ser despedido (ou perdeu um jogo de futebol decisivo), mas está experimentando sensações muito prazerosas (talvez por ter tomado algum comprimido), poderá assim mesmo sentir que está no topo do mundo.
A má notícia é que sensações agradáveis passam rapidamente e mais cedo ou mais tarde tornam-se desagradáveis. Nem mesmo marcar o gol da vitória da final da Copa do Mundo de Futebol garante felicidade eterna. Na verdade, a partir daí tudo pode seguir ladeira abaixo. De modo similar, se no ano passado eu ganhei uma promoção inesperada no trabalho, posso até ainda estar ocupando a nova posição, mas as agradáveis sensações que experimentei ao ouvir a notícia desapareceram em poucas horas. Se quiser sentir novamente aquelas sensações maravilhosas, terei de conseguir outra promoção. E depois outra. E se não a conseguir, posso ficar ainda mais amargo e enraivecido do que estaria se tivesse continuado a ser um humilde carregador de piano.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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