Que
distração: em abril de 1989 publiquei meu primeiro romance, cujo
esboço inicial foi feito em dezembro de 1980 e nos primeiros meses
de 1981. O relato seria um conto, mas foi crescendo com o calor da
viagem sinuosa e atropelada da escrita.
Às
vezes, quando essa viagem é interrompida, você diz a si mesmo que é
uma pausa provisória, mas há textos que ficam no meio do caminho e
são abandonados ou esquecidos: assuntos que não dão certo, temas
ou questões que não se desdobram e morrem nas primeiras páginas.
Na verdade não é o tema que morre, e sim a forma, a arquitetura, o
projeto que não vinga. Mas aquele conto expandiu-se, uma voz puxava
outra, vozes tão intrometidas que nem sei de onde vinham. Quando me
dei conta, já tinha escrito mais de cem páginas no quarto
parisiense que eu havia alugado por uma bagatela, um quartinho pouco
arejado cuja única vantagem era situar-se no Marais.
O
mais belo bairro de Paris compensava o espaço exíguo do quarto de
empregada, com uma janela inclinada que dava para o pátio interno do
edifício. Mesmo no inverno, três crianças brincavam ao redor de
uma fonte no centro do pátio. Isso me bastava e até me contentava.
Mas tinha de suportar meus senhorios, um casal francês da província,
talvez de Brest. O marido era discreto, lacônico, deixava a mulher
falar e agir por ele.
Lembro
que no terceiro mês a mulher decidiu que a prateleira mais baixa da
geladeira seria a minha, as outras seriam dela e do marido; a divisão
se estendia à porta, às gavetas e ao congelador, de modo que a
garrafa de leite, a carne, os legumes e os ovos do casal proprietário
ficavam separados. Um dia decidi desocupar a geladeira e tornar-me
independente.
Talvez
por se sentir culpada, a mulher de Brest bateu na porta do meu quarto
numa noite de inverno e perguntou se eu queria tomar o resto da sopa
de cenoura. Se a minha querida avó escutasse essa oferta tão
generosa, não sei o que diria. Quer dizer, sei, mas é melhor não
mencionar. Eu disse um “Non, merci, madame” com uma voz
cavernosa, fechei a porta e continuei a escrever, pensando que nunca
ia terminar aquele texto, pensando no poema “O lutador”, de
Carlos Drummond de Andrade: lutar com as palavras é a luta mais vã.
“O
lutador” — uma das melhores definições do trabalho com a
linguagem — evoca o esforço do narrador na batalha com as palavras
e termina com a certeza de que “o inútil duelo jamais se resolve”.
Um
poema deve ser perfeito, ou quase perfeito, mas um romance é, com
frequência, uma obra imperfeita, um calhamaço com vários deslizes
ou momentos de frouxidão. Nessa batalha de fôlego longo, cada
página é uma batalha, uma tentativa de pôr de pé alguns
personagens, de ir até o fundo de uma questão, de transferir aos
personagens todo o ódio, paixão, frustração e ressentimento do
narrador.
No
fim, quando o livro é publicado, os personagens vivem nas páginas
do romance e passam a existir na imaginação do leitor; mas o
narrador está seco, exaurido na noite sem lua, sem sopa de cenoura,
apenas com uma baguete adormecida e fatias murchas de presunto
espalhadas sobre a escrivaninha.
De
manhã uma mulher ou um casal te olha como se você fosse um demente
ou um inútil. Demente, ainda não. Inútil, talvez: a utilidade e o
afã missionário fazem mal à literatura, que não deve explicar nem
convencer, apenas insinuar e interrogar.
Enquanto
escrevia meu primeiro romance, eu e uma amiga traduzíamos ensaios
sobre o crescimento da economia sul-americana, o milagre das
ditaduras do Cone Sul. Essas traduções tediosas garantiam pão,
queijo e vinho, e também livros de bolso, um bom filme e o aluguel
do quarto, e assim podia recusar sopa morna de cenoura nas noites
geladas de janeiro. Sem sopa, mas com Marcel Schwob, Baudelaire e
Stendhal, anotando versos e frases que depois eu escrevia nas paredes
do quarto.
Tantos
anos depois, Paris parece tão distante, e agora surge sem nostalgia
na minha memória. Nunca mais vi o casal de Brest. Eu e minha amiga
perdemos o fio da conversa e os laços de amizade se afrouxaram. A
distância é essa hidra terrível que nos afasta das pessoas, e só
uma década depois — em 1991 ou 92 — eu tive notícias da minha
amiga e do Marais, onde ela mora. O bairro, que era calmo — mas não
bucólico —, tornou-se chique e presunçoso, sem os artesãos,
chapeleiros e pequenos atacadistas de acessórios de couro, sem Les
Halles, tão evocado na prosa francesa do século XIX.
Nada
disso restou? Mas alguma coisa sempre sobrevive na memória.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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