O
telefone chamou e deu a notícia: você ficará diferente de todos
nós. Nós, que continuamos automáticos e seguros a andar pela
planície, repetindo as mesmas rotinas do dia: o café da manhã, o
jornal, o carro precisa ser lavado, o que vamos ter para o almoço?,
a correspondência, a lamentação sobre a crise econômica, que
faremos no próximo fim de semana? Mas de repente tudo isso cessou
para você, pois você está pendurado sobre o abismo, preso por um
tênue fio, contemplando a grande escuridão. Só nos resta olhar e
esperar. E a alma se encheu de uma imensa tristeza ante a
possibilidade de um adeus. Mas eu não quero lhe dizer adeus, pois a
sua presença faz parte da nossa alegria. E, no entanto, é isto que
nós somos, sem que tenhamos coragem para dizê-lo: um adeus. É por
isso que precisamos dos poetas. Pois eles são aqueles que tecem as
suas palavras em volta do frágil fio que nos amarra sobre o abismo.
Eles sabem que nos nossos corpos mora um adeus. Como dizia a Cecília
Meireles: “Tudo em ti era uma ausência que se demorava: uma
despedida pronta a cumprir-se”.
De
repente, sem nenhum anúncio.
De
repente do riso fez-se o pranto
Silencioso
e branco como a bruma [...]
De
repente da calma fez-se o vento [...]
De
repente, não mais que de repente
Fez-se
[...] de sozinho o que se fez contente
Fez-se
do amigo próximo o distante [...]
De
repente, não mais que de repente
(Vinicius
de Moraes).
Mas
não é absurdo? Este “de repente”? Já disse que não quero que
ela venha súbita. O que espanta a todos os que me ouvem, que dizem
que o melhor é que ela venha sem avisar e nos apague bem no meio de
uma risada ou de um ritual de amor. Acho mesmo é que eles têm medo
dos pensamentos que pensariam no tempo da espera. Pela vida inteira
se recusaram a conversar com a Morte e se sentiriam enlouquecidos com
as perguntas da suprema filósofa. Melhor recebê-la como um golpe
final sem palavras, que faz cessar todos os pensamentos. Tive um
amigo, Alexander Schmemann, teólogo místico russo que, informado
pelo seu médico de que no seu cérebro havia um tumor inoperável e
de que só lhe restavam seis meses de vida, disse: “É bom saber
disso. Tenho tempo suficiente para celebrar a liturgia da morte.” E
desde esse momento se dedicou a fazer exatamente aquilo que sempre
desejara fazer, não permitindo que coisa alguma e nem mesmo os mais
bem-intencionados consoladores (a praga suprema) o interrompessem:
ler os livros que nunca lera, olhar a natureza com olhos que nunca
tivera, ouvir suas músicas preferidas com ouvidos que acabavam de
nascer. Eu gostaria que uma graça semelhante me fosse concedida:
poder preparar o fim da minha vida como um compositor termina a sua
sonata – para deixá-la perfeita e completa, como herança àqueles
a quem amo, obra de arte acabada e bela.
Mas
a vida não acontece assim. É como naquele terrível poema de
Vallejo:
Há
golpes na vida, tão fortes... Não sei!
[...]
São poucos, mas são... Abrem sulcos escuros
no
rosto mais indômito e no dorso mais forte.
[...]
E o homem... Pobre... pobre! [...]
Volta
os olhos enlouquecidos, e tudo o que foi vivido
se
empoça, como charco de culpa, no olhar.
Há
golpes na vida, tão fortes... Nem sei!
Ainda
há poucos dias, no meio de risos, cerveja gelada e picanha, éramos
donos do mundo, percorríamos mapas, imaginávamos os lugares que
veríamos e antegozávamos uma felicidade futura. Mas, de repente,
não mais que de repente, o duro golpe na vida, e tudo se fez espuma.
Estranho.
Acho que estou ficando acostumado com o martelo e com a bigorna do
diabo. Não me assustei. Estava escrevendo uma crônica para o jornal
quando o telefone deu a notícia.
Meus
sentimentos fugiram do texto, e tudo o que eu havia escrito me
pareceu tolo e sem sentido. Até aquele momento escrevia para muitos
anônimos, cujos rostos eu nunca vi, cujas dores eu nunca senti. De
repente os muitos desapareceram da minha frente, e o seu era o único
rosto que eu via. Queria estar ao seu lado, segurar a sua mão. Mas
você está longe – e fui então para a minha solidão. Consertei
uma cerca. Tinha um buraco por onde a cachorra escapulia. Cuidei da
horta abandonada, onde umas plantas teimavam em viver. Limpei o
aquário. Preguei uns quadros da parede. “Há que se cuidar da
vida...” Pensei neste absurdo – mas tem que ser assim – que
quando morrermos a vida continuará. Ela tem de continuar, pois
continua a ser bela, a despeito de tudo.
Em
outros tempos eu tinha medo da morte. E até disse isso numa pequena
autobiografia que apareceu na última capa de um dos meus livros, o
que provocou protestos indignados de pessoas religiosas que acham que
a morte é melhor que a vida. Para elas, eu penso, cada morte é
sempre um motivo de júbilo. “Está muito melhor agora”, dizem os
tolos consoladores profissionais, nos velórios. O que me deixa
perplexo, porque então as lágrimas não têm explicação.
Deveriam, mesmo, é estar dando uma festa.
Meus
sentimentos mudaram. A morte não mais me causa medo. O que ela me dá
é uma imensa tristeza. Muitos, muitos anos atrás, quando minha
filha Raquel não tinha mais que três anos – eu ainda estava
dormindo –, ela me acordou com uma pergunta que eu nunca ouvira,
uma pergunta de tal densidade poético-metafísica que tive a
impressão de estar ouvindo uma voz vinda de séculos de sabedoria e
não de uma menininha que começava a viver – é certo que coisa
semelhante eu nunca haveria de ouvir da boca de um adulto: “Papai,
quando você morrer, você vai sentir saudades?” Ante o meu espanto
sem palavras, ela acrescentou: “Mas não chore não. Eu vou te
abraçar...” Ela entendera que a dor da morte não é a dor do
medo. É a dor da saudade. Imaginar a ausência das coisas que
amamos: a cerca para ser consertada, a horta para ser cuidada, o
aquário para ser limpo, os quadros a serem pendurados... Cecília
Meireles escreveu uma “Elegia” para a sua avó morta, que é,
talvez, a mais bela canção de saudade que eu conheço. Ela fala
sobre as cigarras que cantam e os trovões que caminham por cima da
terra, a chuva que corre pelas montanhas, as noites claras, o canto
dos grilos que faz palpitar o cheiro molhado do chão, as frutas
maduras, o arrulho dos pássaros, os cravos de perfume profundo e
obscuro, a areia branca e seca junto ao mar lampejante, as nuvens
brancas, o desenho das pombas voantes, o destino dos trens pelas
montanhas, o brilho tênue de cada estrela, imagens do mundo que
amamos, com o mar, seus peixes e barcas, os pomares e seus cestos
derramados de frutos, os jardins de malva e trevo, com seus perfumes
brancos e vermelhos.
Ah!
A vida é bela! O mundo é belo! É por isso que toda despedida é
triste. E é isto que eu sinto: que a morte é uma saudade sem
remédio.
Desta
distância onde estou quero lhe dizer isto: você faz parte da
maravilha do mundo. É preciso que você fique, para que a saudade
seja, pelo menos, adiada. Pois isto é o máximo que podemos fazer:
adiar a saudade. Mais cedo ou mais tarde “se romperá o fio de
prata, e se despedaçará o copo de ouro, e se quebrará o cântaro
junto à fonte” (Eclesiastes 12,6).
E,
quando isso acontecer, só nos restará fazer a mais inútil de todas
as coisas: chorar...
Até
lá, celebraremos a vida. Por favor, não vá agora!
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente