Foto: Regina Arrais Vasconcelos
Os
big-shots da empresa estavam reunidos em conferência. Assunto
importante, desses que exigem atenção, objetividade. O presidente
recomendara:
— Não
estamos para ninguém. Essa porta fica trancada. Avisem a telefonista
que não atenda a nenhum chamado. Nem do papa.
Começou-se
por dividir o assunto em partes, como quem divide um leitão. Cada
parte era examinada pelo direito e pelo avesso, avaliada,
esquadrinhada, radiografada. Cartesianamente.
— Você
aí, quer fazer o favor de parar com essa caricatura?
O
presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi advertido pelo
vice:
— E
você, meu caro, podia deixar de bater com esse lápis, toc, toc,
toc, na mesa?
Estavam
tensos, à véspera de uma decisão que envolvia grandes interesses.
Alguém bateu à porta.
— Não
respeitam! Não respeitam o trabalho da gente! Isso não é país!
Seja
ou não seja país, quando batem à porta a solução é abrir, para
evitar novas batidas, ou, mesmo, que a porta venha abaixo. Pois
ninguém deixa de bater, se sabe que tem gente do outro lado.
O
diretor-secretário abriu, de óculos fuzilantes. O chefe da
portaria, cheio de dedos, balbuciou:
— Essa
senhora… essa senhora aí. Veio pedir uma coisa.
O
primeiro impulso do diretor-secretário foi demitir imediatamente o
chefe da portaria, servidor antigo, conceituadíssimo, mas viu ao
mesmo tempo diante de si a imagem consternada do homem e a lei
trabalhista: duas razões de clemência. Pensou ainda em mandar a
senhora àquele lugar de Roberto Carlos ou a outro pior. Dominou-se:
ela ostentava no rosto aquela marca de tristeza que amolece até
diretoria.
— A
senhora me desculpe, mas estou tão ocupado.
— Eu
sei, eu é que peço desculpas. Estou perturbando, mas não tinha
outro jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício em frente. Meu
canário…
— Fugiu
e entrou aqui no escritório? Eu mando pegar. Fique tranquila.
— Antes
tivesse fugido. Morreu.
— E
daí? — Viveu quinze anos conosco. Era uma graça… Pousava no
dedo…
— E
daí, minha senhora?
— O
senhor vai estranhar meu pedido… Eu estava sem coragem de vir aqui.
Por favor, não ria de mim.
— Não
estou rindo. Pode falar.
— Os
senhores têm um jardim tão lindo na cobertura. Da minha janela,
fico apreciando. Então agora está uma coisa. Posso fazer um pedido?
— Pode.
— Eu
queria enterrar o meu canário no seu jardim. Lá é que é lugar bom
para ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele terrenão ao lado
do edifício, com três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é
grande demais para um passarinho, falta intimidade. Se o senhor
consente, eu mesma abro a covinha. Não dou o menor trabalho, não
sujo nada.
O
diretor-secretário esqueceu que tinha pressa, que havia um problema
sério a discutir. Que problema? Naquele momento, o importante, o
real era um canarinho morto, e amado.
— Pois
não, minha senhora, disponha do jardim. Eu mesmo vou levar a senhora
lá em cima, para escolher o lugar.
Subiram,
escolheram o canteiro mais apropriado, onde bate sol pela manhã, e à
tarde as plantas balançam levemente, à brisa do mar.
— Não
é abuso eu fazer mais um pedido? Queria que o jardineiro não
revolvesse a terra neste ponto, durante três meses. O tempo de os
ossinhos dele se desfazerem… Volto daqui a meia hora, para o
enterro.
Meia
hora depois, voltava com uma caixinha forrada de veludo azul-claro, e
a reunião dos big-shots, que ainda durava, foi suspensa para
que todos, com o presidente muito compenetrado, assistissem ao
sepultamento.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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