terça-feira, 31 de outubro de 2017

O jardim em frente

Foto: Regina Arrais Vasconcelos

Os big-shots da empresa estavam reunidos em conferência. Assunto importante, desses que exigem atenção, objetividade. O presidente recomendara:
Não estamos para ninguém. Essa porta fica trancada. Avisem a telefonista que não atenda a nenhum chamado. Nem do papa.
Começou-se por dividir o assunto em partes, como quem divide um leitão. Cada parte era examinada pelo direito e pelo avesso, avaliada, esquadrinhada, radiografada. Cartesianamente.
Você aí, quer fazer o favor de parar com essa caricatura?
O presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi advertido pelo vice:
E você, meu caro, podia deixar de bater com esse lápis, toc, toc, toc, na mesa?
Estavam tensos, à véspera de uma decisão que envolvia grandes interesses. Alguém bateu à porta.
Não respeitam! Não respeitam o trabalho da gente! Isso não é país!
Seja ou não seja país, quando batem à porta a solução é abrir, para evitar novas batidas, ou, mesmo, que a porta venha abaixo. Pois ninguém deixa de bater, se sabe que tem gente do outro lado.
O diretor-secretário abriu, de óculos fuzilantes. O chefe da portaria, cheio de dedos, balbuciou:
Essa senhora… essa senhora aí. Veio pedir uma coisa.
O primeiro impulso do diretor-secretário foi demitir imediatamente o chefe da portaria, servidor antigo, conceituadíssimo, mas viu ao mesmo tempo diante de si a imagem consternada do homem e a lei trabalhista: duas razões de clemência. Pensou ainda em mandar a senhora àquele lugar de Roberto Carlos ou a outro pior. Dominou-se: ela ostentava no rosto aquela marca de tristeza que amolece até diretoria.
A senhora me desculpe, mas estou tão ocupado.
Eu sei, eu é que peço desculpas. Estou perturbando, mas não tinha outro jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício em frente. Meu canário…
Fugiu e entrou aqui no escritório? Eu mando pegar. Fique tranquila.
Antes tivesse fugido. Morreu.
E daí? — Viveu quinze anos conosco. Era uma graça… Pousava no dedo…
E daí, minha senhora?
O senhor vai estranhar meu pedido… Eu estava sem coragem de vir aqui. Por favor, não ria de mim.
Não estou rindo. Pode falar.
Os senhores têm um jardim tão lindo na cobertura. Da minha janela, fico apreciando. Então agora está uma coisa. Posso fazer um pedido?
Pode.
Eu queria enterrar o meu canário no seu jardim. Lá é que é lugar bom para ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele terrenão ao lado do edifício, com três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é grande demais para um passarinho, falta intimidade. Se o senhor consente, eu mesma abro a covinha. Não dou o menor trabalho, não sujo nada.
O diretor-secretário esqueceu que tinha pressa, que havia um problema sério a discutir. Que problema? Naquele momento, o importante, o real era um canarinho morto, e amado.
Pois não, minha senhora, disponha do jardim. Eu mesmo vou levar a senhora lá em cima, para escolher o lugar.
Subiram, escolheram o canteiro mais apropriado, onde bate sol pela manhã, e à tarde as plantas balançam levemente, à brisa do mar.
Não é abuso eu fazer mais um pedido? Queria que o jardineiro não revolvesse a terra neste ponto, durante três meses. O tempo de os ossinhos dele se desfazerem… Volto daqui a meia hora, para o enterro.
Meia hora depois, voltava com uma caixinha forrada de veludo azul-claro, e a reunião dos big-shots, que ainda durava, foi suspensa para que todos, com o presidente muito compenetrado, assistissem ao sepultamento.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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