Foi
em 2011, entrevistando o escritor israelense Amós Oz, que finalmente
compreendi o tamanho do erro de ver na língua um ponto cego do
pensamento — mais do que um equívoco típico da tradição
anti-intelectual brasileira, o sintoma de uma deficiência mais
grave. De uma falha cultural, quem sabe até cívica. Não creio que
esteja exagerando.
Estávamos
num salão vazio no segundo andar do belo hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, e Oz discorria com paixão sobre o idioma hebraico:
— É
um instrumento tremendo, ao mesmo tempo antigo e moderno. É cheio de
ecos da antiguidade, os salmos e profetas estão todos lá, e no
entanto é uma língua contemporânea. Deve-se ter muito cuidado com
esse instrumento maravilhoso, como quem toca órgão numa catedral.
A
princípio não entendi. Cuidado por quê? Qual era o perigo?
—
Conjurar ecos monstruosos — explicou
Oz. — Se você tocar sem querer certas cordas bíblicas, soará
grotesco, ridículo. Isso é ótimo para a paródia e a ironia, mas
você precisa saber o que está fazendo. É um campo minado.
O
pé-direito alto do salão em que nos encontrávamos parecia ilustrar
o elegante argumento. Me ocorreu então um pensamento que, embora
talvez óbvio, recebi como uma epifania: toda língua é uma caixa de
ressonância e um campo minado. Se um escritor de língua portuguesa
dificilmente evocará profetas, pode, de propósito ou não, conjurar
num único texto os fantasmas de Camões, Vieira, Machado, Bandeira,
Vinicius. Ou Didi Mocó.
É
a tradição literária acumulada e o peso que ela tem na cultura
geral, dependente do grau de letramento da sociedade, que vai
determinar no fim das contas a intensidade dessa reverberação — a
altura do pé-direito, por assim dizer, que tanto pode ser o de uma
catedral magnífica como o de uma capelinha de província.
Sentado
ao órgão, o escritor produz a música que seu talento lhe sopra,
mas também a que sua caixa de ressonância lhe permite produzir. Ao
mesmo tempo, ao contrário do que ocorre no mundo físico — o que
demarca o limite da metáfora oziana —, os acordes que saem dos
tubos têm o potencial de sustentar o teto, impedindo que ele desabe
e até, nos casos mais felizes, ajudando a elevá-lo.
Sérgio
Rodrigues, in Viva a língua brasileira!
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