terça-feira, 31 de outubro de 2017

História do outro

Você prepara o café da manhã, como todo dia.
Como todo dia, você leva seu filho até a escola.
Como todo dia.
E então, o vê. Na esquina, refletido numa poça, contra a calçada; e quase é atropelada por um caminhão.
Depois, você vai para o trabalho. E o vê novamente, na janela de um botequim medonho, e o vê na multidão que a boca do metrô devora e vomita.
Ao anoitecer, seu marido passa para buscá-la. E no caminho de casa vão os dois, calados, respirando o veneno do ar, quando você torna a vê-lo no turbilhão das ruas: esse corpo, essa cara que sem palavras pergunta e chama.
E desde então você o vê com os olhos abertos, em tudo que olha, e o vê com os olhos fechados, em tudo que pensa; e o toca com seus olhos.
Este homem vem de algum lugar que não é este lugar e de algum tempo que não é este tempo. Você, mãe de, mulher de, é a única que o vê, a única que pode vê-lo. Você já não tem mais fome de ninguém, fome de nada, mas cada vez que ele aparece e se desvanece você sente uma irremediável necessidade de rir e chorar os risos e os prantos que engoliu ao longo de tantos longos anos, risos perigosos, prantos proibidos, segredos escondi dos em quem sabe que cantos de seus cantos.
E quando chega a noite, enquanto seu marido dorme, você vira de costas e sonha que desperta.
Eduardo Galeano, in Mulheres

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