segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Antes que se rompa o fio

O telefone chamou e deu a notícia: você ficará diferente de todos nós. Nós, que continuamos automáticos e seguros a andar pela planície, repetindo as mesmas rotinas do dia: o café da manhã, o jornal, o carro precisa ser lavado, o que vamos ter para o almoço?, a correspondência, a lamentação sobre a crise econômica, que faremos no próximo fim de semana? Mas de repente tudo isso cessou para você, pois você está pendurado sobre o abismo, preso por um tênue fio, contemplando a grande escuridão. Só nos resta olhar e esperar. E a alma se encheu de uma imensa tristeza ante a possibilidade de um adeus. Mas eu não quero lhe dizer adeus, pois a sua presença faz parte da nossa alegria. E, no entanto, é isto que nós somos, sem que tenhamos coragem para dizê-lo: um adeus. É por isso que precisamos dos poetas. Pois eles são aqueles que tecem as suas palavras em volta do frágil fio que nos amarra sobre o abismo. Eles sabem que nos nossos corpos mora um adeus. Como dizia a Cecília Meireles: “Tudo em ti era uma ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se”.
De repente, sem nenhum anúncio.

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma [...]
De repente da calma fez-se o vento [...]
De repente, não mais que de repente
Fez-se [...] de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante [...]
De repente, não mais que de repente
(Vinicius de Moraes).

Mas não é absurdo? Este “de repente”? Já disse que não quero que ela venha súbita. O que espanta a todos os que me ouvem, que dizem que o melhor é que ela venha sem avisar e nos apague bem no meio de uma risada ou de um ritual de amor. Acho mesmo é que eles têm medo dos pensamentos que pensariam no tempo da espera. Pela vida inteira se recusaram a conversar com a Morte e se sentiriam enlouquecidos com as perguntas da suprema filósofa. Melhor recebê-la como um golpe final sem palavras, que faz cessar todos os pensamentos. Tive um amigo, Alexander Schmemann, teólogo místico russo que, informado pelo seu médico de que no seu cérebro havia um tumor inoperável e de que só lhe restavam seis meses de vida, disse: “É bom saber disso. Tenho tempo suficiente para celebrar a liturgia da morte.” E desde esse momento se dedicou a fazer exatamente aquilo que sempre desejara fazer, não permitindo que coisa alguma e nem mesmo os mais bem-intencionados consoladores (a praga suprema) o interrompessem: ler os livros que nunca lera, olhar a natureza com olhos que nunca tivera, ouvir suas músicas preferidas com ouvidos que acabavam de nascer. Eu gostaria que uma graça semelhante me fosse concedida: poder preparar o fim da minha vida como um compositor termina a sua sonata – para deixá-la perfeita e completa, como herança àqueles a quem amo, obra de arte acabada e bela.
Mas a vida não acontece assim. É como naquele terrível poema de Vallejo:

Há golpes na vida, tão fortes... Não sei!

[...] São poucos, mas são... Abrem sulcos escuros
no rosto mais indômito e no dorso mais forte.

[...] E o homem... Pobre... pobre! [...]
Volta os olhos enlouquecidos, e tudo o que foi vivido
se empoça, como charco de culpa, no olhar.
Há golpes na vida, tão fortes... Nem sei!

Ainda há poucos dias, no meio de risos, cerveja gelada e picanha, éramos donos do mundo, percorríamos mapas, imaginávamos os lugares que veríamos e antegozávamos uma felicidade futura. Mas, de repente, não mais que de repente, o duro golpe na vida, e tudo se fez espuma.
Estranho. Acho que estou ficando acostumado com o martelo e com a bigorna do diabo. Não me assustei. Estava escrevendo uma crônica para o jornal quando o telefone deu a notícia.
Meus sentimentos fugiram do texto, e tudo o que eu havia escrito me pareceu tolo e sem sentido. Até aquele momento escrevia para muitos anônimos, cujos rostos eu nunca vi, cujas dores eu nunca senti. De repente os muitos desapareceram da minha frente, e o seu era o único rosto que eu via. Queria estar ao seu lado, segurar a sua mão. Mas você está longe – e fui então para a minha solidão. Consertei uma cerca. Tinha um buraco por onde a cachorra escapulia. Cuidei da horta abandonada, onde umas plantas teimavam em viver. Limpei o aquário. Preguei uns quadros da parede. “Há que se cuidar da vida...” Pensei neste absurdo – mas tem que ser assim – que quando morrermos a vida continuará. Ela tem de continuar, pois continua a ser bela, a despeito de tudo.
Em outros tempos eu tinha medo da morte. E até disse isso numa pequena autobiografia que apareceu na última capa de um dos meus livros, o que provocou protestos indignados de pessoas religiosas que acham que a morte é melhor que a vida. Para elas, eu penso, cada morte é sempre um motivo de júbilo. “Está muito melhor agora”, dizem os tolos consoladores profissionais, nos velórios. O que me deixa perplexo, porque então as lágrimas não têm explicação. Deveriam, mesmo, é estar dando uma festa.
Meus sentimentos mudaram. A morte não mais me causa medo. O que ela me dá é uma imensa tristeza. Muitos, muitos anos atrás, quando minha filha Raquel não tinha mais que três anos – eu ainda estava dormindo –, ela me acordou com uma pergunta que eu nunca ouvira, uma pergunta de tal densidade poético-metafísica que tive a impressão de estar ouvindo uma voz vinda de séculos de sabedoria e não de uma menininha que começava a viver – é certo que coisa semelhante eu nunca haveria de ouvir da boca de um adulto: “Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?” Ante o meu espanto sem palavras, ela acrescentou: “Mas não chore não. Eu vou te abraçar...” Ela entendera que a dor da morte não é a dor do medo. É a dor da saudade. Imaginar a ausência das coisas que amamos: a cerca para ser consertada, a horta para ser cuidada, o aquário para ser limpo, os quadros a serem pendurados... Cecília Meireles escreveu uma “Elegia” para a sua avó morta, que é, talvez, a mais bela canção de saudade que eu conheço. Ela fala sobre as cigarras que cantam e os trovões que caminham por cima da terra, a chuva que corre pelas montanhas, as noites claras, o canto dos grilos que faz palpitar o cheiro molhado do chão, as frutas maduras, o arrulho dos pássaros, os cravos de perfume profundo e obscuro, a areia branca e seca junto ao mar lampejante, as nuvens brancas, o desenho das pombas voantes, o destino dos trens pelas montanhas, o brilho tênue de cada estrela, imagens do mundo que amamos, com o mar, seus peixes e barcas, os pomares e seus cestos derramados de frutos, os jardins de malva e trevo, com seus perfumes brancos e vermelhos.
Ah! A vida é bela! O mundo é belo! É por isso que toda despedida é triste. E é isto que eu sinto: que a morte é uma saudade sem remédio.
Desta distância onde estou quero lhe dizer isto: você faz parte da maravilha do mundo. É preciso que você fique, para que a saudade seja, pelo menos, adiada. Pois isto é o máximo que podemos fazer: adiar a saudade. Mais cedo ou mais tarde “se romperá o fio de prata, e se despedaçará o copo de ouro, e se quebrará o cântaro junto à fonte” (Eclesiastes 12,6).
E, quando isso acontecer, só nos restará fazer a mais inútil de todas as coisas: chorar...
Até lá, celebraremos a vida. Por favor, não vá agora!
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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