Zuzé
Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem por baixo da grande pahama
se erguia sua banca. Quando a manhã já estava em cima, Zuzé
Bisgate assentava os negócios. O que ele fazia? Alugava bisga,
vendia o cuspo dele. A saliva de Zuzé tinha propriedades de lustrar
sapatos.
— É
melhor que graxa, enquanto graxa nem há.
Além
disso, o preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saía a
trezentos, incluindo o lustro. Maneira como ele procedia era
seguinte: o cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do
cliente sobre uma fogueirita. O pé ficava ali apanhando uns fumos
para purificar dos insectos infecciosos. Zuzé Bisgate pegava no
sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada cuspidela contava
na conta. Passava o lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo.
Razão do pano, motivo de esfregar com o cotovelo:
— Dessa
maneira a minha saliva me volta no corpo. É que este não é um
cuspe qualquer, um produto industrioso desses. Não, isto é uma
saliva bastantíssima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos
foi um pequeno projeto de apoio ao sector informal. É que Deus
conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contatos lá em cima.
Os
clientes não se faziam enrugados. Às vezes até abichavam frente à
banca dele. Fosse da saliva, fosse da conversa que ele lustrava.
Verdade era que o negócio de Zuzé corria em bom caudal.
Quem
não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. Não se
pode beijar aquela boca engraxadora dele, se lamentava. Prefiro
beijar uma bota velha, concluía. Ou lamber uma caixa de graxa.
Armantinha
sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de
beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo,
água fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto
sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu
sonho se fabricava nos recônditos.
Avisaram
o marido. Armantinha estava sonhando longe de mais. O homem respondeu
em variações. Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois,
minha boca cheira a coisa falecida. Quem se aflije com matéria
morta? Só os da cidade. Nós, daqui, sabemos bem: é do podre que a
terra se alimenta.
Acontece
que Zuzé Bisgate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões.
Tudo servia de líquido, Zuzé destilava até pedra. De toda a
substância se pode espremer um alcoolzinho, dizia. Mais e mais ele
desleixava a caixa de cuspos e lustros. Até que os clientes
reclamaram: a saliva de Zuzé está ganhando ácidos, aquilo é bom é
para de entupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se
evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.
Até
Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele lhe fez
murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral.
Pouco a pouco Zuzé perdeu toda a clientela e o negócio das salivas
fechou.
Se
decidiu então a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a máxima: a
alma é o segredo de um negócio. Alma, era isso que se necessitava.
E assim ele imaginou um outro negócio. E agora quem o vê, nos
actuais dias, constata a banca com sua nova aparência. E Zuzé mais
seu novo posto. Seu labor é um quase nada, coisa para inglês não
ver.
Ali,
na fachada, arregaça as calças, com cuidado para não as desvincar.
Sempre com desvelo de burocrata, desembrulha um volume retirado das
entranhas de sua banca: uma gaiola forrada a rede fina. Dentro voam
moscas. Pois é o que ele vende: moscardos. Matéria viva e mais que
viva — vital para o mortal cidadão. Pois, diz o Bisgate, cada um
deve tratar as moscas que, depois de mortos, nos visitarão o túmulo.
— São
os nossos últimos acompanhantes...
A
pessoa passa por ali, se debruça sobre o vendedor e escolhem as
voadoras bastas, as mais coloridas que engalanarão o funeral:
— Esta
há-de ficar mesmo bem na sua cerimônia.
Ele
convida o hesitante cliente a ir à banca ao lado, a banca da Dona
Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.
— Lavar
as moscas?
— Sim,
é lavagem a seco.
Armantinha
cada vez mais se distancia daquela loucura. O marido se apronta é
para grandes descansaços.
— Ai
nosso Senhor Jesus Cristão! Você, homem, você vende alguma coisa?
— Faça
as contas, mulher.
— Que
contas? Que contas se pode fazer sem números?
— Ainda
hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou à
aldeia.
— Qual
que chegou?
— Esse
gajo que montou banca lá nas traseiras do bazar. Uma banca que até
mete as graças, chama-se Pinta-Boca.
— O
homem se chama Pinta-Boca?
— Qual
o homem! A banca se chama.
Armantinha
se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquidesfaz. Sua boca
pedia pintura como a cabeça lhe requeria sonho. E, logo nessa manhã,
ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se
declina:
— Sou
Julbernardo, venho de lá, da cidade.
Banca
Pinta-Boca. O nome faz jus. Na prateleira ele tem uma meia dúzia de
bâtons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os
lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as
brancas, vermelhudas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.
Armantinha,
já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma
coloradela.
— Aqui,
se paga em adiantado.
Ela
retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas
à procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia
cruzar os braços.
— Está
aqui seu dinheiro.
— Não
chega nem basta. Essa tabuleta do preço era na semana passada. Agora
é 250 um lábio.
— Um
lábio?
— Se
for o de cima, o de baixo custa mais caro. Por causa que é maior.
— Estou
fracassada com você, Julbernardo. Vá, pinte o de cima, amanhã
venho pintar o de baixo.
— Está
certo, eu vou pintar.
Julbernardo
pegou no baton com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser
vista. Metade do povoado vinha assistir às pinturas. A gente seguia
caladinha, aquilo era cena à prova de fala. Julbernardo metia um
avental, ordenava à cliente que sentasse no tronco cortado do
canhoeiro.
Armantinha
obedecia ao ritual. Sentada, ergueu o rosto. Fechou os olhos,
compenentrada em si. O pintador limpou as mãos no avental. Se
debruçou sobre a tela viva e fez rodar o baton no ar antes de riscar
a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha deu
largas ao sonho. O baton acariciava o lábio e tornava seu corpo
misteriosamente leve, como se naquele toque se anulasse todo o peso
dela.
Sonhava
Armantinha e o sonho dela se apoderava. Nesse devaneio o baton se
convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os
lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando úmidas ternuras.
Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta
que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zuzé também lhe
esvoaça na cabeça.
E
eis que Armantinha abre os olhos e ali, bem à sua frente, o seu
marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a
gentalha rodopiando em volta. De repente, já um deles se apresenta
de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na mão
de Zuzé. Depois, num sacão, se separam os dois corpos. Estão ambos
ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho dá
dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se
avizinha. Zuzé, vitorioso, aponta a mulher:
— Vê?
Vê as moscas que vendi a esse cabrão?
Mas
as moscas, em lugar de escolherem o tombado Julbernardo, circundam a
cabeça de Zuzé. Alarmado, ele enxota-as. Em vão: já a moscardaria
lhe pousa, vira e revira. Então, Zuzé Bisgate desce dos seus
próprios joelhos e se derrama em pleno chão. O sangue se vê brotar
de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral.
Com mão corrige a mancha vermelha com que o baton
esmagado enchera o seu branco avental.
Mia
Couto, in Contos
do nascer da Terra