A
nossa casa era na Rua
da Palha, junto à de D. Clara, pessoa grave que tinha diversos
filhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, A irmão ou
sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam,
aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos
agradecimentos, familiarizou-se conosco, tomou conta dos arranjos da
instalação. Espanou, esfregou, arrumou as cadeiras pretas, os
armários, os baús cobertos de sola, enfeitados de brochas. Findos
os trabalhos, ausentou-se. Até o nome dela se perdeu. Meu pai,
transformado em comerciante, estabeleceu-se no Largo da Feira. Aí,
num socavão triste, de que mais tarde me lembrei ao ver subterrâneos
em folhetins, passou dias abrindo caixas e fardos, empilhando
mercadorias, examinando faturas, calculando, a lápis, em pedaços de
papel de embrulho. Esperei debalde vê-lo concluir esse exercício,
voltar ao banco do alpendre e à vazante. Aproximava-me dele muitas
vezes, com recados. E no
caminho largo a princípio me retardava, contemplando as roseiras do
jardim, as paredes brilhantes de azulejos, o sobradinho onde havia
homens fardados.
Isso
durou pouco. Minha mãe descobriu nódoas no chão, raspou o tijolo,
apavorou-se ao ter notícia do que elas eram sangue de tuberculoso.
Lavou muito as mãos, chorou, desesperou-se, convenceu-se de que as
hemoptises velhas iam penetrá-la e matá-la. Fechou o quarto
contaminado e resolveu mudar-se.
Algum
tempo depois estávamos localizados, negócio e família, numa
esquina, perto do Cavalo-Morto. Atrás da loja, de quatro portas,
duas em cada frente, havia o armazém de ferragens e o depósito de
milho, onde eu e minhas irmãs brincávamos. A um lado, a sala de
visitas, as cavernas do casal e das meninas, a despensa e a cozinha.
Um corredor separava a habitação do estabelecimento, desembocava na
sala de jantar, larga e baixa. Aí bancos ladeavam a mesa grosseira,
e uma cama de lona escondia-se num canto, a cama que me ofereceram
quando larguei a rede, por causa das almas do outro mundo.
As
almas vieram uma noite, quatro ou cinco, estirando-se e acocorando-se
à entrada do corredor. Assustei-me, gritei, acordei toda a gente,
descrevi as figuras luminosas que se moviam na escuridão, subindo,
baixando. Quando subiam, as cabeças delas alcançavam o teto. Fui
deitar-me noutro lugar e no dia seguinte obtive uma notoriedade que
me envergonhou. Repetiram o fato, acreditaram nele,
responsabilizaram-me por minudências de que não me recordava. Podia
um ser tão miúdo inventar aquilo? Atordoava-me, queria evitar os
exageros, dizer que a minha história não merecia importância, e
receava desprestigiar-me. Eu tinha julgado perceber umas luzes — e
as luzes tomavam corpo de repente, entravam nas conversas. Senti
remorso, desejei reduzir as minhas almas. Assombrara-me à toa.
Vinham-me, porém, dúvidas.
Afirmaram,
desenvolveram o caso estranho — e por fim admiti a visão. Talvez
não me houvesse enganado completamente. Não enxergara as claridades
que se alongavam e encurtavam, mas devia ter visto qualquer coisa.
Esqueci
pouco a pouco a aventura e apaguei-me, reassumi as proporções
ordinárias. Ficou-me, entretanto, um resto de pavor, que se
confundiu com os receios domésticos. Arrepios súbitos, cabelos
eriçados, tonturas, se alguém me falava. Nas trevas das noites
compridas consegui afugentar perigos enrolando-me, deixando apenas o
rosto descoberto. Uma ponta de lençol envolvia a testa, rodeava a
cara. Sentia-me assim protegido: nenhum fantasma viria ameaçar-me a
boca, o nariz e os olhos expostos. Se o pano se soltava, enchia-me de
terrores.
Era
preciso que as orelhas e o couro cabeludo se escondessem,
provavelmente por serem as partes mais sujeitas a acidentes. Talvez
os duendes viessem magoá-las.
Vivíamos
numa prisão, mal adivinhando o que havia na rua, enevoada longos
meses. Conhecíamos o beco: da janela do armazém, trepando em rolos
de arame, víamos, em dias de sol, matutos de saco no ombro, cavalos
amarrados num poste grosso, transeuntes que se chegavam cautelosos ao
muro, espiavam os arredores e se afastavam depois de molhar o tijolo
vermelho.
A
alguns passos, na outra esquina, uma casa semelhante à nossa. Três
meninos, uma senhora magra, nervosa, um homem de pernas finas metidas
em calças estreitas demais, pernas que lhe tinham rendido a alcunha.
Desajeitado em cima delas, Teotoninho Sabiá piscava os olhos
amarelos de ave, sacudia as grandes asas depenadas e bocejava um
cacarejo inexpressivo. Observávamos pedaços de vida, namorávamos o
oitão da outra gaiola, aberta, e tínhamos inveja imensa dos Sabiás
pequenos, desejávamos correr e voar com eles.
Nos
dias de inverno o beco se transformava num rego de água suja,
onde se desfaziam complicados edifícios e navegavam barquinhos de
papel, sob o comando de um garoto enlameado. A garoa crescia. A chuva
oblíqua enregelava-nos. Uma cortina oscilante ocultava os móveis,
as prateleiras da loja.
Os
tecidos criariam mofo, os metais se oxidariam. Fechavam-se as portas
e as janelas. As figuras moviam-se na sombra, indeterminadas.
Ia
recolher-me à cama da sala de jantar, envolvia-me nas cobertas
úmidas.
Enxergava
a custo as poças do quintal, as manchas que se alargavam nas
paredes, a telha escura, uma quina da prensa de farinha, velha e
carunchosa, caída no alpendre. Havia um cheiro acre de lenha verde
queimada; a fumaça da cozinha unia-se à poeira de água, engrossava
a fuligem que tingia as teias de aranha. Enorme bica de madeira, um
rio suspenso, transbordava nas trovoadas, com surdo rumor. Depois
amansava, ficava dias e dias atirando pingos no chão, derramando
além do copiar um esguicho leve e silencioso, que o vento agitava.
Não
se distinguia nenhum ruído fora a cantiga dos sapos do açude da
Penha, vozes agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o
berro do sapo-boi, bicho terrível que morde como cachorro e, se pega
um cristão, só o larga quando o sino toca. Foi Rosenda lavadeira
quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo-boi?
Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana.
Esquisito. Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar-me,
enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edifícios de
areia, com o Sabiá novo, certamente não pensaria nessas coisas.
Seria uma criatura viva, alegre. Só, encolhido, o jeito que tinha
era ocupar-me com o sapo-boi, quase gente, sensível aos sinos. Nunca
os sinos me haviam impressionado.
Sapo
cururu
Da
beira do rio.
Não
me bote na água, Maninha:
Cururu
tem frio.
Cantiga
para embalar crianças. Os cururus do açude choravam com frio, de
muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu
também tinha frio e gostava de ouvir os sapos.
Graciliano
Ramos, in Infância
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