Fui
a São Paulo, a convite do Grêmio dos Politécnicos, bater um papo
com os rapazes em sua Faculdade. Recusei-me a fazer uma palestra,
pois sou homem de língua emperrada; mas os motivos para a minha ida,
como me foram apresentados pelos futuros engenheiros paulistas,
pareceram-me bastante válidos, além de modestos. Têm eles que a
carreira escolhida oferece o perigo de canalizar o pensamento para
problemas puramente tecnológicos, em prejuízo de uma humanização
mais vasta, tal como a que pode ser adquirida em contato com o homem
em geral e as artes em particular.
Há
muito não me sentava diante de tantos moços, com um microfone na
mão, para lhes responder sobre o que desse e viesse. “Quem sou
eu”, perguntei-me, não sem uma certa amargura, “quem sou eu, que
não sei sequer consertar uma tomada elétrica, para arrogar-me o
direito de vir responder às perguntas destes jovens que amanhã
estarão construindo obras concretas e positivas para auxiliar o
desenvolvimento deste louco país?” Mas eles, aparentemente,
pensavam o contrário, pois puseram-se a bombardear-me de perguntas
que, falar verdade, não dependiam em nada de cálculos, senão de
experiência, bom-senso e um grão de poesia. Providenciaram mesmo
uma bonita cantorazinha de nome Mariana, que estreava na boate Cave
(de onde partiram para a fama Almir Ribeiro e Morgana) para cantar
coisas minhas e de Antônio Carlos Jobim: o que era feito depois de
eu responder se acreditava ou não em Deus, como explicava a
existência de mulheres feias e o que pensava de João Gilberto.
A
homenagem foi simpática, mas no meio daquilo tudo comecei a ser
tomado por uma sensação estranha. Aqueles rapazes todos que estavam
ali, cada um com a sua personalidade própria - João gostando de
romance Lolita, Pedro detestando; Luís preferindo mulatas, Carlos
louras; Francisco acreditando em Karl Marx, Júlio em Jânio Quadros;
Kimura preferindo filme de mocinho, Giovanni gostando mais de cinema
francês - já não os tinha visto eu em outras circunstâncias, em
outros tempos? Aquele painel de rostos desabrochando para a vida,
aqueles olhos sequiosos ao mesmo tempo de amor e de conhecimento, não
eram eles o primeiro plano de uma imagem que se ia perder no vórtice
de uma perspectiva interminável, como num jogo de espelhos? Atrás
de cada uma daquelas faces não havia o fotograma menor de outra
face, como ela ávida de saber o porquê das coisas, e atrás dessa
outra, e mais outra, e outra ainda? Vi-os, de repente, todos fardados
me olhando, atentos às instruções de guerra que eu lhes dava em
voz monótona: “Os três grupos decolarão em intervalos de cinco
minutos, e deixarão cair sua
carga de bombas nos objetivos A, B e C, tal como se vê no mapa. É
favor acertarem os relógios...” Mariana cantava, um pouco tímida
diante de tantos rapazes, a minha “Serenata do adeus”:
Ai,
vontade de ficar mas tendo de ir embora...
Qual
daqueles moços seria um dia ministro? Qual seria assassino? Quem,
dentre eles, trairia primeiro o anjo de sua própria mocidade? Qual
viraria grã-fino? Qual ficaria louco?
Tive
vontade de gritar-lhes: “Não acreditem em mim! Eu também não sei
nada! Só sei que diante de mim existe aberta uma grande porta
escura, e além dela é o infinito - um infinito que não acaba
nunca. Só sei que a vida é muito curta demais para viver e muito
longa demais para morrer!”
Mas
ao olhar mais uma vez seus rostos pensativos diante da canção que
lhes falava das dores de amar, meu coração subitamente se acendeu
numa grande chama de amor por eles, como se eles fossem todos filhos
meus. E eu me armei de todas as armas da minha esperança no destino
do homem para defender minha progênie, e bebi do copo que eles me
haviam oferecido, e porque estávamos todos um pouco emocionados,
rimos juntos quando a canção terminou. E eu fiquei certo de que
nenhum deles seria nunca um louco, um traidor ou um assassino porque
eu os amava tanto, e o meu amor haveria de protegê-los contra os
males de viver.
Vinicius
de Moraes, in Para
viver um grande amor
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