Em
um poema de 1915, a poeta russa Marina Tsvetáieva fala de dois sóis
que a atormentam. Eles se espelham, “um – no teu céu (o de
deus), outro – no meu peito”. A duplicação do sol define um
abismo. Ela se pergunta: “Como esses dois sóis – algum dia terei
cura?”. A presença do fogo atravessa toda a poesia de Marina. Não
só seus versos: mobiliza sua existência, como constatamos em suas
confissões. Reunidas por Tzvetan Todorov em Vivendo sob o fogo
(Martins Editora, tradução de Aurora Bernardini), elas conduzem o
leitor através do clarão do ser.
Os
poetas gelados agarram-se, por vezes, às ideias do francês Paul
Valéry. Ideias como esta, colhida em Monsieu Teste:
“Considerar suas emoções como tolices, debilidades, inutilidades,
imbecilidades, imperfeições – como o enjoo”. Há aí uma
confusão entre o sentimentalismo e a afetação e o grande
redemoinho das emoções primitivas com que Marina Tsvetáieva
(1892-1941) trabalha. Os poetas gelados leem as ideias de Valéry
como se fossem sagradas. Mas, no mesmo Monsieur Teste, ele nos
alerta: “As ideias são, para mim, meios de transformação”.
Afirma ele que uma ideia é “um meio de transformar uma questão”.
Elas não são, portanto, mandamentos ou pedras. Como nos diz Marina,
a ideia é um fogo que só existe enquanto arde.
Sigo
a obsessão de Marina pelas chamas e chego à imagem dos engolidores
de fogo, que, nos circos e nas feiras, tragam suas labaredas. Também
Marina fez da poesia um instrumento de colheita das ardências do
mundo. “Serei fogo”, ela reafirma em 1921. E não se cansa de
exclamar: “É tão bom viver no meio do fogo!”. Não era uma fuga
do real, mas uma maneira de devorá-lo. “Eu nunca escrevo, sempre
transcrevo”, ela definia sua literatura. Em outra carta, revela a
expressão que gostaria de ler em seu túmulo: “Estenógrafa do
Ser”. E mais nada.
Rigorosa
taquígrafa da alma, Marina não considerava suas emoções tolices,
debilidades, imbecilidades, mas, antes disso, saltos sobre o real.
Seus versos são conquistas não de superfícies geladas ou de
palavras vazias, mas dos ardentes segredos que constituem a alma das
coisas. Ela duvidava, até, que seus poemas merecessem o nome de
literatura. “A literatura? Não!”, escreveu, em 1920. “Não a
literatura – a autodevoração pelo fogo”.
Em
seus breves, mas intensos, 49 anos de vida, Marina atravessou duas
guerras mundiais e uma revolução, a de Outubro. Seu marido se
engajou nas fileiras dos brancos para combater os bolcheviques. Uma
de suas filhas morreu de fome e de inanição. A família se exilou.
Quando, enfim, retornaram a Moscou, foram mais uma vez perseguidos.
Atordoada pela invasão alemã de 1941, Marina chega a seu limite e
comete suicídio. A mulher é mais fraca que sua poesia.
Em
carta ao poeta Boris Pasternak, Marina faz uma distinção entre os
poetas e aqueles que escrevem versos. Conheceu muitas pessoas que
escreviam versos. “Escreviam admiravelmente seus poemas ou (mais
raramente) escreviam poemas admiráveis. Isso é tudo.” Não
admitia, porém, chamá-los de poetas. “A marca da labuta, que é a
do poeta, não a vi em ninguém: ela chameja a uma versta de
distância!”
Marina
não tinha pudor algum em afirmar a superioridade das confissões
sobre os poemas. “O principal: meus cadernos de notas – minha
paixão, porque são – o mais vivo.” Nos diários, sentia-se mais
próxima das “almas dançantes”, como a da poeta alemã Bettina
Brentano (1785-1859), em quem sempre se espelhou. Até os 13 anos de
idade, Bettina não sabia o que era um espelho. Um dia, sentada ao
lado das irmãs, viu, refletida em um painel, a imagem de um grupo de
moças. Reconheceu as irmãs, mas não uma estranha menina de tranças
que a observava “com olhos de fogo”. Não foi fácil entender que
aquela menina era ela mesma. A imagem de si como golpe. A visão do
mundo como um incêndio que avança. Bettina se torna o espelho de
Marina.
Mas
nem essas imagens consoladoras a salvam do medo. “Tenho medo – de
tudo. Dos olhos, do escuro, dos passos e, mais que tudo – de mim
mesma.” O medo é, em Marina, a consciência do fogo. De uma
realidade interior que queima, em descompasso com a indiferença e
dureza da realidade. “No fogo da vida me criaste,/ na estepe gelada
me atiraste!”, ela escreve em 1920. Não podia adaptar-se a um
mundo em que as guerras eram jogos, em que a morte era burocrática,
em que as palavras eram blocos de gelo. Sua escrita incandescente
absorve os restos de calor que resistem nas fendas do planeta.
Estenógrafa do Ser, a ela cabia anotar e transcrever, antes que ele
se perdesse, o brilho do humano.
Espelhando-se
ainda em Bettina Brentano, Marina se definiu como “uma dançarina
da alma”. Escreveu: “De que preciso neste mundo? De minha emoção,
ponto mais alto de minha alma”. Falava não da emoção barata e
chorosa que Paul Valéry repudiou, que é só lamento e
sentimentalismo. Referia-se a algo mais denso, que se desdobra em
almas – não o princípio espiritual, mas o feixe de afetos,
paixões e ideias que agitam o homem. Escrever poesia, para Marina,
era transcrever essa convulsão das almas. Era devorá-la, para
depois cuspi-la em palavras.
Sentia-se
uma “desclassificada”, isto é, alguém – por força da
sensibilidade – fora “de qualquer casta, de qualquer profissão,
de qualquer nível”. Como aceitar, então, o rótulo elegante de
poeta? Não podia suportar o rito de “incensório, genuflexões,
monumentos em vida”. Colocava-se, ainda, muito além dos
miseráveis, que pelo menos têm uma perda a lamentar. “Atrás do
imperador, há imperadores; atrás dos miseráveis – miseráveis;
atrás de mim – o vazio.”
Eu
lia, assombrado, as confissões de Marina quando, em um intervalo,
encontrei-me com Antônio Torres. Sem perceber o que me dava, ele
lembrou a célebre fórmula de James Joyce, expressa por Stephen
Dedalus no Retrato do artista enquanto jovem. Lá estão os
três pilares joyceanos para a literatura: “silêncio, exílio,
astúcia”. Voltei a Marina Tsvetáieva. Nada mais silencioso que o
crepitar de um fogo. Nenhuma sensação mais dolorosa de degredo do
que a insuficiência das palavras. Só a astúcia dos poetas para
fazer algo disso.
José
Castello, in Sábados inquietos
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