sexta-feira, 29 de julho de 2016

Um instante fugaz

Eu ia andando por uma rua movimentada quando, em direção oposta à minha, para o meu lado, um hippie apareceu. Ele me olhou, antes distraído e, depois, demonstrando grande surpresa, fixo. E riu para mim. Então ri para ele. Ele fez menção de parar. Mas eu tinha hora marcada, além de ter, em largo sentido, caminho próprio, e não parei. Mas como nos havíamos visto já de longe, e cada vez mais perto, nós nos vimos bem. Foi um encontro muito profundo.
De que rimos nós? Do nosso encontro que era de alegria. Da tolice do mundo também.
Imagino que, se eu parasse, eu diria: oi! E ele responderia: oi! Ou melhor, como era um hippie estrangeiro, ele falaria em inglês: hi! (pronuncia-se: rai) E me perguntaria: Who are you? (Quem é você?) Eu diria: I am (eu sou). Ele me perguntaria: como é que chamam você, que número você tem? Eu responderia: meu número é Clarice, e o seu? Ele diria o dele. Aposto que seria John. Tinha cara de.
John, eu nunca esquecerei você. Nem com o passar dos anos. Porque nós fomos eternos naquele instante. Foi um instante apenas mas nele fizemos um comentário do mundo e de nós próprios. Meu irmão.
Esse, tenho certeza, não fumava maconha: tinha em si a capacidade de êxtase, como eu. Há os que já têm o LSD em si, sem precisar tomá-lo. John, você vem de uma família, como eu. E precisou, como eu, fazer do mundo também sua família. Mas por que tanta surpresa ao me ver, John? Você devia saber que eu existo. Desculpe eu não ter parado, como você queria. Eu não podia, acredite.
Tão diferente do que me aconteceu um dia desses. Um dia desses eu estava num táxi que parou diante do sinal vermelho. Um outro táxi, paralelo ao meu, tinha como motorista um homem de seus 30 anos, com passageiro dentro. Eu olhava inteiramente distraída para o ar, sem perceber que o que estava olhando era uma pessoa. Essa pessoa olhou para mim, fixou-me mais e inesperadamente piscou o olho para mim. Desviei o olhar. Tão cinema mudo, isto. E tão barato (não o cinema mudo em si). Não é que esse motorista tenha me ofendido. Mas ele era tão inútil. E queria me inutilizar também. Eu nunca deixo.
Enquanto que John me deixou plena e útil.
John, onde é que você dorme? Eu ainda não sou tão livre: preciso de uma casa e de uma cama para dormir. E não sei dormir na casa dos outros. Tem que ser a minha. Ou então um hotel. Você teria dinheiro para uma viagem? Acho que sim, você estava com um traje hippie bonito e essas coisas custam caro.
John, num momento de muito desespero eu pedi a Deus que me arranjasse uma ajuda. E a ajuda veio: um homem que não conheço me telefonou. Aí eu chorei ao telefone. Ele disse: não chore que chorar enfraquece. Eu disse: mas às vezes é como a chuva de que se precisa quando tem estiagem demais e tudo fica muito seco. Eu lhe pedi para me telefonar de novo às seis da tarde. Ele disse que não podia. Mas às seis em ponto me telefonou. Eu já não estava desesperada, até rimos. No dia seguinte ele me telefonou de novo. Conversamos. Por conta própria ele disse que ia fazer um juramento: o de jamais contar a ninguém que me conhecia. Eu disse: se você precisar contar, conte, não se prenda a um juramento. Ele disse: não, eu juro porque é por demais sagrado.
John, eu li que a angústia é a vertigem da liberdade. No entanto eu estou tendo essa vertigem, mas sem angústia. Como é que se explica? Eu estou séria, mas por dentro estou sorrindo. Não sei de quê. É que viver me faz sorrir. É um sorriso misterioso. Vem de florestas interiores, de lagos e açudes e montanhas e céu. Sou toda misteriosa, John. Você é mais claro que eu. Você é um riso, um olhar de surpresa. Até sempre.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

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