Eu
ia andando por uma rua movimentada quando, em direção oposta à
minha, para o meu lado, um hippie apareceu. Ele me olhou, antes
distraído e, depois, demonstrando grande surpresa, fixo. E riu para
mim. Então ri para ele. Ele fez menção de parar. Mas eu tinha hora
marcada, além de ter, em largo sentido, caminho próprio, e não
parei. Mas como nos havíamos visto já de longe, e cada vez mais
perto, nós nos vimos bem. Foi um encontro muito profundo.
De
que rimos nós? Do nosso encontro que era de alegria. Da tolice do
mundo também.
Imagino
que, se eu parasse, eu diria: oi! E ele responderia: oi! Ou melhor,
como era um hippie estrangeiro, ele falaria em inglês: hi!
(pronuncia-se: rai) E me perguntaria: Who are you? (Quem é
você?) Eu diria: I am (eu sou). Ele me perguntaria: como é
que chamam você, que número você tem? Eu responderia: meu número
é Clarice, e o seu? Ele diria o dele. Aposto que seria John. Tinha
cara de.
John,
eu nunca esquecerei você. Nem com o passar dos anos. Porque nós
fomos eternos naquele instante. Foi um instante apenas mas nele
fizemos um comentário do mundo e de nós próprios. Meu irmão.
Esse,
tenho certeza, não fumava maconha: tinha em si a capacidade de
êxtase, como eu. Há os que já têm o LSD em si, sem precisar
tomá-lo. John, você vem de uma família, como eu. E precisou, como
eu, fazer do mundo também sua família. Mas por que tanta surpresa
ao me ver, John? Você devia saber que eu existo. Desculpe eu não
ter parado, como você queria. Eu não podia, acredite.
Tão
diferente do que me aconteceu um dia desses. Um dia desses eu estava
num táxi que parou diante do sinal vermelho. Um outro táxi,
paralelo ao meu, tinha como motorista um homem de seus 30 anos, com
passageiro dentro. Eu olhava inteiramente distraída para o ar, sem
perceber que o que estava olhando era uma pessoa. Essa pessoa olhou
para mim, fixou-me mais e inesperadamente piscou o olho para mim.
Desviei o olhar. Tão cinema mudo, isto. E tão barato (não o cinema
mudo em si). Não é que esse motorista tenha me ofendido. Mas ele
era tão inútil. E queria me inutilizar também. Eu nunca deixo.
Enquanto
que John me deixou plena e útil.
John,
onde é que você dorme? Eu ainda não sou tão livre: preciso de uma
casa e de uma cama para dormir. E não sei dormir na casa dos outros.
Tem que ser a minha. Ou então um hotel. Você teria dinheiro para
uma viagem? Acho que sim, você estava com um traje hippie bonito e
essas coisas custam caro.
John,
num momento de muito desespero eu pedi a Deus que me arranjasse uma
ajuda. E a ajuda veio: um homem que não conheço me telefonou. Aí
eu chorei ao telefone. Ele disse: não chore que chorar enfraquece.
Eu disse: mas às vezes é como a chuva de que se precisa quando tem
estiagem demais e tudo fica muito seco. Eu lhe pedi para me telefonar
de novo às seis da tarde. Ele disse que não podia. Mas às seis em
ponto me telefonou. Eu já não estava desesperada, até rimos. No
dia seguinte ele me telefonou de novo. Conversamos. Por conta própria
ele disse que ia fazer um juramento: o de jamais contar a ninguém
que me conhecia. Eu disse: se você precisar contar, conte, não se
prenda a um juramento. Ele disse: não, eu juro porque é por demais
sagrado.
John,
eu li que a angústia é a vertigem da liberdade. No entanto eu estou
tendo essa vertigem, mas sem angústia. Como é que se explica? Eu
estou séria, mas por dentro estou sorrindo. Não sei de quê. É que
viver me faz sorrir. É um sorriso misterioso. Vem de florestas
interiores, de lagos e açudes e montanhas e céu. Sou toda
misteriosa, John. Você é mais claro que eu. Você é um riso, um
olhar de surpresa. Até sempre.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
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