Agora,
que não preciso mais ir à cidade todo dia, descubro um prazer novo
em andar por essas velhas ruas do centro onde tanto vaguei outrora.
E
pego um estranho dia de verão: há um alto nevoeiro aéreo sob o céu
azul, mas o vento espanta alegremente as nuvens esgotadas de chover;
o ar é fino, a luz é clara, a manhã é assanhada, com uma alegria
de convalescente que pela primeira vez, depois de longa doença, sai
a passear entre as árvores, o mar e as montanhas azuis.
Parece
que estamos em maio ou setembro, num desses dias cambiantes e leves
em que as folhas têm um brilho mais feliz. E sinto prazer em andar
pela calçada larga da Rua do Passeio, em espiar as grandes vitrinas
coloridas de presentes de Natal. (Não quero comprar nada, não
preciso ganhar mais nada, não é verdade que recebi na minha porta a
graça juvenil de uma rosa amarela?)
A
calçada está cheia de gente, e é doce a gente se deixar ir andando
à toa. Na Rua Senador Dantas vejo livros, camisas, aparelhos
elétricos, discos, fuzis submarinos, gravatas; e os cartazes dizem
que tudo é muito barato e fácil de comprar, os cartazes me fazem
ofertas especiais para levar agora e só começar a pagar em
fevereiro... Muito obrigado, muito obrigado, mas não preciso de
nada. Entretanto, gosto de ver essa fartura de coisas: fico parado
numa porta de mercearia contemplando reluzentes goiabadas e frascos
de vinho, bebidas e gulodices de toda a espécie que vieram de terras
longes se oferecerem a mim.
Mas
de repente houve alguma coisa — a visão de um muro, o som de uma
vitrola distante, algum rosto no meio da multidão? —, alguma coisa
que me devolveu ao meu ser antigo. Sou um rapaz magro nesta mesma
rua, sou o verdadeiro estudante de 1929 e talvez cruze numa esquina,
sem conhecê-la ainda, aquela que há de ser a minha amada, e tire do
bolso a minha carteirinha da Faculdade para ter direito ao abatimento
no cinema. Mas logo, por um instante, sou o homem dramático e
silencioso de 1938, e caminho carregado de angústia por essa calçada
que, entretanto, é a mesma de hoje — há o vento palpitando nos
vestidos coloridos de mulheres finas que sorriem com dentes muito
brancos entre os lábios úmidos. E vou andando, tomo um café, sinto
uma grande ternura pela cidade grande onde outrora te amei tanto,
tanto, oh! para sempre perdida Lenora.
Lenora...
E me dá uma humildade entre o povo, completo o dinheiro da entrada
de um menino que quer ir ao cinema, espero um bonde, ajudo uma
senhora gorda a subir com seu embrulho, ela agradece e sorri, é
cinquentona e pobre, mas seu sorriso é bom, ela e eu somos cidadãos
da mesma cidade e antes de saltar ela me desejará boas-entradas. Vem
o condutor, tem cara de alemão e é gordo, mas ágil e paciente,
todos pagam sua passagem na boa ordem civil e cordial. Um homem
conduz uma gaiola dentro do bonde, todos querem ver o passarinho —
é um pintassilgo, diz ele.
Quieto,
vou repetindo sem voz, para mim mesmo, teu nome, Lenora — perdida,
para sempre perdida, mas tão viva, tão linda, batendo os saltos na
calçada, andando de cabelos ao vento dentro da minha cidade e de
minha saudade, Lenora.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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