sexta-feira, 31 de julho de 2015

Tempera o receio com a esperança

Não haverá razão para viver, nem termo para as nossas misérias, se for mister temer tudo quanto seja temível. Neste ponto, põe em ação a tua prudência; mercê da animosidade de espírito, repele inclusive o temor que te acomete de cara descoberta. Pelo menos, combate uma fraqueza com outra: tempera o receio com a esperança. Por certo que possa ser qualquer um dos riscos que tememos, é ainda mais certo que os nossos temores se apazíguam, quando as nossas esperanças nos enganam.
Estabelece equilíbrio, pois, entre a esperança e o temor; sempre que houver completa incerteza, inclina a balança em teu favor: crê no que te agrada. Mesmo que o temor reúna maior número de sufrágios, inclina-a sempre para o lado da esperança; deixa de afligir o coração, e figura-te, sem cessar, que a maior parte dos mortais, sem ser afetada, sem se ver seriamente ameaçada por mal algum, vive em permanente e confusa agitação. É que nenhum conserva o governo de si mesmo: deixa-se levar pelos impulsos, e não mantém o seu temor dentro de limites razoáveis. Nenhum diz:
- Autoridade vã, espírito vão: ou inventou, ou lho contaram.
Flutuamos ao mínimo sopro. De circunstâncias duvidosas, fazemos certezas que nos aterrorizam. Como a justa medida não é do nosso feitio, instantaneamente uma inquietude se converte em medo.”
Sêneca, in Dos reveses

Aventura no parque

Ontem, Mário Quintana completaria 109 anos

No banco verde do parque, onde eu lia distraidamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: “Colhe o momento que passa”. Colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um flapt, um inquietante animalzinho, todo asas e todo patas: ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um meninozinho vestido à marinheira. “Quem monta num tigre (dizia à página seguinte, um provérbio chinês) quem monta num tigre não pode apear.”
Mário Quintana, in Sapato florido

Bom de ir: Paraty, Rio de Janeiro

Ideias de cigano


José Arcadio Buendía nem sequer tentou consolá-la, entregue que estava por inteiro às suas experiências táticas, com a abnegação de um cientista e até mesmo com o risco da própria vida. Tentando demonstrar os efeitos da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se expôs à concentração dos raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito tempo para sarar. Diante dos protestos da mulher, alarmada por tão perigosa inventiva, por pouco não incendiou a casa. Passava longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível.
Enviou-o às autoridades, acompanhado de numerosos testemunhos sobre as suas experiências e de vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, extraviou-se em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um caminho que o levasse às mulas do correio. Embora a viagem à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcadio Buendía prometia tentá-la logo que o governo ordenasse, com o fim de fazer demonstrações práticas do seu invento diante dos poderes militares, e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta. Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquíades do fracasso da sua iniciativa e o cigano, então, deu uma prova convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse se servir do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo da casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
- A terra é redonda como uma laranja.
Úrsula perdeu a paciência. “Se você pretende ficar louco, fique sozinho”, gritou. “Não tente incutir nas crianças as suas ideias de cigano.” José Arcadio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens do povoado e demonstrou a eles, com teorias que acabaram sendo incompreensíveis para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já estava convencida de que José Arcadio Buendía tinha perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pratos limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele homem que, por pura especulação astronômica, construíra uma teoria já comprovada na prática, se bem que desconhecida até então em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu-lhe um presente que havia de exercer uma influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.
Gabriel García Márquez, in Cem anos de solidão

Balada dos casais

Os casais são tão iguais,
por isto se casam
e anunciam nos jornais.
Os casais são tão iguais,
por isto se beijam
fazem filhos, se separam
prometendo
não se casarem jamais.

Os casais são tão iguais,
que além de trocar fraldas,
tirar fotos, acabam se tornando
avós e pais.

Os casais são tão iguais,
que se amam e se insultam
e se matam na realidade
e nos filmes policiais.

Os casais são tão iguais,
que embora jurem um ao outro
amor eterno
sempre querem mais.

Affonso Romano de Sant'Anna 

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A vida


Sociologia freestyle

Às expensas de outrem

O ateniense Dêmades condenou um homem da sua cidade que tinha por ofício vender as coisas necessárias para os enterros, sob a alegação de que exigia um lucro excessivo e esse lucro não lhe podia vir sem a morte de muitas pessoas. Tal julgamento parece estar mal pronunciado, na medida em que não se obtém benefício algum a não ser com prejuízo de outrem, e que dessa maneira seria preciso condenar toda a espécie de ganho.
O mercador só faz bem os seus negócios por causa da devassidão dos jovens; o lavrador, pela carestia dos cereais; o arquitecto, pela ruína das casas; os oficiais de justiça, pelos processos e contendas dos homens; mesmo as honras e a atividade dos ministros da religião provêm da nossa morte e dos nossos vícios. Nenhum médico se alegra com a saúde mesmo dos seus amigos, diz o antigo cômico grego, nem o soldado com a paz da sua cidade; e assim sucessivamente. E o que é pior: cada um sonde dentro de si mesmo, e descobrirá que a maioria dos nossos desejos íntimos nascem e alimentam-se às expensas de outrem.
Considerando isso, veio-me à mente que nisso a natureza não contradiz a sua organização geral, pois os naturalistas afirmam que o nascimento, desenvolvimento e aumento de cada coisa são a alteração e degeneração de uma outra, conforme afirma Lucrécio: Pois quando algo se transforma e muda de natureza, imediatamente há morte no objeto que existia antes.”
Michel de Montaigne, in Ensaios

Alegrias e tristezas

Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam.”
Miguel Torga

A Arte de Portinari

Denise com carneiro branco (1961), de Cândido Portinari

Egoísmo

O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar. [...] Na verdade, tanto nos animais quanto nos seres humanos, o egoísmo chega a ser idêntico, pois em ambos une-se perfeitamente ao seu âmago e à sua essência.
Desse modo, todas as ações dos homens e dos animais surgem, em regra, do egoísmo, e a ele também se atribui sempre a tentativa de explicar uma determinada ação. Nas suas ações baseia-se também, em geral, o cálculo de todos os meios pelos quais procura-se dirigir os seres humanos a um objectivo. Por natureza, o egoísmo é ilimitado: o homem quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance, quer ficar totalmente livre das dores que também incluem a falta e a privação, quer a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer de que for capaz, e chega até mesmo a tentar desenvolver em si mesmo, quando possível, novas capacidades de deleite. Tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio: ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo. Quer possivelmente desfrutar de tudo e possuir tudo; mas, como isso é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo: 'Tudo para mim e nada para os outros' é o seu lema. O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo.”
Arthur Schopenhauer, in A Arte de Insultar

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sobre mulheres, ácaros e formigas

A cultura patrimonial e a linguagem de divulgação são os álibis da nossa hegemonia, considerando que o dinossauro morreu porque era um dinossauro e as formigas nos sobreviverão, mas escravas de uma lógica cavernícola que as impedirá de lutar contra os ácaros e contra as mulheres. Vão ganhar os ácaros. Sinto muito pela formiga e pelas mulheres, mas as duas alternativas avançam prepotentes numa ausência de vontade de poder, as formigas, ou numa denúncia da masculina vontade de poder, as mulheres. Sarcástica mentira, principalmente para o velho catedrático que testemunhou cinquenta anos de ascensão de suas colegas femininas, com uma capacidade de dentadas e rasteiras perfeitamente masculina, quando não usaram os peitos ou as bocetas, de que também carecem quase todos os homens. Sinto muito, sou misógino. Mas as mulheres não vão conseguir derrotar os ácaros. Os ácaros suportam até a bomba de nêutrons e não precisam se fantasiar de outra coisa para permanecer no ar ou nos nossos pulmões. Estão em toda parte. São Deus. Repetem o poder do invisível para criar ou desfazer o visível.”

Manuel Vázquez Montalbán, in Erec e Enide

Poema "Difícil fotografar o silêncio", de Manoel de Barros



Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Por fim, eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.
Manoel de Barros

Processo seletivo

www.willtirando.com.br

Não sabes nada de mim


Não sabes a força que têm os anjos, com um só dedo levantariam uma montanha, o que me vale é serem tão disciplinados, não fosse isso e já teriam organizado um complô para me deporem, Como satã, disse caim, Sim, como satã, mas a este já lhe encontrei a maneira de o trazer contente, de vez em quando deixo-lhe uma vítima nas mãos para que se entretenha, e isso lhe basta, Tal como fizeste a job, que não ousou amaldiçoar-te, mas que leva no coração toda a amargura do mundo, Que sabes tu do coração de job, Nada, mas sei tudo do meu e alguma coisa do teu, respondeu caim, Não creio, os deuses são como poços sem fundo, se te debruçares neles nem mesmo a tua imagem conseguirás ver, Com o tempo todos os poços acabam por secar, a tua hora também há-de chegar. O senhor não respondeu, mas olhou fixamente caim e disse, O teu sinal na testa está maior, parece um sol negro a levantar-se do horizonte dos olhos, Bravo, exclamou caim batendo palmas, não sabia que fosses dado à poesia, É o que eu digo, não sabes nada de mim.”
José Saramago, in Caim

Estorvo

 “Não consigo dormir. Tenho um homem atravessado entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ele que fosse embora? Mas tenho um homem atravessado na garganta.”
Eduardo Galeano

terça-feira, 28 de julho de 2015

Arte de rua

Fonte: brazilwonders.tumblr.com

O bobo e o amor

É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.”
Clarice Lispector, in A paixão segundo G. H.

Todos iguais


Doze vozes gritavam, cheias de ódio, e eram todos iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir, quem era homem, quem era porco.”
George Orwell, in A revolução dos bichos

Brincadeira

Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse: – Eu sei de tudo.
Depois de um silêncio, o outro disse:
Como é que você soube?
Não interessa. Sei de tudo.
Me faz um favor. Não espalha.
Vou pensar.
Por amor de Deus.
Está bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
Sei de tudo.
Co- como?
Sei de tudo.
Tudo o quê?
Você sabe.
Mas é impossível. Como é que você descobriu?
A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
Alguém mais sabe?
Outras se tornavam agressivas:
Está bem, você sabe. E daí?
Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
Se você contar para alguém, eu…
Depende de você.
De mim, como?
Se você andar na linha, eu não conto.
Certo. 
Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
Eu sei de tudo.
Tudo o quê?
Você sabe.
Não sei. O que é que você sabe?
Não se faz de inocente.
Mas eu realmente não sei.
Vem com essa.
Você não sabe de nada.
Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
Não existe nada.
Olha que eu vou espalhar…
Pode espalhar que é mentira.
Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
Está bem. Vou espalhar.
Mas dali a pouco veio um telefonema.
Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre nada daquilo.
Aquilo o quê?
Você sabe.
Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e sussurrava:
Você contou para alguém?
Ainda não.
Puxa. Obrigado.
Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
Por que eu? – quis saber.
A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
Por quê?
Pela sua descrição.
Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca para falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
Sei de tudo.
Co- como?
Sei de tudo.
Tudo o quê?
Você sabe.
Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu desaparecimento repentino. Investigara. O que ele estaria tramando? Finalmente foi descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que a voz que uma noite vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que mais se ouvia era a dele, gritando:
Era brincadeira! Era brincadeira!
Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
Sabia demais.
Luís Fernando Veríssimo

Pluralidade

 “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.”
Hannah Arendt

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Com paixão

Comovo-me em excesso, por natureza ou ofício. Acho medonho alguém viver sem paixões.”
Graciliano Ramos

Suportar tudo


Aprendizados

Uns aprendem nadar
outros dançar, tocar piano,
fazer tricô e a esperar.

Na infância cai-se
para se aprender a andar,
cai-se do cavalo e do emprego
aprendendo a viver e a cavalgar.

Em alguns aprendizados
chega-se a perfeição.

Em alguns.

No amor, não.
Affonso Romano de Sant'Anna

Não se chora pelo amanhã

Dói. Dói muito. Dói pelo corpo inteiro. Principia nas unhas, passa pelos cabelos, contagia os ossos, penaliza a memória e se estende pela altura da pele. Nada fica sem dor. Também os olhos, que só armazenam as imagens do que já fora, doem. A dor vem de afastadas distâncias, sepultados tempos, inconvenientes lugares, inseguros futuros. Não se chora pelo amanhã. Só se salga a carne morta.”
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho amargo

Quase Nada 325

Quase Nada 325
www.10paezinhos.com.br

O sucesso é uma mentira

Ele chorou um pouco. Era um belo homem com barba por fazer e abatidíssimo. Via-se que havia fracassado. Como todos nós. Ele me perguntou se podia ler para mim um poema. Eu disse que queria ouvir. Ele abriu uma sacola, tirou de dentro um caderno grosso, pôs-se a rir, ao abrir as folhas. Então leu o poema. Era simplesmente uma beleza. Misturava palavrões com as maiores delicadezas. Oh Cláudio - tinha eu vontade de gritar – nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? Mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira.”
Clarice Lispector, in A via crucis do corpo

Bichos nomes

A rua, a casa. Defronte, um largo casarão usado como cortiço. Todas as tardes, descendo a rua, lá vinha aquele homem de aspecto manso – um funcionário público, talvez – arrastando os pés, as faces balofas. Corríamos ao seu encontro, com a pergunta invariável:
- Vovô, que é que eu sou?
Ele hesitava, fingia pensar, depois largava:
- Tatu.
E ia desfilando a esmo nomes de bichos nomes que nos encantavam.
Lúcio Cardoso, in Diários

sábado, 25 de julho de 2015

Rua Três Cirandas - Tico Costa

Caridade X solidariedade

Eu não acredito em caridade. Eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas.”
Eduardo Galeano

Autobiografia sem fatos (12)

Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
Que há de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochê das coisas… Intervalo… Nada…
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo… Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter… Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo… Sim, crochê…
Fernando Pessoa, in O livro do desassossego

Contradição


Deixando de querer bem

Matar não quer dizer a gente pegar revolver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu.”
José Mauro de Vasconcelos, in Meu pé de laranja lima

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Soneto, de Luís Vaz de Camões

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma.

Hagar, o Horrível

É preciso continuar

De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”
Fernando Sabino, in O encontro marcado

“Olho gordo”: uma pequena nota sobre a inveja, o medo e o ódio na televisão

Faz tempo que não escrevo nada sobre televisão. Meu livro Olho de Vidro, publicado em 2011 (indicado em 2012 ao Prêmio Jabuti), me fez perguntar por que as pessoas que assistem televisão em geral não o leram ( o livro teve duas edições, mas, segundo muitos, é muito complicado para quem está acostumado a ver televisão e não tem o hábito de ler...).
A resposta está dada. No Brasil a televisão substituiu os livros. Isso não quer dizer que quem vê televisão não lê livros, mas quer dizer que existe uma cultura em que a televisão tem um poder tão incrível que dispensa de outras experiências “intelectuais”.
Não se enganem, a televisão é uma experiência intelectual, uma experiência de conhecimento, só que empobrecida.
No livro eu falava da cultura brasileira da inveja. A televisão mexe com a nossa inveja. Por isso, usei a metáfora do “olho de vidro”. Não apenas porque essa metáfora explica o lugar da televisão como “prótese de conhecimento”, mas porque o olho de vidro tem a estrutura da inveja. A televisão é um “olho gordo” de vidro.

Nam June Paik. TV is Kitsch, 1996
TV is Kitsch, 1996, de Nam June Paik

A inveja é um tipo de desejo impotente. O invejoso é sempre impotente. Ele olha para quem ele inveja e se sente menor, daí a sua raiva, o seu rancor, o seu ressentimento. Ele gostaria de ser o outro, mas não é. A vida do invejoso é muito triste porque ele não pode fazer nada. Ele não pode ser outra pessoa, ele não pode ser melhor do que é. Mas ele está só delirando, porque ele poderia aprender a se desejar e ser uma pessoa diferente.
O telespectador é aquela pessoa que é orientada à inveja, não ao desejo. Qual a diferença entre uma coisa e outra? É que a inveja faz você imitar o outro enquanto no desejo você pode se inventar. O invejoso não quer ser uma pessoa singular. Em vez de olhar para seu corpo, sua roupa, seu trabalho, sua vida em geral como se fosse uma obra de arte a ser construída, ele se olha como um erro que só pode ser consertado por imitação de um modelo. É esse modelo que ele inveja. Então ele imita.
A imitação faz comprar. Comprar, aliás, já é um ato de imitação. O outro comprou e eu também compro. O outro usa e eu também uso. No extremo, o outro vê um filme, uma novela, e eu também vejo. Assim a pessoa se sente poderosa, fazendo a “coisa certa”, tendo vantagem. Chamei de “desejo de audiência” esse processo de imitação que é o mecanismo social da inveja.
A televisão tenta administrar os afetos das pessoas. A inveja é um afeto bem primitivo. Digo “afeto”, mas não sei se as pessoas entendem bem o que é isso. Um dia eu tento escrever mais sobre. Hoje, vou usar o termo sentimento, porque o sentimento todo mundo entende. Quero dizer com isso que a cada época a televisão administra os nossos sentimentos. A inveja é básica na televisão. É o pano de fundo, o chão, a sustentação da experiência que a gente tem com a TV. Mas hoje em dia outros sentimentos estão em jogo.
Veja o texto completo de Marcia Tiburi aqui.

Street Art, por MTO, em Berlim, Alemanha

by mto street art in berlin

O que são homens

Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas.”
Hermann Hesse, in Demian

Sobre os perigos da leitura

Nos tempos em que eu era professor da UNICAMP fui designado presidente da comissão encarregada da seleção dos candidatos ao doutoramento, o que é um sofrimento. Dizer “esse entra”, “esse não entra” é uma responsabilidade dolorida da qual não se sai sem sentimentos de culpa. Como, em vinte minutos de conversa, decidir sobre a vida de uma pessoa amedrontada? Mas não havia alternativas. Essa era a regra.
Os candidatos amontoavam-se no corredor recordando o que haviam lido da imensa lista de livros cuja leitura era exigida. Aí tive uma ideia que julguei brilhante.
Combinei com os meus colegas que faríamos a todos os candidatos uma única pergunta, a mesma pergunta. Assim, quando o candidato entrava trêmulo e se esforçando por parecer confiante, eu lhe fazia a pergunta, a mais deliciosa de todas: “Fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar!” Pois é claro! Não nos interessávamos por aquilo que ele havia memorizado dos livros. Muitos idiotas têm boa memória. Interessávamos por aquilo que ele pensava.
Poderia falar sobre o que quisesse, desde que fosse aquilo sobre que gostaria de falar. Procurávamos as ideias que corriam no seu sangue! Mas a reação dos candidatos não foi a esperada. Foi o oposto. Pânico. Foi como se esse campo, aquilo sobre que eles gostariam de falar, lhes fosse totalmente desconhecido, um vazio imenso. Papaguear os pensamentos dos outros, tudo bem. Para isso eles haviam sido treinados durante toda a sua carreira escolar, a partir da infância. Mas falar sobre os próprios pensamentos – ah! isso não lhes tinha sido ensinado.
Na verdade nunca lhes havia passado pela cabeça que alguém pudesse se interessar por aquilo que estavam pensando. Nunca lhes havia passado pela cabeça que os seus pensamentos pudessem ser importantes. Uma candidata teve um surto e começou a papaguear compulsivamente a teoria de um autor marxista. Acho que ela pensou que aquela pergunta não era para valer.
Não era possível que estivéssemos falando a sério. Deveria ser uma dessas “pegadinhas” sádicas cujo objetivo e confundir o candidato. Por vias das dúvidas ela optou pelo caminho tradicional e tratou de demonstrar que ela havia lido a bibliografia. Aí eu a interrompi e lhe disse: “Eu já li esse livro. Eu sei o que está escrito nele. E você está repetindo direitinho. Mas nós não queremos ouvir o que já sabemos. Queremos ouvir o que não sabemos. Queremos que você nos conte o que você está pensando, os pensamentos que a ocupam…” Ela não conseguiu. O excesso de leitura a havia feito esquecer e desaprender a arte de pensar.
Parece que esse processo de destruição do pensamento individual é uma consequência natural das nossas práticas educativas. Quanto mais se é obrigado a ler, menos se pensa. Schopenhauer tomou consciência disso e o disse de maneira muito simples em alguns textos sobre livros e leitura. O que se toma por óbvio e evidente é que o pensamento está diretamente ligado ao número de livros lidos. Tanto assim que se criaram técnicas de leitura dinâmica que permitem que se leia “Grande Sertão – Veredas” em pouco mais de três horas.
Ler dinamicamente, como se sabe, é essencial para se preparar para o vestibular e para fazer os clássicos “fichamentos” exigidos pelos professores. Schopenhauer pensa o contrário: “É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante.” Isso contraria tudo o que se tem como verdadeiro e é preciso seguir o seu pensamento. Diz ele: “Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos o seu processo mental.”
Quanto a isso, não há dúvidas: se pensamos os nossos pensamentos enquanto lemos, na verdade não lemos. Nossa atenção não está no texto. Ele continua: “Durante a leitura nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios. Quando esses, finalmente, se retiram, o que resta? Daí se segue que aquele que lê muito e quase o diz inteiro … perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria… Este, no entanto, é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito ainda mais que um trabalho manual contínuo…”
Nietzsche pensava o mesmo e chegou a afirmar que, nos seus dias, os eruditos só faziam uma coisa: passar as páginas dos livros. E com isso haviam perdido a capacidade de pensar por si mesmos. “Se não estão virando as páginas de um livro eles não conseguem pensar. Sempre que se dizem pensando eles estão, na realidade, simplesmente respondendo a um estímulo, – o pensamento que leram… Na verdade eles não pensam; eles reagem. (…) Vi isso com meus próprios olhos: pessoas bem dotadas que, aos trinta anos, haviam se arruinado de tanto ler. De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo – ler um livro é simplesmente algo depravado…”
E, no entanto, eu me daria por feliz se as nossas escolas ensinassem uma única coisa: o prazer de ler!
Rubem Alves