“O
ateniense Dêmades condenou um homem da sua cidade que tinha por
ofício vender as coisas necessárias para os enterros, sob a
alegação de que exigia um lucro excessivo e esse lucro não lhe
podia vir sem a morte de muitas pessoas. Tal julgamento parece estar
mal pronunciado, na medida em que não se obtém benefício algum a
não ser com prejuízo de outrem, e que dessa maneira seria preciso
condenar toda a espécie de ganho.
O
mercador só faz bem os seus negócios por causa da devassidão dos
jovens; o lavrador, pela carestia dos cereais; o arquitecto, pela
ruína das casas; os oficiais de justiça, pelos processos e
contendas dos homens; mesmo as honras e a atividade dos ministros da
religião provêm da nossa morte e dos nossos vícios. Nenhum médico
se alegra com a saúde mesmo dos seus amigos, diz o antigo cômico
grego, nem o soldado com a paz da sua cidade; e assim sucessivamente.
E o que é pior: cada um sonde dentro de si mesmo, e descobrirá que
a maioria dos nossos desejos íntimos nascem e alimentam-se às
expensas de outrem.
Considerando
isso, veio-me à mente que nisso a natureza não contradiz a sua
organização geral, pois os naturalistas afirmam que o nascimento,
desenvolvimento e aumento de cada coisa são a alteração e
degeneração de uma outra, conforme
afirma Lucrécio:
Pois
quando algo se transforma e muda de natureza, imediatamente há morte
no objeto que existia antes.”
Michel
de Montaigne,
in
Ensaios
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