É
fato que num mundo cada vez mais frenético, até certo ponto
insensível e iconoclasta quanto às coisas do passado e dos
sentimentos e marcas/marcos de origem e telúricos, num ambiente
histórico em constante agitação e turbulentas mudanças,
embrenhar-se nas veredas da memória se constitui em feito notável,
um desafio afetivo-intelectual de elevados valor e monta. O escritor
Tarcísio Gurgel, nascido em Mossoró e radicado em Natal, ingressou
nessa cápsula do tempo com a coragem dos desbravadores. E nos trouxe
de lá, de onde esteve intimorato, “Inventário do Possível”, um
conjunto sensivelmente encadernado de memórias e belezas herdadas,
ora editado pela “Sarau das Letras” e pela “Edufrn”, com um
capricho material e visual que faz merecer o destaque que emprestamos
de logo à capa e ao projeto gráfico desenvolvidos por Rafael Sordi
Campos.
Já
tomando o norte do conteúdo da obra, afirmo que não me surpreendeu
ter Tarcísio se enveredado por esse segmento literário da
memorialística. Sempre compreendi que o olhar circular de Tarcísio,
homem e intelectual que nada perde de vista, faria com que fosse
estimulada essa veia. E agora nos traz de presente a todos os seus
leitores um livro que, apesar de voltar o foco para o passado, possui
uma leveza e um frescor singulares e o cotejo delicado e sutil com o
tempo presente, além do estilo beletrista do seu autor, elegante em
tudo, destacadamente no uso da palavra, seja travando o bom diálogo
pessoal e dedicando atenção adequada aos interlocutores – sabendo
deles extrair o essencial e o valioso – seja na escrita altiva e
fluente que passeia pelas páginas do livro e pelas pessoas, casas,
ruas, cidades e recordadas vivências em meio à sua ancestralidade e
a muitos que vivem e compartilham seus dias nos tempos do frenesi de
hoje.
Um
trecho no capítulo de abertura do livro já prenuncia belezas, não
somente de natureza genealógica e histórica, mas de forte conteúdo
literário-artístico, que seguem encadeadas na obra: “Das figuras
avoengas não me atrevo a falar. Afinal, só dou conta de ter
avistado em pessoa Vovô Lôlinha: Lourencinho, o professor Lourenço
Gurgel, pai de minha mãe Dalila, na presença de quem cheguei a
estar, temeroso de lhe pedir a bênção e olhando-o com os tímidos
olhos da infância, em Caraúbas. Dos outros não falo porque sua
existência para mim é coisa de oitiva, vagas menções, retratos de
álbum de parede, como o do meu outro avô Neco, de Caicó – pai do
meu pai Juvenal – semiesquecido, tristemente preso em sua redoma de
vidro (como a Rosinha Palatnik do belo poema de Iracema Macedo, em
sua tumba) numa das paredes da sala de visitas de nossa casa em
Mossoró.”
Tarcísio
Gurgel nos presenteia desta feita com o que noutra parte intitula de
“prodígio da recuperação memorialística”, como se fosse uma
“recherche” proustiana: “Naquela experiência passageira,
descobríamos imagens, sons, sabores e odores que viríamos
reencontrar tempos depois num poema do meu irmão Deífilo.” A
madeleine talvez substituída pelo pão sempre aquecido da poesia e
das lembranças, transportando-nos todos ao tempo da paterna Padaria
Santa Rita (“o ponto de partida”) e as suas seis portas agora
abertas para a visita dos leitores curiosos e ávidos pela narrativa
e descrição de belezas herdadas por Tarcísio Gurgel, verdadeiro
“fermento” da cultura potiguar. O que nos entrega é documento
valioso da memória e é peça estético-literária marcante.
Pelo
conjunto saboroso que nos traz, que transcende o interesse familiar
do autor, o livro em questão pode muito bem “…ser lido como se
fosse um romance…”, como lembra a frase de Natalia Ginsburg,
autora de “Léxico Familiar”, que Tarcísio inscreve e destaca
nas primeiras páginas da sua imprescindível poética da memória,
traduzida e firmada em “Inventário do Possível”.
Lívio
Oliveira, in www.substantivoplural.com.br