quarta-feira, 24 de junho de 2015

Tarcísio Gurgel e as belezas herdadas: o pão da memória

Tarcísio Gurgel e as belezas herdadas: o pão da memória

É fato que num mundo cada vez mais frenético, até certo ponto insensível e iconoclasta quanto às coisas do passado e dos sentimentos e marcas/marcos de origem e telúricos, num ambiente histórico em constante agitação e turbulentas mudanças, embrenhar-se nas veredas da memória se constitui em feito notável, um desafio afetivo-intelectual de elevados valor e monta. O escritor Tarcísio Gurgel, nascido em Mossoró e radicado em Natal, ingressou nessa cápsula do tempo com a coragem dos desbravadores. E nos trouxe de lá, de onde esteve intimorato, “Inventário do Possível”, um conjunto sensivelmente encadernado de memórias e belezas herdadas, ora editado pela “Sarau das Letras” e pela “Edufrn”, com um capricho material e visual que faz merecer o destaque que emprestamos de logo à capa e ao projeto gráfico desenvolvidos por Rafael Sordi Campos.
Já tomando o norte do conteúdo da obra, afirmo que não me surpreendeu ter Tarcísio se enveredado por esse segmento literário da memorialística. Sempre compreendi que o olhar circular de Tarcísio, homem e intelectual que nada perde de vista, faria com que fosse estimulada essa veia. E agora nos traz de presente a todos os seus leitores um livro que, apesar de voltar o foco para o passado, possui uma leveza e um frescor singulares e o cotejo delicado e sutil com o tempo presente, além do estilo beletrista do seu autor, elegante em tudo, destacadamente no uso da palavra, seja travando o bom diálogo pessoal e dedicando atenção adequada aos interlocutores – sabendo deles extrair o essencial e o valioso – seja na escrita altiva e fluente que passeia pelas páginas do livro e pelas pessoas, casas, ruas, cidades e recordadas vivências em meio à sua ancestralidade e a muitos que vivem e compartilham seus dias nos tempos do frenesi de hoje.
Um trecho no capítulo de abertura do livro já prenuncia belezas, não somente de natureza genealógica e histórica, mas de forte conteúdo literário-artístico, que seguem encadeadas na obra: “Das figuras avoengas não me atrevo a falar. Afinal, só dou conta de ter avistado em pessoa Vovô Lôlinha: Lourencinho, o professor Lourenço Gurgel, pai de minha mãe Dalila, na presença de quem cheguei a estar, temeroso de lhe pedir a bênção e olhando-o com os tímidos olhos da infância, em Caraúbas. Dos outros não falo porque sua existência para mim é coisa de oitiva, vagas menções, retratos de álbum de parede, como o do meu outro avô Neco, de Caicó – pai do meu pai Juvenal – semiesquecido, tristemente preso em sua redoma de vidro (como a Rosinha Palatnik do belo poema de Iracema Macedo, em sua tumba) numa das paredes da sala de visitas de nossa casa em Mossoró.”
Tarcísio Gurgel nos presenteia desta feita com o que noutra parte intitula de “prodígio da recuperação memorialística”, como se fosse uma “recherche” proustiana: “Naquela experiência passageira, descobríamos imagens, sons, sabores e odores que viríamos reencontrar tempos depois num poema do meu irmão Deífilo.” A madeleine talvez substituída pelo pão sempre aquecido da poesia e das lembranças, transportando-nos todos ao tempo da paterna Padaria Santa Rita (“o ponto de partida”) e as suas seis portas agora abertas para a visita dos leitores curiosos e ávidos pela narrativa e descrição de belezas herdadas por Tarcísio Gurgel, verdadeiro “fermento” da cultura potiguar. O que nos entrega é documento valioso da memória e é peça estético-literária marcante.
Pelo conjunto saboroso que nos traz, que transcende o interesse familiar do autor, o livro em questão pode muito bem “…ser lido como se fosse um romance…”, como lembra a frase de Natalia Ginsburg, autora de “Léxico Familiar”, que Tarcísio inscreve e destaca nas primeiras páginas da sua imprescindível poética da memória, traduzida e firmada em “Inventário do Possível”.
Lívio Oliveira, in www.substantivoplural.com.br

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