“Enchem a boca de paz, e não há tal paz
no mundo. E senão, quem há tão cego, que não veja o mesmo hoje em toda a parte?
Dizem que há paz nos reinos, e os vassalos não obedecem aos reis: dizem que há
paz nas cidades, e os súbditos não obedecem aos magistrados: dizem que há paz
nas famílias, e os filhos não obedecem aos pais: dizem que há paz nos
particulares, e cada um tem dentro em si mesmo a maior e a pior guerra. Havia
de mandar a razão, e o racional não lhe obedece; porque nele, e sobre ela
domina o apetite. (...) A paz do mundo é guerra que se esconde debaixo da paz.
Chama-se paz e é lisonja: chama-se paz, e é dissimulação: chama-se paz, e é
dependência: chama-se paz, e é mentira, quando não seja traição.”
E agora, cavalheiros, eu vos deixo
uma palavra
que fique nas vossas mentes
e nas vossas memórias
como princípio e também como fim
de toda a metafísica. (Tal qual o professor
aos estudantes
ao encerrar o seu curso repleto.) Tendo estudado antigos e
modernos,
sistemas dos gregos e dos germânicos,
tendo estudado e situado Kant,
Fichte, Schelling e Hegel,
situado a doutrina de Platão,
e Sócrates superior a Platão,
e outros ainda superiores a Sócrates
buscando pesquisar e situar,
tendo estudado bastante o divino Cristo,
eu vejo hoje reminiscências daqueles
sistemas grego e germânico,
deparo todas as filosofias,
templos e dogmas cristãos encontro,
e mesmo sem chegar a Sócrates eu vejo
com absoluta clareza,
e sem chegar até o divino Cristo,
eu vejo
o puro amor do homem por seu camarada,
a atração de um amigo pelo amigo,
de uma mulher pelo marido e vice-versa
quando bem conjugados,
de filhos pelos pais, de uma cidade
por outra, de uma terra
por outra.
Walt Whitman,
in Leaves of Grass (Folhas de Relva)
Isto aconteceu
na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que
encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim
um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de
cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou
o meu ombro:
— Vejo que
aprecia essas imagens antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando
os lábios murchos num sorriso amável: - Tenho na sacristia algumas
preciosidades. Quer vê-las?
Solícito e
trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores
remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa
Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos
tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a
inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já
carcomidos... Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele
próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo,
acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.
— Volte sempre
— pediu-me.
— Impossível —
eu disse. — Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia...
— acrescentei se nenhuma esperança.
— E então, até
logo! — ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu
melancólico como o destroço de um naufrágio.
Olhei-o. Sob a
luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha
fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?... “Então, adeus!”, ele
deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma
ideia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé
aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E
mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que
mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!...
Ouça, leitor:
tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las
nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta
das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade
seca da morte.
— Até logo! -
eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.
Afastei-me e
de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os
cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então, adeus!”,
pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.”
Nesta mesma noite
houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de
um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o
meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.
Voltei-me.
Diante de mim, o padre velhinho sorria.
— Boa noite!
Fiquei muda.
Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.
— Que
coincidência... — balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu
dizer.— Eu não esperava vê-lo... tão cedo.
Ele sorria,
sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que
melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos
despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a
divertir-se com a minha surpresa. “Eu não disse até logo?”, os olhinhos
enevoados pareciam perguntar com ironia.
Durante o
jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o
mundo. Mas principalmente estranho...”
Meu vizinho da
esquerda quis saber entre duas garfadas:
— Então a
senhora vai mesmo nos deixar amanhã?
Olhei para a
bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta
com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.
—
Ah, não sei... Antes eu sabia, mas agora já não sei.
*Documentário que conta a incrível história do talentoso cantor e compositor norte-americano Sixto Rodriguez, que, na iminência de uma promissora carreira, conhece o fracasso, desaparece e é dado como morto. Emocionante!
“Minhas intuições se tornam mais claras
ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é
uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o
sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de
chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através
do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é
não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo
claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de
escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que
acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente
torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma
certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra
nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo:
assim como num copo de água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a
água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco.
Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é
por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo,
por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a
palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o
que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e,
de cambulhada, a escrever.”
Clarice
Lispector, in Crônicas
no Jornal do Brasil (1969)
“Cada
indivíduo vê o mundo - e o que este tem de acabado, de regular, de complexo e
de perfeito - como se se tratasse apenas de um elemento da Natureza a partir do
qual tivesse que constituir um outro mundo, particular, adaptado às suas
necessidades. Os homens mais capazes tomam-no sem hesitações e procuram na
medida do possível comportar-se de acordo com ele. Há outros que não se
conseguem decidir e que ficam parados a olhar para ele. E há ainda os que
chegam ao ponto de duvidar da existência do mundo.
Se alguém se sentisse tocado por esta
verdade fundamental, nunca mais entraria em disputas e passaria a considerar,
quer as representações que os outros possam fazer das coisas, quer a sua, como
meros fenômenos. Porque de fato verificamos quase todos os dias que aquilo que
um indivíduo consegue pensar com toda a facilidade pode ser impossível de
pensar para um outro. E não apenas em relação a questões que tivessem uma
qualquer influência no bem estar ou no sofrimento das pessoas, mas também a
propósito de assuntos que nos são totalmente indiferentes.”
Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina
do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história
de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e
cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no
social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no
Uruguai.
Durante quase 50 anos, o mundo nos viu
como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do
império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de
intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.
Quase 50 anos recordando o Maracanã,
nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez
aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma
vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho
de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de
meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.
Quem tivera a força de quando éramos
capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje
real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar
contas ou para reverberar memórias.
Me
angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é
possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira
tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta
Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas
cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina
pátria de todos que está se formando.
Carrego as culturas originais esmagadas,
com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré
sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância
eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança.
Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida
social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios
na América.
Carrego o dever de lutar por pátria para
todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o
caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é
necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferenças e
discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de
acordo.
A tolerância é o fundamento de poder
conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.
O combate à economia suja, ao
narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas,
procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se
enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais.
Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política,
os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de
felicidade.
Parece que nascemos apenas para consumir
e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até
autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e
enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se
aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam
imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio
mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de
esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa
época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos
uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a
natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade,
contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade
que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem:
o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é
pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o
cenário da natureza.
Arrasamos
a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento.Enfrentamos o
sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com
eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
Há em toda a beleza uma amargura
secreta e confundida que é latente
ambígua indecifrável duplamente
oculta a si e a quem na olhar obscura Não fica igual aos vivos no que dura
e a não pode entender qualquer vivente
qual no cabelo orvalho ou brisa rente
quanto mais perto mais se desfigura Ficando como Helena à luz do ocaso
a língua dos dois reinos não lhe é azo
senão de apartar tranças ofuscante Mas à tua beleza não foi dado
qual morte a abrir teu juvenil estado
crescer e nomear-se em cada instante?
Walter
Benjamin, in Sonetos
Tradução de Vasco Graça Moura
Uma
coreografia com vermes microscópicos, embriões fluorescentes de ratinhos,
proteínas coloridas que imitam o arco-íris e um globo terrestre na forma de mil
e um ventos. Estas são algumas das imagens científicas que concorreram ao Art
of Science 2013, uma competição promovida pela Universidade de Princeton que
pretende provar o quão estão errados os que julgam que a ciência não tem nada
de artístico.
O que é vida? Mais precisamente, o que é
a vida de
um ser humano? O que e quem a define?
Já
tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza.
Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é
deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...
Eram
6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu
nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir
saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu
socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três
anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.
Cecília
Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito
navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste.
Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o
horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”
Da.
Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa,
sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela
fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era
infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está
chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”
Mas
tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores,
humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade,
sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão,
ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha
morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada,
ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às
pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.
Mas
a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem
velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai.
Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos
analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar
severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a
eutanásia?".
Há
dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo.
Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma
dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência
apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume
mandava; costume a que frequentemente se dá o nome de ética.
Um
outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem
controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah,
com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria!
Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu
dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu
inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.
Dir-me-ão
que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu
também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar
os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida"
é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que
é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a
bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos
monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?
Confesso
que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a
forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define
biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da
beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza,
o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.
Muitos
dos chamados "recursos heroicos" para manter vivo um paciente são, do
meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela
vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está
fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".
Comovi-me
com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego,
surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se
por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro
em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não
vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que
lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e
pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do
sofrimento.
Dizem as escrituras sagradas: "Para
tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e
a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige
que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.
Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a
"morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da
morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que
ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a
padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo,
com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de
causar medo.
Rubem
Alves, in Folha de São Paulo, Caderno Sinapse, dia 12/10/03
“É preciso ter um espírito indignado,
aberto à comiseração. Eu escrevi aqui na prisão tudo o que aprendi, senão
lembraria mais alguma coisa. E Cristo? Cristo respondia à realidade chorando,
sorrindo, entristecendo-se ficando furioso e até angustiando-se; não foi com um
sorriso que Ele caminhou ao encontro dos sofrimentos e não desprezou a morte,
mas rezou no Jardim de Getsemani, pedindo para evitar o cálice: 'Meu
Pai, se é possível, afasta de mim esse cálice; todavia, não seja como eu quero,
mas como Tu queres.' (Matheus, XXVI, 39)"
“Damos festas, abandonamos as nossas
famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não
mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das
nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que
fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns
atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre
por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma
doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma
hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades
e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginamos,
embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas
horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis.
Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo,
mais.”
Navegação perigosa, a
vida: em meio às tempestades,
somos às vezes mais de lastimar que náufragos.
Tendo como piloto de nossas vidas a Fortuna,
incertamente é que vogamos no mar alto;
uns fazem boa viagem, outros ao contrário, mas
todos chegam ao mesmo porto sob a terra.
Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com as suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal. Quando Helena Lanari
dizia o “coqueiro”
O coqueiro ficava muito mais vegetal.
Sophia
de Mello Breyner Andresen,
poeta portuguesa
É
bom ter um dia complicado se formos nós a complicá-lo, à medida que vamos
andando. São os dias ricos. Nunca sabemos o que vamos fazer a seguir mas
fazemos sempre qualquer coisa a seguir, para não interromper a cadeia.
Em
vez de jantarmos em casa ou jantarmos fora, entramos num restaurante onde
costumamosjantar e comemos apenas um petisco, um
aperitivo. Os anfitriões também apreciam a mudança. É como ir cumprimentá-los.
Metemos
conversa com um casal que só nos parece japonês porque queremos que seja, para
lhes perguntar como preparam a massa Shirataki, que tem zero calorias.
Perguntamos de onde são? Da Holanda, respondem. Os preconceitos, no sentido de
pré-juízos ou pensamentos já feitos (na verdade, substitutos e obstáculos do
conhecimento), são cada vez mais inúteis.
Os
hábitos são diferentes. Para celebrá-los, nem é preciso esquecê-los ou
trocá-los por alternativas, felizes ou desagradáveis. O melhor é interrompê-los
e acrescentar-lhes desvios espontaneamente decididos que enaltecem, através da
diversão, a felicidade subjacente.
Os
dias ricos levam outro dia inteiro a contar. Só fazer a lista do que se fez cansa
tão bem como nadar um quilômetro, devagarinho, num oceano vivo que nos
consente. Dá gosto recontar, mesmo quando o dia foi ontem; mesmo quando o dia é
hoje.
Complicar um dia não é desregrá-lo: é
inventar novas regras para aplicar. O prazer é uma coisa só mas tem muitos
caminhos. Experimentá-los é tão bom como descobri-los.
Miguel
Esteves Cardoso, in Jornal Público (21 Set 2013)
Dizem
que o poeta Luiz Campos, grande expoente da cantoria, recentemente falecido,
tinha um irmão que elegeu-se vereador por Mossoró. Chamava-se Vicente e era
chegado a uma farra. Quem me repassou o episódio em questão foi o poeta
Kydelmir Dantas, durante agradável libação no ‘Sêbado’ de Mossoró. O Sêbado é
uma mistura de bar e sebo de livros e discos que funciona preferencialmente aos
sábados, daí a originalidade de seu nome. O vereador fora convidado para um
animado leilão de Santa Luzia, padroeira de Mossoró e aboletou-se numa mesa
disposto a comer e beber do bom e do melhor. Toda vez que um adversário dava um
lance no leilão ele dobrava a oferta, só para inflacionar.
Ao
arrematar uma grade de cerveja e uma galinha cheia a preço exorbitante, o padre
ficou deveras animado com a sua generosidade e até aconselhou algumas
paroquianas solteiras e de procedência duvidosa a fazer companhia a Vicente,
prevendo, com sobrada razão, que a presença feminina seria um poderoso estímulo
para abertura desregrada das torneiras de sua generosidade. Não deu outra!
Animado pela presença das meninas, Vicente gastou o que tinha e o que não
tinha. No final da festa, estava devendo mais de cinco mil reais à paróquia,
tudo devidamente anotado pelo vigário numa caderneta. Ao ser apresentada a
‘dolorosa’, Vicente não se fez de rogado e sacou imediatamente de seu talão de
cheques do Banco do Brasil, arredondando a cifra para R$ 6 mil. Datou, assinou
e entregou ao sacerdote, que não cabia em si de tanta felicidade.
No
dia seguinte, por volta das 10 e meia da manhã, via-se o padre caminhar
visivelmente nervoso e agitado rumo à casa de Vicente. Ao bater na porta
deparou com uma cena previsível… Calças penduradas nos armadores, calcinhas
femininas espalhadas pelo chão e o Vicente de ressaca, só de cueca numa rede,
com uma de suas paroquianas. O padre foi direto ao assunto:
-
Vicente, rapaz, como é que você faz uma coisa dessa criatura?! Isso é um
completo absurdo!
-
O que foi, padre? Num tô lhe entendendo… Eu num lhe dei o cheque, home de Deus?
-
Deu… mas deu um cheque cruzado, predatado para o ano que vem e NOMINAL à Santa
Luzia! O que é que eu faço com o diabo desse cheque???
Vicente
bocejou, espreguiçou-se na fianga, enquanto a jovem que o acompanhava fugia
enrolada no lençol para o banheiro, com cerimônia do vigário. O malandro
demorava-se na resposta. O padre insistiu:
-
Me diga, homem de Deus, o que diabo eu vou fazer com a porra desse cheque?
Vicente deu-lhe uma resposta fulminante:
- Imprastifique!… Imprastifique senão o
senhor perde!
“O verdadeiro, o bom, o inigualável é
simples e é sempre idêntico a si mesmo, seja qual for a forma sob a qual
ocorre. Pelo contrário, o erro, sobre o qual sempre recairá a censura, é de uma
extrema diversidade, diferente em si mesmo, em luta não apenas contra o
verdadeiro e bom mas também consigo mesmo, sempre em contradição consigo
próprio. É por isso que em todas as literaturas as expressões de censura hão-de
ser sempre muito mais que as palavras destinadas aos louvores.”
O primeiro amor já passou
o segundo amor já passou
como passam os afluentes
como passam as correntes
que desencontram do mar
Como qualquer atitude
também passa a juventude
que nem findou de chegar. O primeiro amor já passou
o segundo amor já passou
como passam os espelhos
como passam os conselhos
ilusões de pedra e cal
Como passam os perigos
e tantos muitos amigos
sem deixar nenhum sinal. O primeiro amor já passou
o segundo amor já passou
como passam as gaivotas
as vitórias as derrotas
fantasias carnavais
as inocências perdidas
como passam avenidas
corredores temporais
A correnteza dos rios
como passam os navios
que a gente acena do cais.
“Não invejemos a certa espécie de gente as suas
grandes riquezas: eles as têm à custa de um ônus que não nos daria bom cômodo.
Estragaram o seu repouso, a sua saúde, a sua felicidade e a sua consciência,
para as conseguir: isso é caro demais, e não há nada a ganhar por esse preço.
Quando se é novo, muitas vezes é-se pobre: ou ainda
não se fez aquisições, ou as heranças ainda não vieram. A gente torna-se rico e
velho ao mesmo tempo; tão raro é poderem os homens reunir todas as vantagens!
E se isso acontece a alguns, não há que invejá-los:
eles têm a perder com a morte o bastante para serem lamentados. É preciso
trinta anos para pensar na fortuna; aos cinquenta está feita; constrói-se na
velhice e morre-se quando ainda se está às voltas com pintores e vidraceiros.
Qual o fruto de uma grande fortuna, se não gozar a vaidade, indústria, trabalho
e esforço dos que vieram antes de nós, e trabalharmos nós mesmos, plantando,
construindo, adquirindo, para a posteridade?
Em todas as
condições, o pobre está mais próximo do homem de bem, e o opulento não está
longe da ladroeira. A capacidade e a habilidade não levam a grandes riquezas.”
Os
anos cinquenta foram marcados na música popular por ter revelado e consagrado
diversos artistas que se notabilizaram principalmente pelo forte poder que o
rádio mantinha como meio de comunicação, era a fase áurea dos programas de
auditório, e o Brasil vivia um período de crescimento econômico muito
promissor. Contudo, o repertório praticado por muitos desses artistas eram
voltados para uma tendência que se materializou com a forte penetração dos
ritmos latinos no cenário cultural brasileiro e que acabou abolerando o nosso
samba tradicional. Fora isso, é curioso notar que apesar de toda euforia
desenvolvimentista o que predominava como poética musical eram os intermináveis
dramas muitos deles representados por lancinantes traições, tendo no compositor
gaúcho Lupicínio Rodrigues o maior expoente do gênero. Havia também um certo
baixo astral romântico que vinha acompanhando alguns de nossos intérpretes e
compositores: era a chamada música de fossa, que acabava tendo um apelo
comercial muito grande e atingia em cheio os corações das pessoas,
despertando-as para uma reflexão sobre suas angústias e sofrimentos pessoais.
Em que pese a qualidade dessas canções, títulos como “Meu mundo caiu” de Maysa,
“Bom dia tristeza”, de Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes, “Vingança”, “Ela
disse-me assim”, Dona divergência” e “Nunca” todas de Lupicínio, além dos
sucessos de Dolores Duran, “Fim de caso”, “Solidão”, “Canção da tristeza”, e
“Castigo” predominavam no repertório das rádios e invadiam os lares.
Apesar
desse cenário, a década de cinquenta também seria marcada pela redescoberta de
grandes compositores do passado e que já estavam sendo esquecidos do público.
Foi o que aconteceu com José Barbosa da Silva, o Sinhô, um dos fixadores do
samba nos anos vinte que teve parte de sua obra relembrada por um de seus mais
fiéis intérpretes, Mário Reis, que também voltava à cena depois de uma
prolongada ausência, e Noel Rosa, que seria revivido com toda a riqueza de sua
obra por Araci de Almeida.
Dentre
os inúmeros relançamentos que se pretendiam marcar e perpetuar nomes outrora
consagrados, um disco em especial se destacou e foi justamente gravado por
Araci de Almeida, uma de nossas mais importantes intérpretes. Apesar de ficar
nos últimos anos de sua vida conhecida pelas suas atuações ranzinzas como
jurada do programa de calouros de Silvio Santos, Araci foi uma das mais
completas sambistas e uma das mais brilhantes cantoras de nossa música popular.
Não foi à toa que lhe foi dado o título de “O samba em pessoa”, termo que dá
nome ao seu disco lançado em 1958, onde demonstra todo seu inigualável talento
e retoma as raízes do samba produzido nos anos trinta e quarenta.
O
LP nos traz doze músicas iniciando-se com Batente,
de Almirante, radialista, pesquisador e compositor e que havia sido primitivamente
gravado em 1930 pelo Bando de Tangarás, grupo formado por ele, Almirante, Noel
Rosa, João de Barro, Henrique Brito e Alvinho; Minha cabrocha, samba de Lamartine Babo, autor que passeava pelos
mais diversos gêneros com muita competência, teve sua primeira gravação
realizada por João de Barro em 1930; Caco
velho, de Ary Barroso, nos dá a verdadeira dimensão do talento desse
excepcional artista, tendo seu registro original sido feito por Elisa Coelho em
1934; Teleco-teco, de Murilo Caldas e
Marino Pinto, originalmente gravado por Isaura Garcia em 1941, é um samba
buliçoso revelando que o chamado “ritmo do teleco-teco” que muitos pensavam ter
surgido nos anos cinquenta, já era divulgado uma década atrás; Passarinho... passarinho é um samba
pouco conhecido de Lamartine Babo, gravado por Castro Barbosa em 1932.
O
disco contém ainda, como não poderia deixar de ser, quatro músicas do
repertório de Noel Rosa, o clássico Eu
vou pra Vila, apenas de Noel gravado por Almirante e Bando de Tangarás em
1930; Vitória, de Noel e Romualdo
Peixoto, o Nonô, um dos granes pianistas do samba, originalmente gravado com
muito sucesso por Silvio Caldas em 1933; Para
me livrar do mal, de Noel Rosa e Ismael Silva, gravado por Francisco Alves
em 29 de junho de 1932 e Adeus, samba
clássico assinado por Francisco Alves, Ismael Silva e Noel Rosa, tendo sua
gravação original sido realizada por Jonjoca e Castro Barbosa em 1932.
De
Nilton Bastos, Ismael Silva e Francisco Alves temos Arrependido, samba característico da turma do bairro do Estácio que
fixou as bases definitivas do samba moderno, tendo sua primeira gravação
realizada pela dupla de bambas, Francisco Alves e Mario Reis em 28 de fevereiro
de 1931; Tristezas não pagam dívidas,
de Manoel Silva é outra criação original de Francisco Alves de 1932, e revela
nesta versão de Aracy de Almeida em uma participação especial o talento de um
jovem cantor que então se destacava como uma promessa da música brasileira,
Carlos José, que se consagraria como sua voz grave cantando serestas.
Por
fim o LP se encerra com É batucada,
samba de Jose Luís de Moraes, o Caninha, em parceria com o Visconde de Bicoíba,
pseudônimo de Horácio Dantas, gravado em 1933 por Moreira da Silva,
constituindo-se num dos seus primeiros sucessos.
Todas
as músicas mereceram um arranjo fiel às suas versões originais, essa uma
exigência de Aracy de Almeida, que chegou inclusive a levar as primitivas
gravações para o estúdio da Polydor para que os músicos que a acompanhassem
pudessem ter uma ideia exata de como elas tinham sido concebidas, mantendo
desse modo as mesmas características das introduções e dos andamentos melódicos
originais.
Este disco nos revela Aracy de Almeida em
um momento de grande performance em sua carreira, brilhando muito. Reviver,
portanto, sambas tradicionais na voz de uma deusa de nossa canção num trabalho
realizado com muita competência, faz deste disco um marco fundamental não só de
sua trajetória, mas também um raro momento da grandeza de nossa música popular.
Luiz
AméricoLisboa Junior, in www.luizamerico.com.br
Se
há o Dia dos Namorados, por que não haver o Dia dos Amorosos, o Dia dos
Amadores, o Dia dos Amantes? Com todo o fogo desta última palavra, que circula
entre o carnal e o sublime?
E
o Dia dos Amantes Exemplares e o Dia dos Amantes Platônicos, que também são
exemplares à sua maneira, e dizem até que mais?Por que não instituir, ó psicólogos, ó sociólogos, ó lojistas e publicitários,
o Dia do Amor?
O
Dia de Fazê-lo, o Dia de Agradecer-lhe, o de Meditá-lo em tudo que encerra de
mistério e grandeza, o Dia de Amá-lo? Pois o Amor se desperdiça ou é
incompreendido até por aqueles que amam e não sabem, pobrezinhos, como é
essencial amar o Amor. E mais o Dia do Amor Tranquilo, tão raro e vestido de
linho alvo, o Dia do Amor Violento, o Dia do Amor Que Não Ousava Dizer o Seu
Nome Mas Agora Ousa, na arrebentação geral do século?
Amor
Complicado pede o seu Dia, não para tornar-se pedestre, mas para requintar em
sua complicação cheia de voos fora do horário e da visibilidade. Amor à
Primeira Vista, o fulminante, bem que gostava de ter o seu, cortado de
relâmpagos. E há motivos de sobra para se estabelecer o Dia do Amor ao Próximo,
e o Próximo somos nós, quando nos esquecemos de nós mesmos, abjurando o
enfezadíssimo Amor-Próprio.
Depressa,
amigos criadores de Dias, criai o do Amor Livre, entendido como tal o que
desata as correntes do interesse imediato, da discriminação racial e económica,
ri das divisões políticas, das crenças separatórias, e planta o seu estandarte
no cimo da cordilheira mais alta. Livre até no impulso egoístico da
correspondência geométrica. Amor que nem a si mesmo se escraviza, na total
doação que é converter-se no alvo, pois lá diz o que sabe: “Transforma-se o
amador na coisa amada.”
Haja
também um Dia para o Amor Não Correspondido, em que ele se console e crie
alento para perseverar, se esta é a sua condição fatal, melhor direi, a sua
graça. Pois todo Amor tem o seu ponto de luz, que às vezes se confunde com a
sombra.
O
Amor Impossível, exatamente por sua impossibilidade, merece a compensação de um
Dia. Concederemos outro ao Amor Perfeito, que não precisa de mais, mergulhado
que está na eternidade, a mover os sóis, independentemente da astrofísica. Ao
Amor Imperfeito, síntese muito humana de tantos, retrato mal copiado do modelo
divino, igualmente, se consagre um Dia generoso.
Amor
à Glória não carece ter Dia, nem Amor ao Dinheiro e seu primo (ou irmão) Amor
ao Poder. Eles se satisfazem, o primeiro com uma bolha de sabão, os outros dois
com a mesa posta. Mas ao Amor faminto e sem talher, e ao que nenhuma iguaria
lhe satisfaz, porque sua fome vai além dos alimentos e é a fome em si, a
ansiosa procura do que não existe nem pode existir: um Dia para cada um.
E se mais Dias sobrarem, que sejam
reservados para os Amores de que não me lembro no momento mas certamente
existem, pois sendo o Amor infinito em sua finitude, isto é, fugindo ao tempo
no tempo, e multiplicando-se em invenções, sutilezas, desvarios, enigmas e tudo
mais, sempre haverá um Amor novo no sujeito amante, dentro do Amor que nele
pousou e que cada manhã nasce outra vez, de sorte que o mesmo Amor é cada dia
Outro sem deixar de ser o Antigo, e são muitos outros concentrados e não
compendiados na potencialidade de amar. Assim sendo, recomendo e requeiro e
decreto que todos os dias do ano sejam Dias do Amor, e não mais disso ou
daquilo, como erradamente se convencionou e precisa ser corrigido. Tenho dito.
Cumpra-se.
"O que nos ajuda mais a conservar e
manter a nossa força é o fato de sermos amados; e o que se lhe opõe mais é o
fato de termos medo. O medo é mau guarda da nossa longevidade; a benevolência,
pelo contrário, é fiel e dura até a eternidade."
O
senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de
comer como um abade.
Dona
Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário
belga.
Os
pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o
canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das
nossas folhas diárias.
Silêncio.
De
repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
—
Papai, que é plebiscito?
O
senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O
pequeno insiste:
—
Papai?
Pausa:
—
Papai?
Dona
Bernardina intervém:
—
Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe
faz mal.
O
senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
—
Que é? Que desejam vocês?
—
Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
—
Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é
plebiscito?
—
Se soubesse, não perguntava.
O
senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com
a gaiola:
—
Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
—
Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
—
Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
—
Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
—
Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
—
A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito!
Então? A gente está esperando! Diga!...
—
A senhora o que quer é enfezar-me!
—
Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é
nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa
quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e
o menino ficou sem saber!
—
Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho
mal remunerado.
—
Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o
que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
—
Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
—
Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei,
Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O
senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
—
Mas se eu sei!
—
Pois se sabe, diga!
—
Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer!
Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E
o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para
o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No
quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de
flor de laranja e um dicionário...
A
menina toma a palavra:
—
Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
—
Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não
sabia o que é plebiscito!
—
Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário
de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
—
Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que
tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona
Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
—
Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O
negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele
entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
—
É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu!
eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A
mulher e os filhos aproximam-se dele.
O
homem continua num tom profundamente dogmático:
—
Plebiscito...
E
olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a
lição.
—
Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
—
Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem
introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...