Os
anos cinquenta foram marcados na música popular por ter revelado e consagrado
diversos artistas que se notabilizaram principalmente pelo forte poder que o
rádio mantinha como meio de comunicação, era a fase áurea dos programas de
auditório, e o Brasil vivia um período de crescimento econômico muito
promissor. Contudo, o repertório praticado por muitos desses artistas eram
voltados para uma tendência que se materializou com a forte penetração dos
ritmos latinos no cenário cultural brasileiro e que acabou abolerando o nosso
samba tradicional. Fora isso, é curioso notar que apesar de toda euforia
desenvolvimentista o que predominava como poética musical eram os intermináveis
dramas muitos deles representados por lancinantes traições, tendo no compositor
gaúcho Lupicínio Rodrigues o maior expoente do gênero. Havia também um certo
baixo astral romântico que vinha acompanhando alguns de nossos intérpretes e
compositores: era a chamada música de fossa, que acabava tendo um apelo
comercial muito grande e atingia em cheio os corações das pessoas,
despertando-as para uma reflexão sobre suas angústias e sofrimentos pessoais.
Em que pese a qualidade dessas canções, títulos como “Meu mundo caiu” de Maysa,
“Bom dia tristeza”, de Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes, “Vingança”, “Ela
disse-me assim”, Dona divergência” e “Nunca” todas de Lupicínio, além dos
sucessos de Dolores Duran, “Fim de caso”, “Solidão”, “Canção da tristeza”, e
“Castigo” predominavam no repertório das rádios e invadiam os lares.
Apesar
desse cenário, a década de cinquenta também seria marcada pela redescoberta de
grandes compositores do passado e que já estavam sendo esquecidos do público.
Foi o que aconteceu com José Barbosa da Silva, o Sinhô, um dos fixadores do
samba nos anos vinte que teve parte de sua obra relembrada por um de seus mais
fiéis intérpretes, Mário Reis, que também voltava à cena depois de uma
prolongada ausência, e Noel Rosa, que seria revivido com toda a riqueza de sua
obra por Araci de Almeida.
Dentre
os inúmeros relançamentos que se pretendiam marcar e perpetuar nomes outrora
consagrados, um disco em especial se destacou e foi justamente gravado por
Araci de Almeida, uma de nossas mais importantes intérpretes. Apesar de ficar
nos últimos anos de sua vida conhecida pelas suas atuações ranzinzas como
jurada do programa de calouros de Silvio Santos, Araci foi uma das mais
completas sambistas e uma das mais brilhantes cantoras de nossa música popular.
Não foi à toa que lhe foi dado o título de “O samba em pessoa”, termo que dá
nome ao seu disco lançado em 1958, onde demonstra todo seu inigualável talento
e retoma as raízes do samba produzido nos anos trinta e quarenta.
O
LP nos traz doze músicas iniciando-se com Batente,
de Almirante, radialista, pesquisador e compositor e que havia sido primitivamente
gravado em 1930 pelo Bando de Tangarás, grupo formado por ele, Almirante, Noel
Rosa, João de Barro, Henrique Brito e Alvinho; Minha cabrocha, samba de Lamartine Babo, autor que passeava pelos
mais diversos gêneros com muita competência, teve sua primeira gravação
realizada por João de Barro em 1930; Caco
velho, de Ary Barroso, nos dá a verdadeira dimensão do talento desse
excepcional artista, tendo seu registro original sido feito por Elisa Coelho em
1934; Teleco-teco, de Murilo Caldas e
Marino Pinto, originalmente gravado por Isaura Garcia em 1941, é um samba
buliçoso revelando que o chamado “ritmo do teleco-teco” que muitos pensavam ter
surgido nos anos cinquenta, já era divulgado uma década atrás; Passarinho... passarinho é um samba
pouco conhecido de Lamartine Babo, gravado por Castro Barbosa em 1932.
O
disco contém ainda, como não poderia deixar de ser, quatro músicas do
repertório de Noel Rosa, o clássico Eu
vou pra Vila, apenas de Noel gravado por Almirante e Bando de Tangarás em
1930; Vitória, de Noel e Romualdo
Peixoto, o Nonô, um dos granes pianistas do samba, originalmente gravado com
muito sucesso por Silvio Caldas em 1933; Para
me livrar do mal, de Noel Rosa e Ismael Silva, gravado por Francisco Alves
em 29 de junho de 1932 e Adeus, samba
clássico assinado por Francisco Alves, Ismael Silva e Noel Rosa, tendo sua
gravação original sido realizada por Jonjoca e Castro Barbosa em 1932.
De
Nilton Bastos, Ismael Silva e Francisco Alves temos Arrependido, samba característico da turma do bairro do Estácio que
fixou as bases definitivas do samba moderno, tendo sua primeira gravação
realizada pela dupla de bambas, Francisco Alves e Mario Reis em 28 de fevereiro
de 1931; Tristezas não pagam dívidas,
de Manoel Silva é outra criação original de Francisco Alves de 1932, e revela
nesta versão de Aracy de Almeida em uma participação especial o talento de um
jovem cantor que então se destacava como uma promessa da música brasileira,
Carlos José, que se consagraria como sua voz grave cantando serestas.
Por
fim o LP se encerra com É batucada,
samba de Jose Luís de Moraes, o Caninha, em parceria com o Visconde de Bicoíba,
pseudônimo de Horácio Dantas, gravado em 1933 por Moreira da Silva,
constituindo-se num dos seus primeiros sucessos.
Todas
as músicas mereceram um arranjo fiel às suas versões originais, essa uma
exigência de Aracy de Almeida, que chegou inclusive a levar as primitivas
gravações para o estúdio da Polydor para que os músicos que a acompanhassem
pudessem ter uma ideia exata de como elas tinham sido concebidas, mantendo
desse modo as mesmas características das introduções e dos andamentos melódicos
originais.
Este disco nos revela Aracy de Almeida em
um momento de grande performance em sua carreira, brilhando muito. Reviver,
portanto, sambas tradicionais na voz de uma deusa de nossa canção num trabalho
realizado com muita competência, faz deste disco um marco fundamental não só de
sua trajetória, mas também um raro momento da grandeza de nossa música popular.
Luiz
Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br
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