domingo, 22 de setembro de 2013

Um disco fundamental da MPB: Aracy de Almeida - O samba em pessoa (1958)


Os anos cinquenta foram marcados na música popular por ter revelado e consagrado diversos artistas que se notabilizaram principalmente pelo forte poder que o rádio mantinha como meio de comunicação, era a fase áurea dos programas de auditório, e o Brasil vivia um período de crescimento econômico muito promissor. Contudo, o repertório praticado por muitos desses artistas eram voltados para uma tendência que se materializou com a forte penetração dos ritmos latinos no cenário cultural brasileiro e que acabou abolerando o nosso samba tradicional. Fora isso, é curioso notar que apesar de toda euforia desenvolvimentista o que predominava como poética musical eram os intermináveis dramas muitos deles representados por lancinantes traições, tendo no compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues o maior expoente do gênero. Havia também um certo baixo astral romântico que vinha acompanhando alguns de nossos intérpretes e compositores: era a chamada música de fossa, que acabava tendo um apelo comercial muito grande e atingia em cheio os corações das pessoas, despertando-as para uma reflexão sobre suas angústias e sofrimentos pessoais. Em que pese a qualidade dessas canções, títulos como “Meu mundo caiu” de Maysa, “Bom dia tristeza”, de Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes, “Vingança”, “Ela disse-me assim”, Dona divergência” e “Nunca” todas de Lupicínio, além dos sucessos de Dolores Duran, “Fim de caso”, “Solidão”, “Canção da tristeza”, e “Castigo” predominavam no repertório das rádios e invadiam os lares.
Apesar desse cenário, a década de cinquenta também seria marcada pela redescoberta de grandes compositores do passado e que já estavam sendo esquecidos do público. Foi o que aconteceu com José Barbosa da Silva, o Sinhô, um dos fixadores do samba nos anos vinte que teve parte de sua obra relembrada por um de seus mais fiéis intérpretes, Mário Reis, que também voltava à cena depois de uma prolongada ausência, e Noel Rosa, que seria revivido com toda a riqueza de sua obra por Araci de Almeida.
Dentre os inúmeros relançamentos que se pretendiam marcar e perpetuar nomes outrora consagrados, um disco em especial se destacou e foi justamente gravado por Araci de Almeida, uma de nossas mais importantes intérpretes. Apesar de ficar nos últimos anos de sua vida conhecida pelas suas atuações ranzinzas como jurada do programa de calouros de Silvio Santos, Araci foi uma das mais completas sambistas e uma das mais brilhantes cantoras de nossa música popular. Não foi à toa que lhe foi dado o título de “O samba em pessoa”, termo que dá nome ao seu disco lançado em 1958, onde demonstra todo seu inigualável talento e retoma as raízes do samba produzido nos anos trinta e quarenta.
O LP nos traz doze músicas iniciando-se com Batente, de Almirante, radialista, pesquisador e compositor e que havia sido primitivamente gravado em 1930 pelo Bando de Tangarás, grupo formado por ele, Almirante, Noel Rosa, João de Barro, Henrique Brito e Alvinho; Minha cabrocha, samba de Lamartine Babo, autor que passeava pelos mais diversos gêneros com muita competência, teve sua primeira gravação realizada por João de Barro em 1930; Caco velho, de Ary Barroso, nos dá a verdadeira dimensão do talento desse excepcional artista, tendo seu registro original sido feito por Elisa Coelho em 1934; Teleco-teco, de Murilo Caldas e Marino Pinto, originalmente gravado por Isaura Garcia em 1941, é um samba buliçoso revelando que o chamado “ritmo do teleco-teco” que muitos pensavam ter surgido nos anos cinquenta, já era divulgado uma década atrás; Passarinho... passarinho é um samba pouco conhecido de Lamartine Babo, gravado por Castro Barbosa em 1932.
O disco contém ainda, como não poderia deixar de ser, quatro músicas do repertório de Noel Rosa, o clássico Eu vou pra Vila, apenas de Noel gravado por Almirante e Bando de Tangarás em 1930; Vitória, de Noel e Romualdo Peixoto, o Nonô, um dos granes pianistas do samba, originalmente gravado com muito sucesso por Silvio Caldas em 1933; Para me livrar do mal, de Noel Rosa e Ismael Silva, gravado por Francisco Alves em 29 de junho de 1932 e Adeus, samba clássico assinado por Francisco Alves, Ismael Silva e Noel Rosa, tendo sua gravação original sido realizada por Jonjoca e Castro Barbosa em 1932.
De Nilton Bastos, Ismael Silva e Francisco Alves temos Arrependido, samba característico da turma do bairro do Estácio que fixou as bases definitivas do samba moderno, tendo sua primeira gravação realizada pela dupla de bambas, Francisco Alves e Mario Reis em 28 de fevereiro de 1931; Tristezas não pagam dívidas, de Manoel Silva é outra criação original de Francisco Alves de 1932, e revela nesta versão de Aracy de Almeida em uma participação especial o talento de um jovem cantor que então se destacava como uma promessa da música brasileira, Carlos José, que se consagraria como sua voz grave cantando serestas.
Por fim o LP se encerra com É batucada, samba de Jose Luís de Moraes, o Caninha, em parceria com o Visconde de Bicoíba, pseudônimo de Horácio Dantas, gravado em 1933 por Moreira da Silva, constituindo-se num dos seus primeiros sucessos.
Todas as músicas mereceram um arranjo fiel às suas versões originais, essa uma exigência de Aracy de Almeida, que chegou inclusive a levar as primitivas gravações para o estúdio da Polydor para que os músicos que a acompanhassem pudessem ter uma ideia exata de como elas tinham sido concebidas, mantendo desse modo as mesmas características das introduções e dos andamentos melódicos originais.
Este disco nos revela Aracy de Almeida em um momento de grande performance em sua carreira, brilhando muito. Reviver, portanto, sambas tradicionais na voz de uma deusa de nossa canção num trabalho realizado com muita competência, faz deste disco um marco fundamental não só de sua trajetória, mas também um raro momento da grandeza de nossa música popular.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br

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