“Minhas intuições se tornam mais claras
ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é
uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o
sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de
chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através
do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é
não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo
claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de
escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que
acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente
torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma
certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra
nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo:
assim como num copo de água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a
água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco.
Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é
por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo,
por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a
palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o
que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e,
de cambulhada, a escrever.”
Clarice
Lispector, in Crônicas
no Jornal do Brasil (1969)
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