quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Epílogo

Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade.

Mário Quintana, em Sapato Florido

Papai



O mostrador dos batimentos cardíacos é o de cima, em azul. Controlo suas variações mesmo sabendo que nada posso fazer. Geralmente não passa dos 75 batimentos por minuto, nada alarmante, mas um pouco alto para um senhor de 88 anos em repouso. Os médicos não ligam, dizem ser natural, o coração é forçado a uma atividade maior por causa da precariedade do funcionamento dos pulmões, o da esquerda comprometido, o da direita aguentando, com a ajuda do oxigênio artificial, o trabalho dos dois. Mas apenas sem nenhum esforço. Ele jamais poderia andar, ou teria outro AVC, o terceiro. O que me traz a questão elementar, um paradoxo: em coma ele vive, se acordasse e tentasse se mexer para se acomodar melhor na cama, morreria em segundos.
Com meu marido foi assim. Morte quase instantânea, jogando tênis com o Marquinhos, meu filho mais moço. Ataque cardíaco fulminante. Foi o tempo de dobrar os joelhos, apoiar a mão esquerda no chão, a direita espalmada no coração, e escorar a queda. Nunca mais se levantou. Reconstruo a cena que a boca chorosa de meu filho contou para mim, para os médicos e, por telefone, bem mais tarde, para Nicolas, seu irmão mais velho, que estava trabalhando, plantão, quando isso aconteceu. Fazia o primeiro ano de residência médica no hospital mais badalado da cidade. Queria ser cirurgião cardíaco, terminou como oftalmologista, especialização em São Paulo. Nunca mais voltou a morar no Rio.
Quando o Afonso foi enterrado, a família acabou junto com ele. Um breve suspiro de cinco anos, enquanto o Marquinhos ainda estava no colégio, mas, depois que ele foi para Israel, nos limitamos a mim e a papai, com Nicolas em alguns fins de semana, depois eu, papai, Nicolas e sua esposa, depois eu, papai, Nicolas e sua esposa e Patrick, meu neto, mas aí então só nos feriados e, mesmo assim, nem todos, apenas os religiosos do nosso lado: Yom Kipur, Pessach e Roshashana. No meu aniversário eles não vinham. Mônica nasceu no mesmo dia que eu, 2 de outubro. Com o tempo, restou apenas o Natal, festa dos outros, na casa de outra família, em São Paulo. E mesmo assim parei de ir depois que papai passou a morar comigo.

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

Analise

Analise:
I. quem são quando comem, dormem, procriam, relaxam e assim por diante;
II. a qual categoria pertencem quando demonstram imperiosidade, arrogância ou raiva e repreendem a partir de uma posição elevada;
III. quantos objetos os escravizavam há pouco tempo, e para quais fins;
IV. em qual condição estarão em breve.

Marco Aurélio, em Meditações

Diário de Bernardo Soares

82.

Não sei que vaga carícia, tanto mais branda quanto não é carícia, a brisa incerta da tarde me traz à cara e à compreensão. Sei só que o tédio que sofro se me ajusta melhor, um momento, como uma veste que deixe de roçar numa chaga.
Pobre da sensibilidade que depende de um pequeno movimento do ar para o conseguimento, ainda que episódico, da sua tranquilidade! Mas assim é toda sensibilidade humana, nem creio que pese mais na balança dos seres o dinheiro subitamente ganho, ou o sorriso subitamente recebido, que são para outros o que para mim foi, neste momento, a passagem breve de uma brisa sem continuação.
Posso pensar em dormir. Posso sonhar de sonhar. Vejo mais claro a objetividade de tudo. Uso com mais conforto o sentimento externo da vida. E tudo isto, efetivamente, porque, ao chegar quase à esquina, um virar no ar da brisa me alegra a superfície da pele.
Tudo quanto amamos ou perdemos — coisas, seres, significações – nos roça a pele e assim nos chega à alma, e o episódio não é, em Deus, mais que a brisa que me não trouxe nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o poder perder tudo esplendidamente.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Caetano Veloso e Maria Bethânia | Baby

Perdão ao frustrado

Sonhei que o cervo ileso pedia perdão ao caçador frustrado.

Nemer Ibn El Barud, em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Hagar, o Horrível

Eixo

Alguém, nessa noite, pensa em ti
com tal força que desvia o curso da flora.
Poderiam, ambos, retificar
o uso dos sistemas: letra,
número,
intenção ou gesto nessa fração noturna,
não são mais do que celas
em desalinho.
Saquem os apetrechos.
Não importa a contenda que se arma
às armas.
O que julga saber e os que julgam
são uma esteira, apenas,
para a mudança da flora. Nessa noite,
em que alguém
pensa forte em ti e absorves
o pensamento imenso,
nessa noite,
o que nunca pudemos ser está pronto.

Edimilson de Almeida Pereira, em Guelras

De Mortuis



Não sei o que se passa no Instituto de Pesquisas Aplicadas em Frutas Tropicais e Subtropicais, nos arredores de Paris. Prefiro imaginar. Deve haver grandes especialistas vestidos de branco, equipados com toda a panóplia de títulos competitivos que, na França, são indispensáveis a qualquer categoria profissional, dos escritores aos pedicuros. Fantasmagóricos emissários da Papua, de Cipango e das florestas equatoriais da Amazônia circulam entre eles, oferecendo a exame sumarentos híbridos de goiaba com maracujá, de atemoia com nêspera, do perfumado cumaru com a olorosa lichia. Céticos, mordiscam, cheiram, acariciam as amostras. As sementes de um raro abricó carnívoro, contrabandeadas dos planaltos da Nova Guiné, germinam no viveiro de vidro. Como o instituto fica em Maisons-Laffitte, de tempos em tempos vertem-se discretas libações provenientes de nobre safra de mesmo nome.
Como todos os institutos que se respeitam, o de Pesquisas Aplicadas em Frutas Tropicais e Subtropicais dispõe de um setor de informações, um catálogo, uma mesa de onde saem altaneiras e esclarecedoras respostas às perguntas que ali chovem, vindas do encarregado dos papagaios do Jardin Zoologique, daqueles, sempre numerosíssimos na França, em busca de alguma nova e requintada toxina para envenenar suas esposas, de criadores e solucionadores de palavras cruzadas. O diretor de informações é um tal monsieur Philippe Ariès. Homem muito trabalhador. Entre uma e outra resposta às indagações sobre as 9.671 variedades de bagas não comestíveis da submata ceilonesa, monsieur Ariès escreve enormes volumes sobre a vida e a morte, sobre o homem na esfera privada e a história na esfera pública. Sua História social da criança e da família, que saiu em inglês em 1962 como Centuries of Childhood [Séculos de infância], seu estudo preliminar da História da morte no Ocidente, traduzido em 1974 como Western Attitudes Toward Death, e O homem diante da morte, que acaba de ser publicado numa tradução escorreita de Helen Weaver como The Hour of Our Death [A hora da nossa morte], fizeram de Ariès uma das “figuras de proa” (figures de proue) na atual escola de história e historiografia francesa, de enorme influência.
A história tradicional, como disse um aluno inglês, trata de “mapas e nomes”. Essa perspectiva um tanto literalista é contestada já faz muito tempo por áreas específicas como a história econômica, a história das ideias, a teoria e análise das relações internacionais, além da tentativa de construir uma totalidade orgânica dos registros da tecnologia, da invenção científica, da vida cotidiana no campo e na cidade, e dos arquivos das instituições sociais e da vida familiar, tentativa esta que tem um brilhante representante aqui nos eua em Daniel Boorstin. A escola francesa tem avançado radicalmente para a interioridade. Procura trazer à luz da narrativa metódica — e, na verdade, da quantificação — as fontes e os fluxos da consciência humana, as mudanças de sensibilidade e dos costumes emocionais numa determinada sociedade, meio ou época. Não há nenhuma tradução plenamente adequada para a expressão “histoire des mentalités”, apontando simultaneamente para a historicidade no velho sentido e para a primazia da interioridade no novo sentido. O crescimento dessa escola francesa é, em si mesmo, um episódio fascinante de “história interna”. O positivismo, na versão oitocentista de Auguste Comte, pregava que a história era o instrumento analítico geral por meio do qual uma sociedade chega a uma imagem coerente de sua gênese e de suas características próprias. Comte, Hippolyte Taine, Marx tinham insistido vigorosamente que a sociologia, a investigação estatística dos costumes sociais e das tendências demográficas, devia ser parte integrante dos métodos do historiador. Em paralelo a esta corrente, havia a grande tradição da literatura social realista francesa, de Balzac e Flaubert a Zola e Proust, com o foco vividamente documental e investigativo da narrativa literária concentrando-se sobre as atitudes, as instituições, as tendências psicológicas da sociedade francesa, rural e urbana, aristocrática e burguesa mercantil. Essas duas tradições paralelas parecem se reunir na obra pioneira de historiadores de gênio como Marc Bloch, Fernand Braudel e Lucien Febvre. Sobretudo Febvre fez as perguntas principais. Ele queria saber como as pessoas do século xvi pensavam e sentiam a respeito do amor, como vivenciavam e lidavam com a tensão emocional dos conflitos religiosos, quais atitudes adotavam diante da doença e da morte. Ele defendia “histórias da alegria, da compaixão, da angústia pessoal” em grande escala. Indagava se o surgimento dos óculos e as melhorias na iluminação artificial teriam destruído a grande civilização dos odores, da concorrida especialidade do olfato, como havia predominado nas cidades fétidas da Idade Média e do século xv. Muito antes de McLuhan, Febvre indagava sobre as implicações sensoriais e ideológicas da passagem gradual do manuscrito para a página impressa.
Uma galáxia inteira de historiadores franceses — e ultimamente ingleses e americanos — tem seguido as pegadas de Febvre. Não só examinam a estrutura e o desenvolvimento das relações conjugais, por exemplo, no campo e na cidade durante os séculos XVII e XVIII; procuram também determinar — e este é o ponto central — de que maneira os homens e mulheres da época entendiam, simbolizavam e concordavam ou tentavam se rebelar contra o que pensavam ser (e isso em si é uma questão problemática) as “realidades” do casamento, do sexo, da gestação e criação dos filhos, da herança e transmissão dos direitos de propriedade. Por exemplo, historiadores como Georges Duby tentam reviver as modificações na consciência humana da distância, da comunidade, do alcance pessoal, que devem ter sido profundas, conforme as grandes florestas da Europa da Alta Idade Média se faziam menos densas, conforme as estradas voltavam a ser transitáveis depois da queda do domínio romano. Outros historiadores querem saber em que exatos aspectos, em que medida, as expectativas do Inferno como era pregado e pintado na doutrina eclesiástica e o desgaste muito lento, mas constante, dessas expectativas afetaram ou não, de um lado, as modalidades da guerra e a tendência do casamento “incestuoso” na ordem da cavalaria e, de outro lado, a “mundanidade” nascente das classes mercantis.
A literatura e as artes, a história da transformação das palavras e da gramática, a materialidade da arquitetura pública e doméstica, a evolução dos livros de receitas e de cartilhas de escola, os registros do coletor de impostos e o glossário de expressões do escrivão público (com sua curiosa sobrevivência nas mensagens de felicitações ou condolências da Western Union), os sermões do padre da paróquia e as anotações clínicas do médico descrevendo para si e sua comunidade a natureza de uma determinada doença — tudo isso é material para o historiador das “mentalidades”. Quase por definição, nada que seja pensado, sentido, registrado, mas também nada que seja negligenciado por uma sociedade, é insignificante. Pois, se a percepção é uma condição histórica, a omissão também o é. Os homens e as mulheres antes de Freud não viam certos traços salientes de vida sexual nas crianças, neles mesmos, em seus sonhos? Escolhiam não os ver? Ou ainda não existia um vocabulário estabelecido para a definição e a enunciação desses traços? Faltam-nos histórias dos sonhos. Já se observou demoradamente que as crianças na arte medieval e renascentista eram adultos em miniatura, que a execução do artista não se estendia às qualidades intrínsecas da infância na aparência e nos movimentos da criança. Não havia praticamente nenhuma criança convincente na “universalidade” de Shakespeare. A criança é uma descoberta dos séculos XVIII e XIX, ela foi “inventada” pela sensibilidade libertária e romântica e pelas teorias rousseauístas da educação. Em sua História social da criança e da família, Ariès procurou rastrear e documentar a história desse acréscimo gradual e surpreendentemente tardio ao conjunto dos reconhecimentos públicos e pessoais essenciais. Então passou para a morte, para os modos mutáveis de consciência e interpretação emocional e intelectual que o homem ocidental veio a ter em relação à mortalidade como experiência individual e instituição coletiva.
A matéria-prima é imensa e variada: relatos verídicos e literários de doenças fatais e falecimentos; os contratos com a morte registrados nos testamentos; as crônicas das práticas e locais de sepultamento; as inúmeras mudanças, muitas vezes drásticas, na terminologia dos epitáfios e no estilo dos monumentos comemorativos; meditações filosóficas e litúrgicas sobre o sentido da morte; explorações ficcionais como A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói; diagnósticos médicos sobre as causas da morte; as mutáveis representações do “além”; os estudos da economia e da psicologia dos estados terminais e do passamento, tal como têm sido realizados por sociólogos e psicólogos sociais modernos (desde o trabalho pioneiro de Geoffrey Gorer na Inglaterra). De fato, a história das atitudes e gestos de uma sociedade perante a morte é, num sentido muito substancial, uma explanação central da própria sociedade.
É difícil resumir o argumento principal de Philippe Ariès neste presente volume. É difícil não só porque, ao contrário de muitos de seus pares em campo francês, Ariès toma um vasto tema e uma vasta escala temporal (um milênio) para seu quadro. Mas também porque os fios principais de sua tese ficam toldados por uma pletora de detalhes fascinantes, e porque, com uma sinceridade reconfortante e ao mesmo tempo levemente exasperante, Ariès faz ressalvas constantes e até entra em contradição com os postulados gerais que acabara de apresentar. Num conjunto recente de entrevistas autobiográficas, Ariès relembra seus primeiros anos entre a juventude dourada da Action Française, de extrema direita. A sensação de uma aventura travessa permanece. Mas agora Ariès combina o determinismo teórico rigorista que caracteriza grande parte da antropologia e historiografia francesa moderna com o empirismo alerta, flexível e desordenado da linhagem anglo-americana.
Em algum momento do século XII, afirma Ariès, uma vivência arcaica da morte, de tipo essencialmente coletivo, cedeu lugar, pelo menos entre a elite, a um sentimento personalizado de extinção, ao conceito de que falecia um indivíduo específico, “biográfico”. Ao longo da Idade Média e do período inicial da modernidade, as instâncias sociais e também personalizadas do luto, do sepultamento, da representação visual e comemoração dos mortos estiveram atuantes numa complexa variedade de modelos e práticas institucionalizadas. Esses, por sua vez, dependiam da classe social, do local, da estrutura religiosa dominante (católica ou protestante). Dependiam também dos tipos variáveis de demonstrar que esses textos são representativos — que podemos inferir deles com legitimidade as atitudes de toda uma sociedade e de toda uma época. Uma coisa é exemplificar as mudanças na terminologia dos testamentos e dos epitáfios; outra totalmente diferente é chegar a uma leitura confiante das atitudes mentais que sustentam tais “codificações” ou delas deduzir transformações cronológicas da sensibilidade ocidental. Em toda obra de historiografia, o próprio quadro mental do historiador desempenha um papel inevitavelmente seletivo e ordenador. Nas “histórias da consciência”, o processo de refração é duplo, e a luz das provas distantes passa pelo menos duas vezes pelo prisma interpretativo. Além disso, algumas magnitudes parecem desafiar as intuições e a habilidade de reconstituição do historien des mentalités. De que maneira e em que medida os fatos da aniquilação em massa na guerra global e no genocídio totalitário e da possibilidade de destruição nuclear, que agora enfrentamos, afetaram a concepção ocidental da morte individual? Ariès deixa o tema praticamente de lado. Pode ser que volte a ele.
Pensar a morte”, na famosa e inquietante expressão do filósofo Heidegger, é uma ação ao mesmo tempo terrivelmente pessoal e inteiramente comunal. Reunir elementos documentando a longa história e as condições que cercam tal ação é chegar a pequeníssima distância do próprio cerne de nosso ser. Esse livro é um momento de consciência fervorosa e, portanto, estranhamente revigorante.
22 de junho de 1981

George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

Capítulo 26 – O Autor Hesita



Súbito ouço uma voz: – Olá, meu rapaz, isto não é vida!
Era meu pai, que chegava com duas propostas na algibeira.
Sentei-me no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns instantes de pé, a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto comovido:
Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.
Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão.
Não tinha almoçado; almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao triste motivo da minha reclusão. Uma só vez falamos nisso, de passagem, quando meu pai fez recair a conversa na Regência: foi então que aludiu à carta de pêsames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta consigo, já bastante amarrotada, talvez por havê-la lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes.
Leu-ma duas vezes.
Já lhe fui agradecer este sinal de consideração, concluiu meu pai, e acho que deves ir também...
Eu?
Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago comigo uma ideia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dois projetos, um lugar de deputado e um casamento.
Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito e disposição, cujo fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta, porém, desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la bem. Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.
Aceitas?
Não entendo de política, disse eu depois de um instante; quanto à noiva.., deixe-me viver como um urso, que sou.
Mas os ursos casam-se, replicou ele.
Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa Maior...
Riu-se meu pai, e depois de rir, tornou a falar sério. Era-me necessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento.
Quanto à noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde à proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das coisas, das afeições, da família...
Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pai. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as sílabas com o dedo.
Bebeu o último gole de café; repotreou-se, e entrou a falar de tudo, do Senado, da Câmara, da Regência, da restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matacavalos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim:

arma virumque cano
A
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque
arma virumque cano
virumque

Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução; por exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a escrever virumque, – e sai-me Virgílio, então continuei:

Vir Virgílio
Virgílio Virgílio
Virgílio
Virgílio

Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim, lançou os olhos ao papel...
Virgílio! exclamou. Es tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília.

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Djavan | Doidice

Pura aparência

Suponho que no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem fôssemos e sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos encontrávamos. O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e também, como informação complementar importante, aquilo que os restantes sentidos — o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto — conseguissem perceber dele. Nessa hora inicial o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou silenciosa, com cheiro ou sem cheiro. Todas as coisas eram o que pareciam ser pela única razão de que não havia qualquer motivo para que parecessem doutra maneira e fossem outra coisa. Naquelas antiquíssimas épocas não nos passava pela cabeça que a matéria fosse “porosa”. Hoje, porém, embora sabedores de que, desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que composições de átomos, e que no interior deles, além da massa que lhes é própria e os define, ainda sobra espaço para o vazio (o compacto absoluto não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas, a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que de cada vez se nos apresente. Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico deverão ter-se manifestado num dia em que alguém teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior captável pela consciência e por ela utilizada como mapa de conhecimentos, podia ser, também, uma ilusão dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela veio a plasmar-se: “As aparências iludem”. Ou enganam, que vem a dar no mesmo. Não faltariam os exemplos se o espaço desse para tanto.
A este escrevinhador sempre o preocupou o que se esconde por trás das meras aparências, e agora não estou a falar de átomos ou de subpartículas, que, como tal, são sempre aparência de algo que se esconde. Falo, sim, de questões correntes, habituais, quotidianas, como, por exemplo, o sistema político que denominamos democracia, aquele mesmo que Churchill dizia ser o menos mau dos sistemas conhecidos. Não disse o melhor, disse o menos mau. Pelo que vamos vendo, dir-se-á que o consideramos mais que suficiente, e esse, creio, é um erro de percepção que, sem nos apercebermos, vamos pagando todos os dias. Voltarei ao assunto.

José Saramago, em O caderno

A brasilidade no traço de Portinari

Menino com Pipa (1947), de Cândido Portinari

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
 
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
 
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo

Leitura na intimidade



É verão. Mergulhada na cama macia, entre travesseiros de plumas, o rumor inconstante dos carros passando sobre as pedras arredondadas da rue de l'Hospice, na aldeia cinzenta de Saint-Sauveur-en-Puisaye, uma menina de oito anos lê em silêncio Os miseráveis de Victor Hugo. Ela não lê muitos livros; relê os mesmos sem parar. Adora Os miseráveis, com algo que mais tarde chamará de "paixão raciocinante"; sente que pode se aninhar entre as páginas dele "como um cão em seu canil". Todas as noites, anseia por seguir Jean Valjean em suas torturantes peregrinações, encontrar Cosette outra vez, encontrar Marius e até mesmo o temível Javert. (Na verdade, a pequena Gavroche, dolorosamente heroica, é a única personagem que não suporta.) Lá fora, no quintal, entre as árvores e flores plantadas em vasos, ela tem de competir pelo material de leitura com o pai, um militar que perdeu a perna esquerda nas campanhas da Itália. A caminho da biblioteca (seu recinto privado), ele pega seu jornal – Le Temps – e sua revista – La Nature – e, com "os olhos de cossaco brilhando sob as sobrancelhas grisalhas, varre das mesas quaisquer materiais impressos, que então o seguirão até a biblioteca e jamais verão de novo a luz do dia". A experiência ensinou a menina a manter seus livros fora do alcance dele.
A mãe não acredita em ficção: "Tanta complicação, tanto amor apaixonado nesses romances", diz ela para a filha. "Na vida real, as pessoas têm outras coisas com que se preocupar. Julgue você mesma: ouviu-me alguma vez gemer e choramingar por causa de amor como as pessoas fazem nesses livros? E olhe que eu teria direito a um capítulo inteiro! Tive dois maridos e quatro filhos!" Se encontra a filha lendo o catecismo para a próxima comunhão, fica imediatamente exasperada: "Ah, como odeio esse detestável hábito de fazer perguntas! O que é Deus? O que é isso? O que é aquilo? Esses pontos de interrogação. esse exame obsessivo, essa inquisição, acho tudo isso terrivelmente indiscreto! E todo esse controle por todos os lados, o que é isso! Quem transformou os Dez Mandamentos nesse palavrório horroroso? Ah, eu com certeza não gosto de ver um livro como este nas mãos de uma criança!".
Ameaçada pelo pai, controlada amorosamente pela mãe, a menina encontra seu único refúgio no quarto, na cama, à noite. Pelo resto de sua vida adulta, Colette buscaria esse espaço de leitura solitário. Fosse en ménage ou sozinha, em pequenos alojamentos ou em grandes vivendas campestres, em quarto-e-salas alugados ou em amplos apartamentos parisienses, ela reservaria (nem sempre com sucesso) uma área na qual as únicas intromissões seriam daqueles que ela mesma convidasse. Esticada na cama acolchoada, segurando o querido livro com ambas as mãos e apoiando-o no estômago, ela estabeleceu não apenas seu espaço, mas também sua medida de tempo. (Ela não sabe, mas a menos de três horas de distância, na abadia de Fontevrault, a rainha Eleanora da Aquitânia, que morreu em 1204, jaz esculpida em pedra na tampa de seu túmulo, segurando um livro exatamente da mesma maneira.) Eu também leio na cama. Na longa sucessão de camas em que passei as noites da minha infância, em quartos de hotel estranhos onde as luzes dos carros que passavam na rua atravessavam misteriosamente o teto, em casas cujos odores e sons não me eram familiares, em chalés de verão grudentos de borrifos do mar, ou onde o ar da montanha era tão seco colocavam uma bacia de água fervendo com eucalipto ao meu lado para me ajudar a respirar, a combinação de cama e livro concedia-me uma espécie de lar ao qual eu sabia que podia voltar noite após noite, sob qualquer céu. Ninguém me chamaria e pediria para fazer isso ou aquilo; meu corpo não precisava de nada, imóvel sob os lençóis. O que acontecia, acontecia no livro, e eu era o narrador. A vida acontecia porque eu virava as páginas. Acho que não posso me lembrar de nenhuma alegria mais compreensiva do que a de chegar às últimas páginas e pôr o livro de lado, para que o final ficasse pelo menos para o dia seguinte, e mergulhar no travesseiro com a sensação de ter realmente o tempo.
Eu sabia que nem todos os livros eram adequados para ler na cama. Romances policiais e contos do sobrenatural eram os que tinham mais probabilidade de me dar um sono tranquilo. Para Colette, Os miseráveis, com suas ruas e florestas, descidas a esgotos escuros e barricadas em luta, era o livro perfeito para a tranquilidade do quarto. W. H.
Auden concordava. Ele sugeria que o livro que a pessoa está lendo deveria de alguma forma estar em desacordo com o lugar onde ela o lê. “Não posso ler Jefferies no Wiltshire Downs, nem poeminhas humorísticos numa sala de fumar", queixava-se ele. Isso talvez seja verdade: Pode haver um sentimento de redundância ao se explorar na página um semelhante ao que nos circunda no exato momento da leitura. Penso em André Gide lendo Boileau enquanto descia o rio Congo, e o contraponto entre a vegetação luxuriante e emaranhada e os versos cinzelados e formais do século XVII parece perfeito.
Mas, como descobriu Colette, não somente determinados livros exigem um contraste entre conteúdo e ambiente; há os que parecem exigir determinadas posições de leitura, posturas do corpo do leitor que, por sua vez, exigem locais de leitura apropriados a essas posturas. (Por exemplo, ela não conseguia ler a Histoire de France de Michelet enquanto não se enrodilhava na poltrona do pai com Fanchette, "o mais inteligente dos gatos".) Com frequência, o prazer derivado da leitura depende em larga medida do conforto corporal do leitor.
'Tenho procurado a felicidade em toda parte", confessou Thomas Kempis no início do século XV, mas não a encontrei em nenhum lugar, exceto num pequeno canto, com um pequeno livro." Mas qual cantinho? E qual livrinho? Quer escolhamos primeiro o livro e depois o cantinho apropriado, quer encontremos o canto e depois decidamos qual o livro adequado ao clima do lugar não há dúvida de que o ato de ler no tempo requer um correspondente ato de ler no espaço, e a relação entre os dois atos é inextrincável. Há livros que leio em poltronas e livros que leio em escrivaninhas; há livros que leio em metrôs, bondes e ônibus. Acho que livros lidos em trens têm algo da qualidade dos que leio em poltronas, talvez porque em ambos os casos posso me abstrair facilmente do ambiente. Diz o romancista inglês Alan Sil itoe: “O melhor momento para ler uma história bem escrita é, na verdade, quando se está viajando sozinho em um trem. Com estranhos em volta e um cenário desconhecido passando pela janela (ao qual você lança um olhar de vez em quando). a vida cativante e intrincada que sai das páginas possui seus próprios efeitos peculiares e inesquecíveis." Os livros lidos numa biblioteca pública jamais têm o mesmo sabor daqueles lidos no sótão ou na cozinha. Em 1374, o rei Eduardo III pagou 66 libras, 13 xelins e 4 pence por um livro de romances "para deixar em seu quarto de dormir", onde ele obviamente achava que tal livro deveria ser lido. Em A Vida de são Gregório, escrita no século XII, o banheiro é descrito como "um lugar de retiro onde as tabuletas podem ser lidas sem interrupção". Henry Mil er concordava, tendo confessado certa vez: "Todas as minhas boas leituras eram feitas no banheiro. Há trechos do Ulisses que só podem ser lidos no banheiro – se você quiser extrair todo o sabor de seu conteúdo". Na verdade, a pequena dependência "destinada a um uso mais especial e mais vulgar" era para Marcel Proust um lugar "próprio a todas as minhas ocupações que exigiam uma solidão inviolável: leitura, devaneio, lágrimas e prazer sensual".
O epicurista Omar Khayyam recomendava ler versos ao ar livre, sob uma árvore; séculos depois, o meticuloso Sainte-Beuve aconselhava ler as Memórias de Mme. de Staël "embaixo das árvores de novembro." "Meu costume", escreveu Shel ey; "é despir-me, sentar-me nas rochas e ler Heródoto, até que a transpiração tenha cessado. Mas nem todos são capazes de ler a céu aberto. Marguerite Duras confessou: "Raramente leio em praias e jardins. Não se pode ler com duas luzes ao mesmo tempo, a luz do dia e a luz do livro. Deve-se ler à luz elétrica. a sala nas sombras e somente a página iluminada".
Pode-se transformar um lugar ao ler nele. Durante as férias de verão, Proust voltava sorrateiramente para a sala de jantar, depois que o resto da família saía para o passeio matinal, confiante em que seus únicos companheiros, "muito respeitosos da leitura", seriam "os pratos pintados pendurados na parede, o calendário em que a página do dia anterior acabara de ser arrancada, o relógio e a lareira, que falam sem esperar resposta e cujo balbuciar, ao contrário das palavras humanas, não tenta substituir o sentido das palavras que se está lendo por outro sentido, diferente". Duas horas inteiras de felicidade antes que a cozinheira aparecesse, "cedo demais. para pôr a mesa; se ao menos o fizesse sem falar! Mas ela se sentia obrigada a dizer: 'Você não pode estar confortável assim. E se eu lhe trouxesse uma mesa?'. E apenas por ter de responder: "Não, muito obrigado" era-se forçado a parar completamente e trazer de muito longe a própria voz, que, escondida atrás dos lábios. repetia muda, e rápido, todas as palavras lidas pelos olhos. Tinha-se de fazer a voz parar, trazê-la para fora e, a fim de dizer corretamente: 'Não, muito obrigado', dar a ela uma aparência cotidiana, uma entonação de resposta que ela havia perdido. Somente muito mais tarde – à noite, depois do jantar –' e quando já não faltavam senão umas poucas horas para terminar o livro, reacendia ele sua vela, arriscando-se a ser punido, caso fosse descoberto, e a ter insônia, porque, uma vez ter a leitura, a paixão com que seguira a trama e seus heróis tornaria impossível para ele pegar no sono, e ele andaria de um lado para o outro no quarto ou ficaria deitado ofegante, desejando que a história continuasse ou querendo pelo menos saber um pouco mais sobre as personagens que amara tanto.
Perto do final da vida, preso a um quarto forrado de cortiça, o que lhe trazia algum alívio para a asma, apoiado numa cama acolchoada e trabalhando à luz de uma lâmpada fraca, Proust escreveu: "Os livros verdadeiros não deveriam nascer da luz brilhante do dia e de conversas amigáveis, mas da sombra e do silêncio". À noite, na cama, com a página iluminada por um fraco brilho amarelo, eu, leitor de Proust, reenceno aquele misterioso instante de nascimento.
Geoffrey Chaucer — ou antes, sua insone dama em The book of the duchesse [O livro da duquesa] – considerava ler na cama um divertimento melhor do que um jogo de tabuleiro:

Então, quando vi que não dormiria,
Até tarde, naquela noite,
Em minha cama sentei-me ereto,
E pedi que me trouxessem um livro,
Um romance, que me atraiu e me levou
A ler e passar toda a noite;
Pois penso ser melhor isso
Do que jogar xadrez ou gamão.

Mas há algo mais do que entretenimento no ato de ler na cama: uma qualidade especial de privacidade. Ler na cama é um ato autocentrado, imóvel, livre das convenções sociais comuns, invisível ao mundo, e algo que, por acontecer entre lençóis, no reino da luxúria e da ociosidade pecaminosa, tem algo da emoção das coisas proibidas. Talvez seja a lembrança dessas leituras noturnas que empresta aos romances policiais de John Dickson Carr, Michael Innes, Anthony Gilbert – todos lidos durante as férias de verão da minha adolescência – um certo colorido erótico. A expressão trivial "levar um livro para a cama" sempre me pareceu carregada de expectativa sensual.
O romancista Josef Skvorecky descreveu suas leituras de menino na Tchecoslováquia comunista, "numa sociedade governada por regras rígidas e obrigatórias, onde a desobediência era punida no bom e velho estilo pré-Spock. Uma dessas regras: a luz do quarto deve ser apagada às nove em ponto. Os meninos devem levantar às sete e precisam de dez horas de sono todas as noites". Ler na cama tornava-se então a coisa proibida. Depois que as luzes eram apagadas, diz Skvoreckv "aninhado na cama, eu me cobria (inclusive a cabeça) com um cobertor, pescava debaixo da cama uma lâmpada elétrica e então me entregava aos prazeres de ler, ler, ler. Por fim, com freqüência depois da meia-noite, acabava dormindo de uma exaustão muito prazerosa".
A escritora Annie Dil ard recorda como os livros de sua infância americana conduziram-na para longe da cidade natal, no meio-oeste, "de modo que eu podia inventar uma vida entre livros em qualquer outro lugar. [...] E assim corríamos para o quarto e líamos febrilmente, e adorávamos as grandes árvores de madeira de lei do lado de fora das janelas, e os terríveis verões do meio-oeste, e os terríveis invernos do meio-oeste". Ler na cama fecha e abre ao mesmo tempo o mundo ao nosso redor.
A noção de ler na cama não é antiga. A cama grega, a kline, era uma moldura de madeira colocada sobre pés torneados, retangulares ou em forma de animal, decorada com ornamentos preciosos, não muito prática para ler. Nas reuniões sociais, somente os homens e as cortesãs podiam usá-la. Tinha uma cabeceira baixa, mas nenhum apoio para os pés: tinha colchão e travesseiros, e era usada tanto para dormir como para reclinar-se em descanso e lazer. Nessa posição, era possível ler um rolo segurando uma ponta com a mão esquerda, desenrolando a outra ponta com a mão direita, enquanto o cotovelo direito sustentava o corpo. Mas o procedimento, desajeitado de início, tornava-se depois de algum tempo francamente desconfortável e, por fim, insuportável.
Os romanos tinham uma cama (lectus) para cada finalidade, inclusive camas para ler e escrever. O formato dessas camas não variava muito, os pés eram torneados e, em sua maioria, decorados com incrustações e engastes de bronze. No escuro do quarto (no cubiculum, geralmente no canto mais afastado da casa), a cama de dormir romana, servia às vezes de cama de leitura não muito conveniente; à luz de uma vela feita de pano ensopado em cera, o lucubrum, os romanos liam e "elucubravam " em relativa tranquilidade. Trimalcião, o parvenu do Satyricon de Petrônio, é levado à sala de banquetes numa liteira e num leito "guarnecido por pilhas de pequenas almofadas" que preenche várias funções. Jactando-se de que não pode ser menosprezado em termos de cultura - tem duas bibliotecas, "uma grega, outra latina" –, oferece-se para compor alguns versos de improviso, lê para os convidados reunidos. Tanto ao escrever como ao fazer a leitura Trimalcião permanece deitado no mesmo lectus ostentatório.
Nos primeiros anos da Europa cristã e até o século XII, as camas comuns eram objetos simples, descartáveis, deixadas amiúde para trás durante as retiradas forçadas pelas guerras e pela fome. Uma vez que somente os ricos tinham camas mais sofisticadas e poucos além deles possuíam livros, camas e livros ornamentados tornaram-se símbolos da riqueza de uma família. Eustácío Boilas, um aristocrata bizantino do século XI, deixou em seu testamento uma Bíblia, vários livros de hagiografia e história, uma Chave dos Sonhos, um exemplar do popular de Romance de Alexandre e uma cama dourada.
Os monges tinham catres simples nas celas e ali podiam ler com um pouco mais de conforto do que o oferecido por seus bancos duros e suas escrivaninhas. Um manuscrito iluminado do século XIII mostra um jovem monge barbudo no catre, vestido com hábito, um travesseiro branco nas costas e as pernas enroladas no cobertor cinza. A cortina que separa o leito do resto da cela foi levantada. Em uma mesa sobre cavaletes estão três livros abertos e outros três repousam sobre as pernas dele, prontos para consulta, enquanto em suas mãos vemos uma tabuleta de cera dupla e um estilete.
Aparentemente, ele buscou refúgio do frio metendo-se na cama; suas botas estão sobre um banco pintado e ele se dedica à leitura numa tranquilidade aparentemente feliz.
[...]

Alberto Manguel, em Uma História da Leitura

1600 – Cidade do México

As carruagens

Voltaram as carruagens às largas ruas do México.
Há mais de vinte anos, o ascético Felipe II as tinha proibido. Dizia o decreto que o uso do carro apoltrona os homens e os acostuma à vida mansa e preguiçosa; e que assim perdem músculos para a arte da guerra.
Morto Felipe II, as carruagens reinam novamente nesta cidade. Por dentro, sedas e cristais; por fora, ouro e o brasão na portinhola. Soltam aroma de madeiras finas e rodam com andar de gôndola e balançar de berço; atrás das cortinas cumprimenta e sorri a nobreza colonial. No pescante alto, entre franjas e bolas de seda, ergue-se o cocheiro, desdenhoso, quase rei; e os cavalos calçam ferraduras de prata.
Continuam proibidas as carruagens para os índios, as putas e os castigados pela Inquisição.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Capítulo X – Contas



Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os. legumes, roídas as espigas de milho, recorria a gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes, Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia-se: Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. De repente estourava – Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do chão não se trepa.
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os  homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.
O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru batendo no chão como cascos.
Foi até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo assim. Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de seu Inácio virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que acontecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza.
Ladroeira.
Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. Para que tanto espalhafato?
Hum! hum!
Recordou-se do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca, longe. Num dia de apuro recorrera ao porco magro que não queria engordar no chiqueiro e estava reservado às despesas do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na cidade. Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido: não compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não entendia de imposto.
Um bruto, está percebendo?
Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de couro na mão, o espinhaço curvo: - Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.
Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los.
Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!
Espalhou a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados, que lhe reduziam o horizonte, a campina se estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera através dela, com a família, todos Haviam escapado, e isto lhe parecia um milagre. Nem sabia como tinham escapado.
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.
Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo estava no sangue. Conformava-se, não pretendia mais nada Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não davam.
Era um desgraçado, era como um cachorro,.só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias.
Na palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas. As vezes decorava algumas e empregava-as fora do propósito. Depois esquecia-as. Para que um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? Sinha Terta é que tinha uma ponta de língua terrível. Era: falava quase tão bem como as pessoas da cidade. Se ele soubesse esmolambados e famintos. Ia falar como Sinha Terta, procuraria serviço noutra fazenda, haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas horas de aperto dava para gaguejar, embaraçava-se como um menino, coçava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar?
An!
Agora não criava porco e queria ver o tipo da prefeitura cobrar dele imposto e multa. Arrancavam-lhe a camisa do corpo e ainda por cima davam-lhe facão e cadeia. Pois não trabalharia mais, ia descansar.
Talvez não fosse. Interrompeu o monólogo, levou uma eternidade contando e recontando mentalmente o dinheiro. Amarrotou-o com força, empurrou-o no bolso raso da calça, meteu na casa estreita o botão de osso. Porcaria.
Levantou-se, foi até a porta de uma bodega, com vontade de beber cachaça. Como havia muitas pessoas encostadas ao balcão, recuou. Não gostava de se ver no meio do povo. Falta de costume. As vezes dizia uma coisa sem intenção de ofender, entendiam outra, e lá vinham questões. Perigoso entrar na bodega. O único vivente que o compreendia era a mulher. Nem precisava falar: bastavam os gestos. Sinha Terta é que se explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser assim, ter recurso para se defender. Ele não tinha. Se tivesse, não viveria naquele estado.
Um perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um quarteirão de cachaça, mas lembrava-se da última visita feita à venda de seu Inácio. Se não tivesse tido a ideia de beber, não lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir.
Saiu lento, pesado, capiongo, as rosetas das esporas silenciosas. Não conseguiria dormir. Na cama de varas havia um pau com um nó, bem no meio. Só muito cansaço fazia um cristão acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigar- se no lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas. Derreado, bambo,, espichava-se e roncava como um porco. Agora não lhe seria possível fechar os olhos. Rolaria a noite inteira sobre as varas, matutando naquela perseguição. Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada. Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca.
Tirou do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a faca de ponta. Se ao menos pudesse recordar-se de fatos agradáveis, a vida não seria inteiramente má.
Deixara a rua. Levantou a cabeça, viu uma estrela, depois muitas estrelas. As figuras dos inimigos esmoreceram. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre de Baleia. Era como se ele tivesse matado uma pessoa da família.

Graciliano Ramos, em Vidas Secas

domingo, 28 de dezembro de 2025

Cultura Livre | Seu Pereira e Coletivo 401

Darl



Faz tempo que deixamos anúncios para trás drugstores, lojas de roupas feitas, especialidades médicas, garagens e cafés, e os marcos quilométricos vão diminuindo, assinalando distâncias menores: 4 km, 3 km. Do alto de uma ladeira, ao subirmos outra vez à carroça, podemos ver a fumaça baixa e densa, parecendo imóvel na tarde sem vento.
"É ela, Darl?", pergunta Vardaman. "É mesmo Jefferson?"
Ele também emagreceu; como nós, seu rosto tem uma expressão tensa, sonhadora e descarnada.
"Sim", digo.
Ele levanta a cabeça e olha o céu. Altos contra o céu, eles pendem em círculos decrescentes, como a fumaça, e com uma aparência de forma e de objetivo, mas sem indicação alguma de movimento, avanço ou retrocesso. Subimos outra vez à carroça onde Cash está deitado sobre o caixão, com pedaços de cimento ainda grudados à perna. As mulas esquálidas descem a colina em meio ao estalar de madeira e aos gemidos da carroça.
"Temos de levá-lo ao médico", diz Pai."
"Creio que não há outro jeito."
A camisa de Jewel, nos pontos onde toca em suas costas, mancha-se de graxa e se torna preta.
A vida foi criada nos vales. Subiu às colinas atiçada pelos velhos terrores, as antigas luxúrias, os antigos desesperos. Por isso é preciso subir a pé as colinas e descê-las de carro.
Dewey Dell está sentada no banco, o embrulho de jornal no regaço. Quando chegamos ao pé da colina onde a estrada se torna plana entre paredes grossas de árvores, ela começa a olhar tranquilamente para um e outro lado. Afinal, diz: "Tenho de descer."
Pai olha-a, seu perfil escalavrado como que antecipando manifesta contrariedade. Não sofreia as mulas. "Para quê?"
"Tenho de ir ao mato", diz Dewey Dell.
Pai não para as mulas. "Não pode esperar até chegarmos à cidade? Falta só um quilômetro."
"Pare", diz Dewey Dell. "Tenho de ir ao mato."
Pai para no meio da estrada e nós olhamos Dewey Dell descer, levando o pacote. Não olha para trás.
"Por que não deixa os bolos aqui?", pergunto. "Nós cuidaremos bem deles."
Ela desce com decisão, sem nos olhar.
"Ela saberia onde ir, se esperasse até chegarmos à cidade?", pergunta Vardaman. "Dewey Dell, onde é que você ia fazer isto na cidade?" Ela volta-se, baixa o pacote e depois desaparece entre as árvores e as ervas.
"Não demore mais que o necessário", diz Pai. "Não temos tempo a perder."
Ela não responde. Dentro em pouco não conseguimos sequer ouvi-la. "Devíamos ter feito o que Armstid e Gillespie disseram e mandar mensagem à cidade para que cavassem e preparassem tudo", ele disse.
"Por que não mandou?", perguntei. "Podia ter telefonado."
"Para quê?", diz Jewel. "Demônios, não seremos capazes de abrir um buraco na terra?"
Um automóvel sobe a colina. Começa a tocar a buzina e reduz a velocidade. Passa pelo acostamento em marcha lenta, com as rodas na valeta, ultrapassa-nos e prossegue. Vardaman observa-o até que ele sai de vista.
"Ainda falta muito, Darl?", pergunta.
"Não muito", digo.
"Devíamos ter feito aquilo", diz Pai. "Mas eu não queria dever nada a ninguém que não fosse da nossa carne e do nosso sangue."
"Será que não podemos cavar um maldito buraco no chão?", diz Jewel.
"É falta de respeito referir-se desse modo ao túmulo dela", diz Pai. "Nenhum de vocês tem consciência disso. Nunca a amaram de verdade, nenhum de vocês."
Jewel não responde. Continua sentado em atitude ereta; as costas abauladas tentam evitar o contato da camisa. O queixo sanguíneo projeta-se para a frente.
Dewey Dell volta. Nós a olhamos sair do mato, carregando o pacote, e subir à carroça. Usa agora o vestido domingueiro, o colar, os sapatos e as meias.
"Pensei ter-lhe dito para deixar estas roupas em casa", diz Pai. Ela não responde, não olha para nós. Põe o pacote dentro da carroça e sobe. A carroça movimenta-se.
"Quantas colinas faltam agora, Darl?", diz Vardaman.
"Só uma", digo. "A próxima nos deixará dentro da cidade."
A colina é de areia vermelha, bordejada dos dois lados por cabanas de negros; contra o céu correm as linhas telefônicas e o relógio do tribunal ergue-se entre as árvores. Na areia as rodas sussurram, como se a própria terra fizesse "chiu" à nossa chegada. Descemos quando a colina começa a subir. Seguimos a carroça, as rodas sussurrante?, passando pelas cabanas onde rostos aparecem de súbito às portas, com olhos escancarados. Ouvimos vozes repentinas, exclamativas. Jewel esteve a olhar de um lado para outro, mas agora virou a cabeça para a frente e posso ver que suas orelhas adquirem um tom de vermelho mais pronunciado. Três negros caminham à margem da estrada, à nossa frente; dez passos adiante deles, vai um homem branco. Quando passamos pelos negros, suas cabeças voltam-se, de repente, com aquela expressão de choque e repulsa instintiva.
"Grande Deus", diz um. "O que eles levam nesta carroça?"
Jewel gira rapidamente. "Filho da puta", diz.
Ao fazê-lo, defronta o homem branco, que parou. Parece que Jewel ficou cego por um instante, pois é ao homem branco que se dirige.
"Darl", diz Cash de dentro da carroça. Eu me agarro com Jewel. O homem branco recuou um passo, com o rosto ainda tomado pela surpresa; depois, o rosto endurece, a boca se aperta. Jewel inclina-se para ele, com os músculos do queixo embranquecidos.
"Que foi que disse?", pergunta o homem.
"Escute", eu digo. "Ele não quis ofender, mister. Jewel", eu digo.
Quando toco nele, ele salta para o homem. Agarro lhe o braço; lutamos. Jewel não olha para mim. Tenta libertar o braço. Quando olho o homem outra vez, ele tem uma navalha aberta na mão.
"Calma, mister", eu digo. "Ele está seguro. Jewel." "Ele pensa que só porque é da cidade", diz Jewel, arquejando, lutando para se desvencilhar. "Filho da puta", diz.
O homem avança. Começa a me rodear, observando Jewel, a navalha arriada contra a coxa. "Ninguém me chama desse nome", ele diz. Pai desceu e Dewey Dell segura Jewel, puxando. Eu o liberto e encaro o homem.
"Espere", eu digo. "Ele não quis ofender. Está doente; queimou-se ontem à noite, em um incêndio, e não sabe bem o que diz."
"Com incêndio ou sem incêndio, ninguém pode me chamar desse nome", diz o homem.
"Ele julgou que o senhor houvesse dito alguma coisa", eu digo.
"Nunca lhe disse nada. Nunca o vi na minha vida."
"Pelo amor de Deus", diz Pai. "Pelo amor de Deus."
"Eu sei", digo. "Ele não quis ofender. Ele vai se desculpar."
"Então, peça desculpa logo".
"Feche a navalha e ele pedirá."
O homem me olha. Olha para Jewel. Jewel está quieto agora.
"Feche a navalha", digo.
O homem fecha a navalha.
"Pelo amor de Deus", diz Pai. "Pelo amor de Deus."
"Diga-lhe que você não quis ofender, Jewel", eu digo.
"Pensei que ele houvesse dito uma coisa", diz Jewel. "Só porque ele é..."
"Chiu", digo. "Diga-lhe que você não quis ofender."
"Eu não quis ofender", diz Jewel.
"Melhor assim", diz o homem. "Chamar-me de ..."
"Pensa que ele tem medo de chamar-lhe assim?", eu digo.
O homem me olha. "Não foi isto o que eu disse", falou.
"Nem pense nisso", diz Jewel.
"Cale a boca", eu digo. "Vamos. Toque a carroça, Pai."
A carroça se movimenta. O homem fica parado a nos observar. Jewel não olha para trás.
"Jewel teria amassado ele", diz Vardaman.
Estamos perto do alto, onde a rua começa, onde os carros andam para trás e para diante; as mulas puxam a carroça, vencem o alto e entram na rua. Pai para. A rua estende-se à nossa frente, até onde a praça aparece com o monumento diante do tribunal. Subimos novamente enquanto as cabeças se voltam para nós com aquela expressão que já conhecemos. Só Jewel não sobe. Ele não entra na carroça quando esta começa a andar de novo.
"Suba, Jewel", eu digo. "Vamos embora. Vamos de uma vez."
Mas ele não entra. Em vez disso, põe o pé no cubo da roda traseira, agarra-se com uma mão às costas do banco e, enquanto o cubo roda embaixo de sua sola, ele levanta o outro pé e fica acocorado, olhando diretamente à frente, sem se mover, esbelto, com as costas de madeira, como se talhado, de cócoras, em madeira leve.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo