quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Papai



O mostrador dos batimentos cardíacos é o de cima, em azul. Controlo suas variações mesmo sabendo que nada posso fazer. Geralmente não passa dos 75 batimentos por minuto, nada alarmante, mas um pouco alto para um senhor de 88 anos em repouso. Os médicos não ligam, dizem ser natural, o coração é forçado a uma atividade maior por causa da precariedade do funcionamento dos pulmões, o da esquerda comprometido, o da direita aguentando, com a ajuda do oxigênio artificial, o trabalho dos dois. Mas apenas sem nenhum esforço. Ele jamais poderia andar, ou teria outro AVC, o terceiro. O que me traz a questão elementar, um paradoxo: em coma ele vive, se acordasse e tentasse se mexer para se acomodar melhor na cama, morreria em segundos.
Com meu marido foi assim. Morte quase instantânea, jogando tênis com o Marquinhos, meu filho mais moço. Ataque cardíaco fulminante. Foi o tempo de dobrar os joelhos, apoiar a mão esquerda no chão, a direita espalmada no coração, e escorar a queda. Nunca mais se levantou. Reconstruo a cena que a boca chorosa de meu filho contou para mim, para os médicos e, por telefone, bem mais tarde, para Nicolas, seu irmão mais velho, que estava trabalhando, plantão, quando isso aconteceu. Fazia o primeiro ano de residência médica no hospital mais badalado da cidade. Queria ser cirurgião cardíaco, terminou como oftalmologista, especialização em São Paulo. Nunca mais voltou a morar no Rio.
Quando o Afonso foi enterrado, a família acabou junto com ele. Um breve suspiro de cinco anos, enquanto o Marquinhos ainda estava no colégio, mas, depois que ele foi para Israel, nos limitamos a mim e a papai, com Nicolas em alguns fins de semana, depois eu, papai, Nicolas e sua esposa, depois eu, papai, Nicolas e sua esposa e Patrick, meu neto, mas aí então só nos feriados e, mesmo assim, nem todos, apenas os religiosos do nosso lado: Yom Kipur, Pessach e Roshashana. No meu aniversário eles não vinham. Mônica nasceu no mesmo dia que eu, 2 de outubro. Com o tempo, restou apenas o Natal, festa dos outros, na casa de outra família, em São Paulo. E mesmo assim parei de ir depois que papai passou a morar comigo.

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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