É verão. Mergulhada na cama macia,
entre travesseiros de plumas, o rumor inconstante dos carros passando
sobre as pedras arredondadas da rue de l'Hospice, na aldeia cinzenta
de Saint-Sauveur-en-Puisaye, uma menina de oito anos lê em silêncio
Os miseráveis de Victor Hugo. Ela não lê muitos livros;
relê os mesmos sem parar. Adora Os miseráveis, com algo que
mais tarde chamará de "paixão raciocinante"; sente que
pode se aninhar entre as páginas dele "como um cão em seu
canil". Todas as noites, anseia por seguir Jean Valjean em suas
torturantes peregrinações, encontrar Cosette outra vez, encontrar
Marius e até mesmo o temível Javert. (Na verdade, a pequena
Gavroche, dolorosamente heroica, é a única personagem que não
suporta.) Lá fora, no quintal, entre as árvores e flores plantadas
em vasos, ela tem de competir pelo material de leitura com o pai, um
militar que perdeu a perna esquerda nas campanhas da Itália. A
caminho da biblioteca (seu recinto privado), ele pega seu jornal –
Le Temps – e sua revista – La Nature – e, com "os
olhos de cossaco brilhando sob as sobrancelhas grisalhas, varre das
mesas quaisquer materiais impressos, que então o seguirão até a
biblioteca e jamais verão de novo a luz do dia". A experiência
ensinou a menina a manter seus livros fora do alcance dele.
A mãe não acredita em ficção:
"Tanta complicação, tanto amor apaixonado nesses romances",
diz ela para a filha. "Na vida real, as pessoas têm outras
coisas com que se preocupar. Julgue você mesma: ouviu-me alguma vez
gemer e choramingar por causa de amor como as pessoas fazem nesses
livros? E olhe que eu teria direito a um capítulo inteiro! Tive dois
maridos e quatro filhos!" Se encontra a filha lendo o catecismo
para a próxima comunhão, fica imediatamente exasperada: "Ah,
como odeio esse detestável hábito de fazer perguntas! O que é
Deus? O que é isso? O que é aquilo? Esses pontos de interrogação.
esse exame obsessivo, essa inquisição, acho tudo isso terrivelmente
indiscreto! E todo esse controle por todos os lados, o que é isso!
Quem transformou os Dez Mandamentos nesse palavrório
horroroso? Ah, eu com certeza não gosto de ver um livro como este
nas mãos de uma criança!".
Ameaçada pelo pai, controlada
amorosamente pela mãe, a menina encontra seu único refúgio no
quarto, na cama, à noite. Pelo resto de sua vida adulta, Colette
buscaria esse espaço de leitura solitário. Fosse en ménage
ou sozinha, em pequenos alojamentos ou em grandes vivendas
campestres, em quarto-e-salas alugados ou em amplos apartamentos
parisienses, ela reservaria (nem sempre com sucesso) uma área na
qual as únicas intromissões seriam daqueles que ela mesma
convidasse. Esticada na cama acolchoada, segurando o querido livro
com ambas as mãos e apoiando-o no estômago, ela estabeleceu não
apenas seu espaço, mas também sua medida de tempo. (Ela não sabe,
mas a menos de três horas de distância, na abadia de Fontevrault, a
rainha Eleanora da Aquitânia, que morreu em 1204, jaz esculpida em
pedra na tampa de seu túmulo, segurando um livro exatamente da mesma
maneira.) Eu também leio na cama. Na longa sucessão de camas em que
passei as noites da minha infância, em quartos de hotel estranhos
onde as luzes dos carros que passavam na rua atravessavam
misteriosamente o teto, em casas cujos odores e sons não me eram
familiares, em chalés de verão grudentos de borrifos do mar, ou
onde o ar da montanha era tão seco colocavam uma bacia de água
fervendo com eucalipto ao meu lado para me ajudar a respirar, a
combinação de cama e livro concedia-me uma espécie de lar ao qual
eu sabia que podia voltar noite após noite, sob qualquer céu.
Ninguém me chamaria e pediria para fazer isso ou aquilo; meu corpo
não precisava de nada, imóvel sob os lençóis. O que acontecia,
acontecia no livro, e eu era o narrador. A vida acontecia porque eu
virava as páginas. Acho que não posso me lembrar de nenhuma alegria
mais compreensiva do que a de chegar às últimas páginas e
pôr o livro de lado, para que o final ficasse pelo menos para o dia
seguinte, e mergulhar no travesseiro com a sensação de ter
realmente o tempo.
Eu sabia que nem todos os livros eram
adequados para ler na cama. Romances policiais e contos do
sobrenatural eram os que tinham mais probabilidade de me dar um sono
tranquilo. Para Colette, Os miseráveis, com suas ruas e florestas,
descidas a esgotos escuros e barricadas em luta, era o livro perfeito
para a tranquilidade do quarto. W. H.
Auden concordava. Ele sugeria que o
livro que a pessoa está lendo deveria de alguma forma estar em
desacordo com o lugar onde ela o lê. “Não posso ler Jefferies no
Wiltshire Downs, nem poeminhas humorísticos numa sala de fumar",
queixava-se ele. Isso talvez seja verdade: Pode haver um sentimento
de redundância ao se explorar na página um semelhante ao que nos
circunda no exato momento da leitura. Penso em André Gide lendo
Boileau enquanto descia o rio Congo, e o contraponto entre a
vegetação luxuriante e emaranhada e os versos cinzelados e formais
do século XVII parece perfeito.
Mas, como descobriu Colette, não
somente determinados livros exigem um contraste entre conteúdo e
ambiente; há os que parecem exigir determinadas posições de
leitura, posturas do corpo do leitor que, por sua vez, exigem locais
de leitura apropriados a essas posturas. (Por exemplo, ela não
conseguia ler a Histoire de France de Michelet enquanto não
se enrodilhava na poltrona do pai com Fanchette, "o mais
inteligente dos gatos".) Com frequência, o prazer derivado da
leitura depende em larga medida do conforto corporal do leitor.
'Tenho procurado a felicidade em toda
parte", confessou Thomas Kempis no início do século XV, mas
não a encontrei em nenhum lugar, exceto num pequeno canto, com um
pequeno livro." Mas qual cantinho? E qual livrinho? Quer
escolhamos primeiro o livro e depois o cantinho apropriado, quer
encontremos o canto e depois decidamos qual o livro adequado ao clima
do lugar não há dúvida de que o ato de ler no tempo requer um
correspondente ato de ler no espaço, e a relação entre os dois
atos é inextrincável. Há livros que leio em poltronas e livros que
leio em escrivaninhas; há livros que leio em metrôs, bondes e
ônibus. Acho que livros lidos em trens têm algo da qualidade dos
que leio em poltronas, talvez porque em ambos os casos posso me
abstrair facilmente do ambiente. Diz o romancista inglês Alan Sil
itoe: “O melhor momento para ler uma história bem escrita é, na
verdade, quando se está viajando sozinho em um trem. Com estranhos
em volta e um cenário desconhecido passando pela janela (ao qual
você lança um olhar de vez em quando). a vida cativante e
intrincada que sai das páginas possui seus próprios efeitos
peculiares e inesquecíveis." Os livros lidos numa biblioteca
pública jamais têm o mesmo sabor daqueles lidos no sótão ou na
cozinha. Em 1374, o rei Eduardo III pagou 66 libras, 13 xelins e 4
pence por um livro de romances "para deixar em seu quarto de
dormir", onde ele obviamente achava que tal livro deveria ser
lido. Em A Vida de são Gregório, escrita no século XII, o
banheiro é descrito como "um lugar de retiro onde as tabuletas
podem ser lidas sem interrupção". Henry Mil er concordava,
tendo confessado certa vez: "Todas as minhas boas leituras eram
feitas no banheiro. Há trechos do Ulisses que só podem ser
lidos no banheiro – se você quiser extrair todo o sabor de seu
conteúdo". Na verdade, a pequena dependência "destinada a
um uso mais especial e mais vulgar" era para Marcel Proust um
lugar "próprio a todas as minhas ocupações que exigiam uma
solidão inviolável: leitura, devaneio, lágrimas e prazer sensual".
O epicurista Omar Khayyam recomendava
ler versos ao ar livre, sob uma árvore; séculos depois, o
meticuloso Sainte-Beuve aconselhava ler as Memórias de Mme.
de Staël "embaixo das árvores de novembro." "Meu
costume", escreveu Shel ey; "é despir-me, sentar-me nas
rochas e ler Heródoto, até que a transpiração tenha cessado. Mas
nem todos são capazes de ler a céu aberto. Marguerite Duras
confessou: "Raramente leio em praias e jardins. Não se pode ler
com duas luzes ao mesmo tempo, a luz do dia e a luz do livro. Deve-se
ler à luz elétrica. a sala nas sombras e somente a página
iluminada".
Pode-se transformar um lugar ao ler
nele. Durante as férias de verão, Proust voltava sorrateiramente
para a sala de jantar, depois que o resto da família saía para o
passeio matinal, confiante em que seus únicos companheiros, "muito
respeitosos da leitura", seriam "os pratos pintados
pendurados na parede, o calendário em que a página do dia anterior
acabara de ser arrancada, o relógio e a lareira, que falam sem
esperar resposta e cujo balbuciar, ao contrário das palavras
humanas, não tenta substituir o sentido das palavras que se está
lendo por outro sentido, diferente". Duas horas inteiras de
felicidade antes que a cozinheira aparecesse, "cedo demais. para
pôr a mesa; se ao menos o fizesse sem falar! Mas ela se sentia
obrigada a dizer: 'Você não pode estar confortável assim. E se eu
lhe trouxesse uma mesa?'. E apenas por ter de responder: "Não,
muito obrigado" era-se forçado a parar completamente e trazer
de muito longe a própria voz, que, escondida atrás dos lábios.
repetia muda, e rápido, todas as palavras lidas pelos olhos.
Tinha-se de fazer a voz parar, trazê-la para fora e, a fim de dizer
corretamente: 'Não, muito obrigado', dar a ela uma aparência
cotidiana, uma entonação de resposta que ela havia perdido. Somente
muito mais tarde – à noite, depois do jantar –' e quando já não
faltavam senão umas poucas horas para terminar o livro, reacendia
ele sua vela, arriscando-se a ser punido, caso fosse descoberto, e a
ter insônia, porque, uma vez ter a leitura, a paixão com que
seguira a trama e seus heróis tornaria impossível para ele pegar no
sono, e ele andaria de um lado para o outro no quarto ou ficaria
deitado ofegante, desejando que a história continuasse ou querendo
pelo menos saber um pouco mais sobre as personagens que amara tanto.
Perto do final da vida, preso a um
quarto forrado de cortiça, o que lhe trazia algum alívio para a
asma, apoiado numa cama acolchoada e trabalhando à luz de uma
lâmpada fraca, Proust escreveu: "Os livros verdadeiros não
deveriam nascer da luz brilhante do dia e de conversas amigáveis,
mas da sombra e do silêncio". À noite, na cama, com a página
iluminada por um fraco brilho amarelo, eu, leitor de Proust, reenceno
aquele misterioso instante de nascimento.
Geoffrey Chaucer — ou antes, sua
insone dama em The book of the duchesse [O livro da duquesa] –
considerava ler na cama um divertimento melhor do que um jogo de
tabuleiro:
Então, quando vi que não dormiria,
Até tarde, naquela noite,
Em minha cama sentei-me ereto,
E pedi que me trouxessem um livro,
Um romance, que me atraiu e me levou
A ler e passar toda a noite;
Pois penso ser melhor isso
Do que jogar xadrez ou gamão.
Mas há algo mais do que
entretenimento no ato de ler na cama: uma qualidade especial de
privacidade. Ler na cama é um ato autocentrado, imóvel, livre das
convenções sociais comuns, invisível ao mundo, e algo que, por
acontecer entre lençóis, no reino da luxúria e da ociosidade
pecaminosa, tem algo da emoção das coisas proibidas. Talvez seja a
lembrança dessas leituras noturnas que empresta aos romances
policiais de John Dickson Carr, Michael Innes, Anthony Gilbert –
todos lidos durante as férias de verão da minha adolescência –
um certo colorido erótico. A expressão trivial "levar um livro
para a cama" sempre me pareceu carregada de expectativa sensual.
O romancista Josef Skvorecky descreveu
suas leituras de menino na Tchecoslováquia comunista, "numa
sociedade governada por regras rígidas e obrigatórias, onde a
desobediência era punida no bom e velho estilo pré-Spock. Uma
dessas regras: a luz do quarto deve ser apagada às nove em ponto. Os
meninos devem levantar às sete e precisam de dez horas de sono todas
as noites". Ler na cama tornava-se então a coisa proibida.
Depois que as luzes eram apagadas, diz Skvoreckv "aninhado na
cama, eu me cobria (inclusive a cabeça) com um cobertor, pescava
debaixo da cama uma lâmpada elétrica e então me entregava aos
prazeres de ler, ler, ler. Por fim, com freqüência depois da
meia-noite, acabava dormindo de uma exaustão muito prazerosa".
A escritora Annie Dil ard recorda como
os livros de sua infância americana conduziram-na para longe da
cidade natal, no meio-oeste, "de modo que eu podia inventar uma
vida entre livros em qualquer outro lugar. [...] E assim corríamos
para o quarto e líamos febrilmente, e adorávamos as grandes árvores
de madeira de lei do lado de fora das janelas, e os terríveis verões
do meio-oeste, e os terríveis invernos do meio-oeste". Ler na
cama fecha e abre ao mesmo tempo o mundo ao nosso redor.
A noção de ler na cama não é
antiga. A cama grega, a kline, era uma moldura de madeira colocada
sobre pés torneados, retangulares ou em forma de animal, decorada
com ornamentos preciosos, não muito prática para ler. Nas reuniões
sociais, somente os homens e as cortesãs podiam usá-la. Tinha uma
cabeceira baixa, mas nenhum apoio para os pés: tinha colchão e
travesseiros, e era usada tanto para dormir como para reclinar-se em
descanso e lazer. Nessa posição, era possível ler um rolo
segurando uma ponta com a mão esquerda, desenrolando a outra ponta
com a mão direita, enquanto o cotovelo direito sustentava o corpo.
Mas o procedimento, desajeitado de início, tornava-se depois de
algum tempo francamente desconfortável e, por fim, insuportável.
Os romanos tinham uma cama (lectus)
para cada finalidade, inclusive camas para ler e escrever. O formato
dessas camas não variava muito, os pés eram torneados e, em sua
maioria, decorados com incrustações e engastes de bronze. No escuro
do quarto (no cubiculum, geralmente no canto mais afastado da
casa), a cama de dormir romana, servia às vezes de cama de leitura
não muito conveniente; à luz de uma vela feita de pano ensopado em
cera, o lucubrum, os romanos liam e "elucubravam "
em relativa tranquilidade. Trimalcião, o parvenu do Satyricon
de Petrônio, é levado à sala de banquetes numa liteira e num leito
"guarnecido por pilhas de pequenas almofadas" que preenche
várias funções. Jactando-se de que não pode ser menosprezado em
termos de cultura - tem duas bibliotecas, "uma grega, outra
latina" –, oferece-se para compor alguns versos de improviso,
lê para os convidados reunidos. Tanto ao escrever como ao fazer a
leitura Trimalcião permanece deitado no mesmo lectus ostentatório.
Nos primeiros anos da Europa cristã e
até o século XII, as camas comuns eram objetos simples,
descartáveis, deixadas amiúde para trás durante as retiradas
forçadas pelas guerras e pela fome. Uma vez que somente os ricos
tinham camas mais sofisticadas e poucos além deles possuíam livros,
camas e livros ornamentados tornaram-se símbolos da riqueza de uma
família. Eustácío Boilas, um aristocrata bizantino do século XI,
deixou em seu testamento uma Bíblia, vários livros de hagiografia e
história, uma Chave dos Sonhos, um exemplar do popular de Romance
de Alexandre e uma cama dourada.
Os monges tinham catres simples nas
celas e ali podiam ler com um pouco mais de conforto do que o
oferecido por seus bancos duros e suas escrivaninhas. Um manuscrito
iluminado do século XIII mostra um jovem monge barbudo no catre,
vestido com hábito, um travesseiro branco nas costas e as pernas
enroladas no cobertor cinza. A cortina que separa o leito do resto da
cela foi levantada. Em uma mesa sobre cavaletes estão três livros
abertos e outros três repousam sobre as pernas dele, prontos para
consulta, enquanto em suas mãos vemos uma tabuleta de cera dupla e
um estilete.
Aparentemente, ele buscou refúgio do
frio metendo-se na cama; suas botas estão sobre um banco pintado e
ele se dedica à leitura numa tranquilidade aparentemente feliz.
[...]
Alberto Manguel, em Uma História da Leitura

Nenhum comentário:
Postar um comentário