segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Leitura na intimidade



É verão. Mergulhada na cama macia, entre travesseiros de plumas, o rumor inconstante dos carros passando sobre as pedras arredondadas da rue de l'Hospice, na aldeia cinzenta de Saint-Sauveur-en-Puisaye, uma menina de oito anos lê em silêncio Os miseráveis de Victor Hugo. Ela não lê muitos livros; relê os mesmos sem parar. Adora Os miseráveis, com algo que mais tarde chamará de "paixão raciocinante"; sente que pode se aninhar entre as páginas dele "como um cão em seu canil". Todas as noites, anseia por seguir Jean Valjean em suas torturantes peregrinações, encontrar Cosette outra vez, encontrar Marius e até mesmo o temível Javert. (Na verdade, a pequena Gavroche, dolorosamente heroica, é a única personagem que não suporta.) Lá fora, no quintal, entre as árvores e flores plantadas em vasos, ela tem de competir pelo material de leitura com o pai, um militar que perdeu a perna esquerda nas campanhas da Itália. A caminho da biblioteca (seu recinto privado), ele pega seu jornal – Le Temps – e sua revista – La Nature – e, com "os olhos de cossaco brilhando sob as sobrancelhas grisalhas, varre das mesas quaisquer materiais impressos, que então o seguirão até a biblioteca e jamais verão de novo a luz do dia". A experiência ensinou a menina a manter seus livros fora do alcance dele.
A mãe não acredita em ficção: "Tanta complicação, tanto amor apaixonado nesses romances", diz ela para a filha. "Na vida real, as pessoas têm outras coisas com que se preocupar. Julgue você mesma: ouviu-me alguma vez gemer e choramingar por causa de amor como as pessoas fazem nesses livros? E olhe que eu teria direito a um capítulo inteiro! Tive dois maridos e quatro filhos!" Se encontra a filha lendo o catecismo para a próxima comunhão, fica imediatamente exasperada: "Ah, como odeio esse detestável hábito de fazer perguntas! O que é Deus? O que é isso? O que é aquilo? Esses pontos de interrogação. esse exame obsessivo, essa inquisição, acho tudo isso terrivelmente indiscreto! E todo esse controle por todos os lados, o que é isso! Quem transformou os Dez Mandamentos nesse palavrório horroroso? Ah, eu com certeza não gosto de ver um livro como este nas mãos de uma criança!".
Ameaçada pelo pai, controlada amorosamente pela mãe, a menina encontra seu único refúgio no quarto, na cama, à noite. Pelo resto de sua vida adulta, Colette buscaria esse espaço de leitura solitário. Fosse en ménage ou sozinha, em pequenos alojamentos ou em grandes vivendas campestres, em quarto-e-salas alugados ou em amplos apartamentos parisienses, ela reservaria (nem sempre com sucesso) uma área na qual as únicas intromissões seriam daqueles que ela mesma convidasse. Esticada na cama acolchoada, segurando o querido livro com ambas as mãos e apoiando-o no estômago, ela estabeleceu não apenas seu espaço, mas também sua medida de tempo. (Ela não sabe, mas a menos de três horas de distância, na abadia de Fontevrault, a rainha Eleanora da Aquitânia, que morreu em 1204, jaz esculpida em pedra na tampa de seu túmulo, segurando um livro exatamente da mesma maneira.) Eu também leio na cama. Na longa sucessão de camas em que passei as noites da minha infância, em quartos de hotel estranhos onde as luzes dos carros que passavam na rua atravessavam misteriosamente o teto, em casas cujos odores e sons não me eram familiares, em chalés de verão grudentos de borrifos do mar, ou onde o ar da montanha era tão seco colocavam uma bacia de água fervendo com eucalipto ao meu lado para me ajudar a respirar, a combinação de cama e livro concedia-me uma espécie de lar ao qual eu sabia que podia voltar noite após noite, sob qualquer céu. Ninguém me chamaria e pediria para fazer isso ou aquilo; meu corpo não precisava de nada, imóvel sob os lençóis. O que acontecia, acontecia no livro, e eu era o narrador. A vida acontecia porque eu virava as páginas. Acho que não posso me lembrar de nenhuma alegria mais compreensiva do que a de chegar às últimas páginas e pôr o livro de lado, para que o final ficasse pelo menos para o dia seguinte, e mergulhar no travesseiro com a sensação de ter realmente o tempo.
Eu sabia que nem todos os livros eram adequados para ler na cama. Romances policiais e contos do sobrenatural eram os que tinham mais probabilidade de me dar um sono tranquilo. Para Colette, Os miseráveis, com suas ruas e florestas, descidas a esgotos escuros e barricadas em luta, era o livro perfeito para a tranquilidade do quarto. W. H.
Auden concordava. Ele sugeria que o livro que a pessoa está lendo deveria de alguma forma estar em desacordo com o lugar onde ela o lê. “Não posso ler Jefferies no Wiltshire Downs, nem poeminhas humorísticos numa sala de fumar", queixava-se ele. Isso talvez seja verdade: Pode haver um sentimento de redundância ao se explorar na página um semelhante ao que nos circunda no exato momento da leitura. Penso em André Gide lendo Boileau enquanto descia o rio Congo, e o contraponto entre a vegetação luxuriante e emaranhada e os versos cinzelados e formais do século XVII parece perfeito.
Mas, como descobriu Colette, não somente determinados livros exigem um contraste entre conteúdo e ambiente; há os que parecem exigir determinadas posições de leitura, posturas do corpo do leitor que, por sua vez, exigem locais de leitura apropriados a essas posturas. (Por exemplo, ela não conseguia ler a Histoire de France de Michelet enquanto não se enrodilhava na poltrona do pai com Fanchette, "o mais inteligente dos gatos".) Com frequência, o prazer derivado da leitura depende em larga medida do conforto corporal do leitor.
'Tenho procurado a felicidade em toda parte", confessou Thomas Kempis no início do século XV, mas não a encontrei em nenhum lugar, exceto num pequeno canto, com um pequeno livro." Mas qual cantinho? E qual livrinho? Quer escolhamos primeiro o livro e depois o cantinho apropriado, quer encontremos o canto e depois decidamos qual o livro adequado ao clima do lugar não há dúvida de que o ato de ler no tempo requer um correspondente ato de ler no espaço, e a relação entre os dois atos é inextrincável. Há livros que leio em poltronas e livros que leio em escrivaninhas; há livros que leio em metrôs, bondes e ônibus. Acho que livros lidos em trens têm algo da qualidade dos que leio em poltronas, talvez porque em ambos os casos posso me abstrair facilmente do ambiente. Diz o romancista inglês Alan Sil itoe: “O melhor momento para ler uma história bem escrita é, na verdade, quando se está viajando sozinho em um trem. Com estranhos em volta e um cenário desconhecido passando pela janela (ao qual você lança um olhar de vez em quando). a vida cativante e intrincada que sai das páginas possui seus próprios efeitos peculiares e inesquecíveis." Os livros lidos numa biblioteca pública jamais têm o mesmo sabor daqueles lidos no sótão ou na cozinha. Em 1374, o rei Eduardo III pagou 66 libras, 13 xelins e 4 pence por um livro de romances "para deixar em seu quarto de dormir", onde ele obviamente achava que tal livro deveria ser lido. Em A Vida de são Gregório, escrita no século XII, o banheiro é descrito como "um lugar de retiro onde as tabuletas podem ser lidas sem interrupção". Henry Mil er concordava, tendo confessado certa vez: "Todas as minhas boas leituras eram feitas no banheiro. Há trechos do Ulisses que só podem ser lidos no banheiro – se você quiser extrair todo o sabor de seu conteúdo". Na verdade, a pequena dependência "destinada a um uso mais especial e mais vulgar" era para Marcel Proust um lugar "próprio a todas as minhas ocupações que exigiam uma solidão inviolável: leitura, devaneio, lágrimas e prazer sensual".
O epicurista Omar Khayyam recomendava ler versos ao ar livre, sob uma árvore; séculos depois, o meticuloso Sainte-Beuve aconselhava ler as Memórias de Mme. de Staël "embaixo das árvores de novembro." "Meu costume", escreveu Shel ey; "é despir-me, sentar-me nas rochas e ler Heródoto, até que a transpiração tenha cessado. Mas nem todos são capazes de ler a céu aberto. Marguerite Duras confessou: "Raramente leio em praias e jardins. Não se pode ler com duas luzes ao mesmo tempo, a luz do dia e a luz do livro. Deve-se ler à luz elétrica. a sala nas sombras e somente a página iluminada".
Pode-se transformar um lugar ao ler nele. Durante as férias de verão, Proust voltava sorrateiramente para a sala de jantar, depois que o resto da família saía para o passeio matinal, confiante em que seus únicos companheiros, "muito respeitosos da leitura", seriam "os pratos pintados pendurados na parede, o calendário em que a página do dia anterior acabara de ser arrancada, o relógio e a lareira, que falam sem esperar resposta e cujo balbuciar, ao contrário das palavras humanas, não tenta substituir o sentido das palavras que se está lendo por outro sentido, diferente". Duas horas inteiras de felicidade antes que a cozinheira aparecesse, "cedo demais. para pôr a mesa; se ao menos o fizesse sem falar! Mas ela se sentia obrigada a dizer: 'Você não pode estar confortável assim. E se eu lhe trouxesse uma mesa?'. E apenas por ter de responder: "Não, muito obrigado" era-se forçado a parar completamente e trazer de muito longe a própria voz, que, escondida atrás dos lábios. repetia muda, e rápido, todas as palavras lidas pelos olhos. Tinha-se de fazer a voz parar, trazê-la para fora e, a fim de dizer corretamente: 'Não, muito obrigado', dar a ela uma aparência cotidiana, uma entonação de resposta que ela havia perdido. Somente muito mais tarde – à noite, depois do jantar –' e quando já não faltavam senão umas poucas horas para terminar o livro, reacendia ele sua vela, arriscando-se a ser punido, caso fosse descoberto, e a ter insônia, porque, uma vez ter a leitura, a paixão com que seguira a trama e seus heróis tornaria impossível para ele pegar no sono, e ele andaria de um lado para o outro no quarto ou ficaria deitado ofegante, desejando que a história continuasse ou querendo pelo menos saber um pouco mais sobre as personagens que amara tanto.
Perto do final da vida, preso a um quarto forrado de cortiça, o que lhe trazia algum alívio para a asma, apoiado numa cama acolchoada e trabalhando à luz de uma lâmpada fraca, Proust escreveu: "Os livros verdadeiros não deveriam nascer da luz brilhante do dia e de conversas amigáveis, mas da sombra e do silêncio". À noite, na cama, com a página iluminada por um fraco brilho amarelo, eu, leitor de Proust, reenceno aquele misterioso instante de nascimento.
Geoffrey Chaucer — ou antes, sua insone dama em The book of the duchesse [O livro da duquesa] – considerava ler na cama um divertimento melhor do que um jogo de tabuleiro:

Então, quando vi que não dormiria,
Até tarde, naquela noite,
Em minha cama sentei-me ereto,
E pedi que me trouxessem um livro,
Um romance, que me atraiu e me levou
A ler e passar toda a noite;
Pois penso ser melhor isso
Do que jogar xadrez ou gamão.

Mas há algo mais do que entretenimento no ato de ler na cama: uma qualidade especial de privacidade. Ler na cama é um ato autocentrado, imóvel, livre das convenções sociais comuns, invisível ao mundo, e algo que, por acontecer entre lençóis, no reino da luxúria e da ociosidade pecaminosa, tem algo da emoção das coisas proibidas. Talvez seja a lembrança dessas leituras noturnas que empresta aos romances policiais de John Dickson Carr, Michael Innes, Anthony Gilbert – todos lidos durante as férias de verão da minha adolescência – um certo colorido erótico. A expressão trivial "levar um livro para a cama" sempre me pareceu carregada de expectativa sensual.
O romancista Josef Skvorecky descreveu suas leituras de menino na Tchecoslováquia comunista, "numa sociedade governada por regras rígidas e obrigatórias, onde a desobediência era punida no bom e velho estilo pré-Spock. Uma dessas regras: a luz do quarto deve ser apagada às nove em ponto. Os meninos devem levantar às sete e precisam de dez horas de sono todas as noites". Ler na cama tornava-se então a coisa proibida. Depois que as luzes eram apagadas, diz Skvoreckv "aninhado na cama, eu me cobria (inclusive a cabeça) com um cobertor, pescava debaixo da cama uma lâmpada elétrica e então me entregava aos prazeres de ler, ler, ler. Por fim, com freqüência depois da meia-noite, acabava dormindo de uma exaustão muito prazerosa".
A escritora Annie Dil ard recorda como os livros de sua infância americana conduziram-na para longe da cidade natal, no meio-oeste, "de modo que eu podia inventar uma vida entre livros em qualquer outro lugar. [...] E assim corríamos para o quarto e líamos febrilmente, e adorávamos as grandes árvores de madeira de lei do lado de fora das janelas, e os terríveis verões do meio-oeste, e os terríveis invernos do meio-oeste". Ler na cama fecha e abre ao mesmo tempo o mundo ao nosso redor.
A noção de ler na cama não é antiga. A cama grega, a kline, era uma moldura de madeira colocada sobre pés torneados, retangulares ou em forma de animal, decorada com ornamentos preciosos, não muito prática para ler. Nas reuniões sociais, somente os homens e as cortesãs podiam usá-la. Tinha uma cabeceira baixa, mas nenhum apoio para os pés: tinha colchão e travesseiros, e era usada tanto para dormir como para reclinar-se em descanso e lazer. Nessa posição, era possível ler um rolo segurando uma ponta com a mão esquerda, desenrolando a outra ponta com a mão direita, enquanto o cotovelo direito sustentava o corpo. Mas o procedimento, desajeitado de início, tornava-se depois de algum tempo francamente desconfortável e, por fim, insuportável.
Os romanos tinham uma cama (lectus) para cada finalidade, inclusive camas para ler e escrever. O formato dessas camas não variava muito, os pés eram torneados e, em sua maioria, decorados com incrustações e engastes de bronze. No escuro do quarto (no cubiculum, geralmente no canto mais afastado da casa), a cama de dormir romana, servia às vezes de cama de leitura não muito conveniente; à luz de uma vela feita de pano ensopado em cera, o lucubrum, os romanos liam e "elucubravam " em relativa tranquilidade. Trimalcião, o parvenu do Satyricon de Petrônio, é levado à sala de banquetes numa liteira e num leito "guarnecido por pilhas de pequenas almofadas" que preenche várias funções. Jactando-se de que não pode ser menosprezado em termos de cultura - tem duas bibliotecas, "uma grega, outra latina" –, oferece-se para compor alguns versos de improviso, lê para os convidados reunidos. Tanto ao escrever como ao fazer a leitura Trimalcião permanece deitado no mesmo lectus ostentatório.
Nos primeiros anos da Europa cristã e até o século XII, as camas comuns eram objetos simples, descartáveis, deixadas amiúde para trás durante as retiradas forçadas pelas guerras e pela fome. Uma vez que somente os ricos tinham camas mais sofisticadas e poucos além deles possuíam livros, camas e livros ornamentados tornaram-se símbolos da riqueza de uma família. Eustácío Boilas, um aristocrata bizantino do século XI, deixou em seu testamento uma Bíblia, vários livros de hagiografia e história, uma Chave dos Sonhos, um exemplar do popular de Romance de Alexandre e uma cama dourada.
Os monges tinham catres simples nas celas e ali podiam ler com um pouco mais de conforto do que o oferecido por seus bancos duros e suas escrivaninhas. Um manuscrito iluminado do século XIII mostra um jovem monge barbudo no catre, vestido com hábito, um travesseiro branco nas costas e as pernas enroladas no cobertor cinza. A cortina que separa o leito do resto da cela foi levantada. Em uma mesa sobre cavaletes estão três livros abertos e outros três repousam sobre as pernas dele, prontos para consulta, enquanto em suas mãos vemos uma tabuleta de cera dupla e um estilete.
Aparentemente, ele buscou refúgio do frio metendo-se na cama; suas botas estão sobre um banco pintado e ele se dedica à leitura numa tranquilidade aparentemente feliz.
[...]

Alberto Manguel, em Uma História da Leitura

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